Quando o cinema apaixona

 

Estive no 2º Festival Internacional de Cinema de Curitiba e escrevi algumas críticas de filmes que tive o prazer de assistir lá. Publico aqui uma especial. No site do jornal Gazeta do Povo há outra sobre o curta baiano “Menino do 5”.

Apaixonar-se pelo cinema acontece com muitos de nós. Os motivos, ou os causadores disso, variam bastante. Mas a experiência de apaixonar-se pelos filmes que nos deslocam no próprio sentimento que temos pelo cinema é das mais inesquecíveis. Amar o cinema é fácil, entender porque sentimos isso, não.

Aqueles filmes que falam sobre o cinema, que realizam um cinema que ainda não vimos, são os mais desafiadores. O desafio é jogado para os espectadores que têm a missão de torcer o nariz ou abrir o coração. Assim é a recepção de filmes como Cuauhtémoc e Leviathan pelo público. E esses são filmes que vão mostrar algo que ainda não vimos ou ouvimos e temos alguns minutos para abraçá-los ou ignorá-los.

Cuauhtémoc incomoda, desloca. Começa agressivo com um rock pesado e letreiros que são imagens. Ele discute sobre como fazer aquilo que eles estão, ao mesmo tempo, fazendo. Se você tem o dinheiro de Hollywood, você escolhe onde colocar um fresnel, decide as coisas, dizem eles. Peça central do discurso é a condição do fazer cinema, é assim que eles discutem que hoje é preciso esconder a precariedade desta prática, pois mostrá-la “é coisa da década de 70”. Num mundo onde qualquer um faz um vídeo com uma DSLR ou uma cybershot, o que é, então, fazer cinema? As falas se justapoem, há ruídos, nas imagens vemos coisas que não sincronizam com os sons, é difícil entender tudo o que é falado. Mas é nítida a sensação de que eles estão discutindo o que pretendem. Ouvimos colocações de que o cinema é enganação, mas que ali não há mentirosos.

Assim, a segunda parte do curta parece ser a concretização da primeira. Eles fazem um outro filme. Mostram a precariedade com a flecha do mouse aparecendo de vez em quando nas imagens que criam espaços e preenchem o olhar que flana pela tela. As imagens lúdicas são acompanhadas pela trilha sonora clássica que estimula uma fluência com as cores da tela. E é assim que ele se completa. Eles fizeram um filme sem o dinheiro de uma produção hollywoodiana, sem enganar e explorando a suposta precariedade. A realização é o obejtivo da prática.

Numa produção de porte bastante diferente, Leviathan mostra um cinema que cria expectativas e as remolda. A sinopse oficial leva muitas pessoas – ou todas elas? – a um engano. Seria fácil esperar de Leviathan algo na linha de Terráqueos (Earthlings) ou A Carne é Fraca, documentários que expõem as fissuras na relação entre os animais e os seres humanos. De fato, o documentário acompanha a pesca industrial. Porém, temos aqui algumas das mais belas imagens já feitas pelo cinema. A beleza das estrelas-do-mar brilhando lá no fundo, as gaivotas acompanhando o barco, os peixes movendo-se pelo chão do barco, as conchas sendo abertas com faca pelos pescadores e sua sinfonia, tudo isso causa uma experiência visual e sonora que pode abarcar toda a sua relação com o filme, deixando pouco espaço para a reflexão sobre a violência entre os homens e as criaturas do mar.

Diria, sem exagero, que o brilhantismo da direção da cena do barco pesqueiro filmado frontalmente nas ondas do mar é a cena mais bela e inesquecível que já vi numa sala de cinema. Como todos os planos têm um tempo particular, ali, além da beleza, me prendi em tentar decifrar como ela havia sido feita. Parece que a câmera foi colocada num anzol na ponta de uma linha de pesca e lá fica a flutuar, indo e vindo, de frente para o barco. Esplêndida, inesquecível, belíssima.

A tecnologia e as condições financeiras permitiram que os realizadores de Leviathan conseguissem um material visual e sonoro que surpreende pelo inédito. Ao acompanhar o nível do chão com os peixes deslizando temos imagens que são atraentes, apesar da realidade crua que elas nos denunciam. O começo brutal, com planos pouco compreensíveis, sons estridentes e muita escuridão podem assustar o espectador desavisado e até espantá-lo. O tempo, inclusive, é um personagem central neste documentário. Os planos têm o seu tempo interno, o espectador pode observá-los à vontade, percebê-los, contemplá-los. As ações e movimentos são longamente mostrados pela câmera que às vezes se movimenta cadenciadamente, às vezes fica parada. As cenas vão se sucedendo sem diálogos nem voz off explicativos mas muito bem concatenadas na lógica da sequência determinada pela direção.

Com pouco mais de uma hora de documentário, há um longo plano fixo frontal de um pescador que assiste à TV sentado ao lado de uma mesa. Nesta, vemos um pacote de salgadinho aberto, um pote de comida industrializada. Não há frutos do mar servidos para os pescadores. As arraias destroçadas maquinalmente não são consumidas pelos seus algozes. Cuauhtémoc e Leviathan são assim, nos servem alimentos que não estavam no cardápio, nos oferecem aquilo que menos esperamos. Como o pescador, podemos acabar caindo no sono ou despertarmos de um sono profundo.

115 anos de cinema brasileiro: na História ou distante dela?

 

O dia de hoje é comemorado por um fato curioso: a primeira filmagem realizada em terras brasileiras, por um italiano. Já dizia lá o Bernardet que significa muito o Brasil comemorar o dia do Cinema Brasileiro (“nacional” implicaria muitas coisas) justamente quando foi feita a primeira filmagem, não a primeira exibição. Até hoje isso prevalece: valoriza-se mais a produção, menos a exibição. O fato de o primeiro realizador ter sido um estrangeiro também é curiosa: o Brasil importou muitos profissionais de cinema durante muito tempo – pouco houve ao contrário. O cinema veio de fora, pelas mãos de estrangeiros. Por essas e outras que “nacional” implica muitas coisas, inclusive por quem é feito e para quem é feito.

 

Semana passada tive o prazer de participar de uma oficina com o Fábio Andrade, editor da revista Cinética. Fábio é uma pessoa acessível (coisa difícil na área), as idéias e concepções dele sobre crítica cinematográfica casam muito com as minhas e foi uma delícia gratificante as discussões. Entre tantas coisas, uma frase dele me chamou a atenção justo no dia que lembrei que hoje seria dia do cinema brasileiro. Vou a ela: “Hoje, com a internet, a gente consegue assistir a praticamente tudo. Menos cinema brasileiro, esse é quase impossível de assistir.” Para um crítico, é imprescindível assistir a muitos filmes, a tudo que passar nas telas (e estiver disponível para baixar). E Fábio levantou uma questão que eu já trouxe algumas vezes aqui: a dificuldade em conseguir assistir ao que se produz no país.

 

Casos recentes de curtas e longas, inclusive catarinenses, realizados com edital principalmente, que tiveram inúmeras exibições pelo país e até no exterior e aqui nada – tipo caviar, a gente só ouve falar. Tal filme (curta/longa) ganhou prêmio não-sei-onde e foi exibido X números de vezes lá e acolá, aquela chuva de elogios (?!) nas redes sociais e afins e… nada de passar no Brasil e, no caso específico, Santa Catarina. Por quê? Eu me perguntei isso várias vezes. Medo? Descaso?

 

Antecipando um ponto, volta a questão: filme realizado com financiamento público que evita o próprio público? E os filmes que são realizados com financiamento público e cobram ingresso? Pois é. Reclamam da quantidade de cópias que os cinemas exibem de blockbusters e afins – a maioria dos cineastas brasileiros reclama disso – mas todos sabem que ainda existe a má vontade do brasileiro sobre o próprio cinema. Eu mesma já cheguei no cinema e preferi assistir a um filme estrangeiro, quando tinha duas opções e um era brasileiro. Se não todos, a maioria de nós já fez isso – alguns sempre fazem. Não pretendo abordar todos os problemas do cinema brasileiro, seria pretensão demais.

 

Quando pensava sobre o dia de hoje, lembrei do posicionamento do Paulo Emílio, destacado no seu trabalho escrito e professado por quem o conheceu pessoalmente. Todo filme brasileiro merece ser visto, dizia ele, e um filme brasileiro nos diz mais do que todos os outros de fora – afirmações com pequenas variações. Ouvi isso na graduação de cinema, assim como ouvi aquela máxima (que hoje me parece a mais covarde e rançosa) de que no Brasil, independente de qualquer coisa, o que sempre predominou foi o “fazer” filmes. Digo covarde e rançosa porque a realização sobrepõe-se a tudo, inclusive à exibição (reproduzindo a idéia da “origem” do cinema por essas terras), desprezando, desta forma, o seu próprio público que em contrapartida também o despreza. Concordo com Paulo Emílio, todo filme brasileiro merece ser visto, e todo filme daqui me diz muito mais do que qualquer outro de fora. Não, não acho um posicionamento nacionalista, ufanista ou qualquer bobagem da qual os fãs de Said poderão me acusar. É uma questão de formação, de consciência. Nem que seja uma questão econômica, afinal, a esmagadora maioria dos filmes brasileiros é paga por nós. Eu sei, dói tirar dinheiro do bolso para comprar o ingresso de um filme brasileiro se eu, de alguma forma, já paguei por ele. Bem, resta garimpar as exibições gratuitas. Mesmo que em alguns casos sejam raras e dificultadas, veja lá um curta de Santa Catarina que depois de rodar o país foi exibido em Fpolis num dia 30 de dezembro. Pois é, parece que não querem mesmo que o público brasileiro – e, vejam só, não estou falando de público de festivais! – assista aos filmes daqui. O motivo? Pois é, quem nos responderá?

 

Na minha família sempre ouvi o preconceito com filmes brasileiros: só tem putaria e palavrão. Nem falavam da questão do áudio, outro preconceito bastante difundido. Lembro que o primeiro filme brasileiro que assisti no cinema foi o do Menino Maluquinho, com a escola. Aliás, antes de entrar na universidade, só havia assistido a quatro filmes no cinema. Um deles daqui. A quinta vez que tentei ir assistir a um filme brasileiro (“O Xangô de Baker Street”) com minha mãe e minha avó (num ato de ineditismo total) fui barrada porque não portava a identidade. Vejam só. É uma peripécia conseguir assistir aos filmes brasileiros. E os cineastas reclamam de número de cópias, verbas para lançamento e cotas nos cinemas!

 

Me apaixonei pelo cinema brasileiro aos poucos. Foi uma picada aqui, outra ali e de uma hora para a outra me descobri apaixonada. Me encantava ver aquele povo, aquela realidade, aqueles lugares tão conhecidos nas telas. Sou até bem bairrista, vide a alegria em descobrir o “Burguesa” ou o “Ditadura Reservada”. Sou nacionalista, pelo jeito, porque gosto de garimpar paisagens brasileiras (na vida real) nos cinemas (um dia tentarei escrever sobre isso de “cinema” e “cinemas” – teoria em formação), garimpar sotaques, realidades. Sou bem bairrista em me apaixonar pela Curitiba em “Estômago”. Levo um soco no estômago por assistir “Menino do 5”, gravado em Salvador, e ver um espaço que não conheço mas com uma realidade que transcende os limites dos mapas. Me apaixonei perdidamente pela câmera cheia de destreza e consciente de uma linguagem própria do Glauber Rocha. Me apaixonei pelos críticos, historiadores e cineastas que tanto escrevem sobre o nosso cinema. Sou tão bairrista que olho com desconfiança para um Padilha que fez sucesso aqui e foi lá pra fora dirigir Robocop.

 

Poderia escrever mais parágrafos elencando minhas paixões. Vocês sabem, paixões são meu forte. Porém, essa paixão é ofuscada por algumas questões. Eu queria ver o cinema brasileiro independente. Queria vê-lo desatrelado dos intermináveis editais e financiamentos. Eu queria vê-lo maior de idade. Queria vê-lo superar-se – e aqui me refiro ao modo de produção e à linguagem. Cinemas novos não acontecem do nada. Cinemas crescem superando-se a si mesmos. É preciso crescer e não estou falando nos números, pois não sou a ANCINE para ficar divulgando números para tentar dizer algo que me parece sempre vazio. É preciso superar essa idéia de que “O Som ao Redor” ter tido cerca de 200 mil espectadores é um resultado “louvável”, tendo em conta o orçamento e a “competição” com blockbusters ou ainda por ser um filme “cult”. Para que ele se supere eu sonho com duas coisas: que os profissionais do setor tenham caráter e sejam realmente profissionais e que os que não são assim não ensinem os estudantes dos cursos de cinema a serem como eles – aquela velha história, pegar dinheiro para abrir produtora, meios de burlar orçamentos e prestações de contas, como viver só às custas de dinheiro público. É um círculo vicioso. Não criam nada novo com as obras e mantém um sistema falido (bem, “falido” é relativo, porque tem muita gente ganhando dinheiro com isso). Queria ver Meirelles, Furtado, Murat, Barreto´s family, Babenco e todo esse povo sem correr atrás de editais. Queria ver milhões de espectadores seja para “Pernas pro Ar” tanto quanto para “O Som ao Redor”.

 

Minha paixão é ofuscada por ainda não ter conseguido assistir a “O Som ao Redor”. Por ser, como disse o Fábio, tão difícil assistir aos filmes brasileiros. Mas marquei de assistir a “Elena” neste sábado, gratuitamente, em Joinville, numa exibição organizada por um grupo ligado a uma faculdade. Pra quem não sabe, muitos festivais só aceitam filmes que não foram ainda divulgados, por exemplo, na internet. E os realizadores acatam isso, preferem mandar seus filmes para inúmeros festivais a simplesmente colocá-los à disposição do público em geral. Público de festival, todo mundo sabe, é restrito e restritivo. Resta a pergunta: quem faz isso então produz para qual público? Para o crítico de revista, “crítico” de jornal e bonequinho, cinéfilos e alunos de cinema? Interessa formar platéia ou não?

 

Mas, caramba, falar de cinema com essa multidão toda nas ruas?! Pois é. Pensei nisso também. Cadê os cineastas? Cadê os cineastas nas ruas? Os cineastas brasileiros já testemunharam levantes, greves, fizeram “o que a TV não fazia”, mostraram o que as pessoas não viam. E cadê os cineastas quando temos o maior número de pessoas nas ruas em toda a nossa História? Cadê cineastas se posicionando, apoiando ou sendo contra? Acompanho algumas discussões de grandes cineastas e críticos e não vi uma palavra sobre o assunto. “Ah, mas essas manifestações estão sendo gravadas por milhares de celulares.” E isso tira a posição do cineasta? Então aquela imagem linda do povo sobre o teto do congresso com as sombras refletindo nas abóbadas não pode ser significada e ressignificada pelo cinema? É isso mesmo, colegas? Por que a comunidade cinematográfica se acovarda diante desta multidão? Tem medo que o dinheiro do próximo edital não caia na sua conta? Então já tivemos cineastas melhores, porque eles burlavam deliciosamente isso. Ah, não sabia? Será que estudamos cinema brasileiro mais do que aquela uma ou duas disciplinas perdidas em quatro anos de curso?

 

Normalmente, os filmes brasileiros mais aplaudidos são os que esmiuçam a nossa realidade. Ou que a ironizam, como o “Saneamento Básico”. Pois é, falar em cinema hoje com ruas cheias de gente insatisfeitas com (quase) tudo. Mas cadê o cinema pra protagonizar isso? Mostramos a realidade (quais realidades?) e nessa h♦ora damos um fade out? Brasil fazendo História e o cinema não sai da sua redoma?

 

Eu apoiaria menos festivais (muitos só comem dinheiro público também). Apoiaria salas de cinema públicas (“como na França” dizem tanto por aí). Apoiaria exibição de curtas antes dos longas nos cinemas. Será que os produtores e diretores apoiam? Ou está bom assim? E volto a dizer: quero cinema brasileiro independente. Quero editais de fomento, incentivo, não de sustento. O cinema brasileiro dá lucro, vamos superar esse mito e sair da zona de conforto.

 

 

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