Pré-estreia “Gritos do Sul”: porque fazer cinema

Eu raramente falo sobre o que faço, e isso pode ser um erro. Mas, é uma característica minha e se é considerado um erro pelos outros, não penso que devo mudar somente por isso.

Porém, hoje vim falar sobre o curta-metragem “Gritos do Sul”, e não digo “meu” porque cinema é arte coletiva e, apesar de assinar roteiro, direção e produção executiva, a obra não é só minha. Porém, eu que dei à luz a esta história que é tão importante pra mim e acredito que para mais pessoas (talvez até para esta cidade).

De cada história que eu crio, posso passar horas falando de cada detalhe, de onde veio cada personagem, cada fala, da narrativa, dos cenários. Seria entediante, imagino, por isso normalmente não falo. A obra nunca é “minha”, ela é de quem a consome.

“Gritos do Sul” é um curta-metragem que escrevi o roteiro ano passado, há pouco menos de um ano, durante a pandemia já naquele período que o pessoal tinha ligado o dane-se – alguns, né, porque muitos nunca deram a devida atenção a ela. Ele surgiu de uma imagem, a fotografia de um chalé que meu professor de Francês mostrou em uma aula, para onde ele iria com a família num fim de semana depois de meses isolados no apartamento onde moravam. Aquela fotografia povoou meu imaginário e não conseguia tirá-la da cabeça porque o local me pareceu assustador, uma decoração hiponga no meio do mato, que não me passou nenhuma confiança. Daria uma boa história de terror? Certeza.

Depois me veio um personagem, masculino, que encarnaria o pior que há nos homens, que ainda tentam (ou fingem que tentam) ser homens do mundo contemporâneo, como pais e maridos, que dividem o trabalho da casa (pero no mucho), que amam, mas vivem da grosseria sua de cada dia. Eu amo meus personagens masculinos porque acho que tenho um bom conhecimento sobre eles e consigo transmitir isso. Era algo que naquele momento também consumia meus pensamentos, como os homens tentam, mas não vão muito além dos homens do século passado – e como nós mulheres temos que, enfim, aceitar isso se quisermos nos relacionar com eles. (Ou não, meninas, exijam mais.)

Esse personagem masculino teria uma característica clássica dos homens: a agressividade que pode ser despertada por alguns fatores como a bebida alcoólica, a competição entre homens, etc., aquele homem que mede na força a sua vontade. Ainda não conheci um que não fosse assim, mesmo que em graus diferentes.

Mas, o que me interessava era a mulher que estaria ao lado desse homem, uma mulher como todas nós: forte de verdade, sem precisar testar nem provar nada pra ninguém, destemida, mãe e esposa, que trabalha, cuida da casa, da família, dirige, assume o controle de tudo a sua volta e ainda suporta relacionamentos ruins porque quer se realizar enquanto mulher na vida. Esse era um ponto importante para a história, quem prestar atenção ao filme, vai entender.

E eis que um dia, ainda às voltas com esses personagens, fui podar as árvores do jardim e decidi que queria uma motosserra na história. Quando escrevemos roteiros a qualidade mais importante é essa: ser decidida. Dúvida nenhuma escreve bons roteiros. Bem, a história estava pronta, o chalé, o casal e a motosserra. Gênero: suspense (ou o novo terror, porque hoje tudo é terror; sou filha dos anos 1990 e seu bom e velho suspense). Faltava um contexto e o conflito. Aí foi fácil.

O contexto seria o mundo pandêmico do Brasil que nunca saberemos o que deveríamos temer mais: o vírus da COVID ou o vírus da ignorância alimentado pelo governo. A escolha foi rápida. O conflito? A realidade ao meu redor. Dificilmente conseguiria imaginar algo  mais aterrorizante do que o que eu via todo dia nas notícias, na fala e atitude das pessoas. E aí se justifica o título (sou péssima com títulos, mas nesse acertei em cheio): os gritos que estão aqui no sul, nesse sul que se diz tão europeu, tão elitizado, tão melhor que o “resto” do país. 

Assim nasceu o “Gritos do Sul”, uma história que não fala sobre a pandemia de COVID, pois ela é o contexto que serve de estopim para o drama, mas que fala das profundezas da nossa realidade aqui onde as ideologias ganharam proporções de uma violência destemida e doentia. “Gritos do Sul” é um filme político que se posiciona de acordo com o que convencionou-se chamar, nos dias de hoje, de antifacista. Ele não trata de nenhuma ficção fantástica para falar da realidade, ele tem personagens desenhados pelo que vemos no dia a dia. 

Sobre posicionar-se, nunca abri nem abrirei mão. Toda arte é política, blá-blá-blá, é sim. Tem um gosto especial produzir cinema no Brasil, com posicionamento político não alinhado ao governo atual, que combate certas características culturais que corrompem quem poderíamos ser. “Gritos do Sul” foi um projeto aprovado no SIMDEC Apoio 2021 em primeiro lugar, com uma pontuação muito boa, foi produzido com equipe majoritariamente composta por mulheres e homens não heteros e todos profissionais de Santa Catarina, a maioria graduados e graduandos do curso de Cinema. É uma prática de fomentar, formar, qualificar e profissionalizar cada vez mais a nossa área, em Joinville, principalmente, que não se exime de mostrar a real importância das políticas públicas para a Cultura. Tudo isso é o discurso político do Gritos do Sul – é o nosso grito coletivo.

Não é só um curta antifacista, é um espaço de mudança e resistência. E resistimos inclusive à falta de interesse da imprensa e outros órgãos em divulgar o trabalho dos artistas de Joinville, pois não temos um centavo investido em divulgação e vamos trabalhar no “boca a boca”, no compartilhamento nas redes sociais, no contato direto com as pessoas que apreciam arte e cinema, que se interessam por valorizar quem resiste a esses tempos sombrios. Uma ópera de fora de Joinville, por exemplo, com ingressos a cem reais, a ser apresentada no local cultural mais elitizado da cidade tem espaço nas rádios e nos meios de comunicação, apoio de pessoas dos órgãos culturais, nós não. O grito do “Gritos do Sul” se fará ouvir, a contrapelo de alguns, quiçá da história, como diria aquele filósofo. 

Nosso curta está forte, agoniante, eu diria. Está na última etapa da pós-produção e já tem data de pré-estreia, que será no SESC de Joinville, espaço parceiro do cinema local, pois a cidade não possui sequer uma sala pública de cinema. Teremos ingressos para o público em geral e para quem quiser acompanhar recomendo o Instagram da produtora @oficina_producoes. 

Não consigo imaginar nada melhor do que fazer cinema e sou feliz por esta ser minha vida. Trabalhar com cinema em Joinville é uma realização pessoal que, felizmente, eu compartilho com bastante gente, inclusive com o público. Quem sabe em breve eu fale mais sobre o “Gritos do Sul”, mas só vai entender quem assistir.

O cinema que Joinville não vê

Lembrei de um dia, quando andava pelas ruas de Goiânia e me deparei com um cinema de rua: a porta ali aberta na calçada, meio da tarde, jovens entrando e saindo, cartaz das sessões nas paredes e no meio da rua, programação variada. Lembrei disso porque esses dias caminhava por uma pequena cidade da Argentina e, ao atravessar a praça, início de noite, fervilhava o cinema de rua em frente à igreja.

Como faz falta um cinema de rua! E pensar que eles existem em cidades grandes e cidades pequenas, como nos exemplos que citei. Como, inclusive, já existiu em Joinville como minha mãe sempre me contou. Lembrei disso tudo enquanto pensava esse árduo fazer cinema, com tantos obstáculos, mas tão imprescindível. 

Tenho três curtas-metragens produzidos, finalizados, prontinhos – viabilizados com verba pública – e não tenho onde exibi-los para as equipes e elencos que trabalharam neles, junto com alguns convidados. Essa, aliás, sempre foi uma crítica minha às obras de conhecidos e nas quais trabalhei. Depois de pronto, quem assiste ao filme? Ok, há a vida útil dele nos festivais, aos quais todas almejamos. MAS, eu só queria passar meu filme pra quem trabalhou comigo nele, aqui na cidade de Joinville onde eles foram gravados. É só isso. Só?

Bem, falem o que quiser, o cinema em Joinville ficou anos hibernando. Hoje temos muita gente produzindo, de várias gerações e formações. E daí falam tanto desses “tempos passados”mas Joinville, com sua alcunha de “maior cidade do Estado” (lembram?) não tem uma sala pública de cinema!

Um dia comentei num post do atual secretário de cultura de Joinville, que na ocasião estava passeando por Fpolis, para que ele desse uma olhada no CIC – Centro Integrado de Cultura e que este servisse de exemplo para a nossa cidade – quem sabe na destruída Cidadela Antarctica. Ele disse que era um belo exemplo, mas que dependeria do investimento do governo do Estado. Ah, mas, ah! E Joinville, uma cidade do tamanho e rica como Joinville, precisa do dinheiro do Estado para criar um espaço público para as artes?! E nem me venham com aquela opção de PPP na 9 de março com prédio pra rico e teatro pro “povo”.

Se tanto foi feito pelo cinema de Joinville, cadê? Ah, faziam umas exibições lá na (na época já não muito inteira) Cidadela Antarctica. Que fim levou? Onde estão as atividades contínuas? Onde está a perenidade das ações em cinema na cidade?

Ah, mas está no Plano Municipal de Cultura (aquele que fez dez anos e dele pouco se fez) que uma sala da antiga prefeitura (e, mais antiga ainda, rodoviária da cidade) seria uma sala pública de cinema! Começo deste ano a antiga prefeitura foi reinaugurada, depois de anos de restauração ou reforma (aqui nunca se sabe o que fazem com prédios históricos), sem nenhuma sala pública de cinema. Aliás, está lá o batizado Farol – que até agora os trabalhadores da classe artística não sabem bem para o que serve. 

Tem uma questão óbvia e ululante para os nossos gestores: os espaços culturais públicos precisam de investimento e equipamentos! Vejam os museus, o MAJ, o Sambaqui, a Casa da Cultura, andem por eles, falem com quem cuida deles, perguntem o que falta. Museu que não tem onde colocar seu acervo! Salas de auditório sem projetores e caixas de som! Tudo abandonado, sem estrutura nenhuma para uma apresentação de dança, para uma exposição, para um show ou exibição de filme. Por isso, caros gestores, os espaços públicos vão sendo abandonados pela população, porque vocês permitem que eles sejam sucateados – e nem nós, trabalhadores da arte e da cultura, conseguimos ocupá-los e chamar o público até eles.

Eu convivi com o cinema do CIC, filmes fora do circuito hiper comercial em cartaz, preço super acessível, localização boa pra todo mundo de busão. Ali assisti a alguns dos filmes que mais marcaram minha vida, fora do estadunidismo que sufoca essas salas de gente que só pensa em dinheiro fácil. Em Joinville o público tem que mendigar pra assistir aos filmes mais cotados da temporada – se eles forem brasileiros! Imagina se vai passar filme argentino, sul-coreano, italiano, francês (país onde nasceu o cinema!), italiano ou alemão! Nem filme alemão passa nessas terras que forjaram sua história num germanismo superficial.

Na sala de cinema do CIC quem quer fazer uma mostra, um cineclube, uma exibição qualquer, tem espaço. Porque é uma sala pública! Não depende dos interesses de quem abre sala de cinema em shopping para ganhar dinheiro. Problema com ganhar dinheiro? Nenhum.

Exatamente, vamos falar sobre dinheiro. Eu contratei todas as minhas equipes para trabalharem em Joinville, todos eles, sem exceção pagaram impostos para receber os cachês que lhes eram devidos. E não é pouca coisa, não. Eu pago meus impostos de produtora aqui na cidade. Tudo o que consumimos, entre transporte, alimentação, hospedagem, itens e serviços paga seus impostos aqui na cidade. E então, como fica? Para onde vai todo o dinheiro que as produções de cinema e audiovisual estão investindo na cidade? Por que não temos nada, nem um centavo disso, investido no mínimo que precisamos aqui?

Sei que volta e meia discutimos algumas questões sobre arte e cultura e, ainda, essa gente nos menospreza e blá-blá-blá. Nós produzimos, nós geramos emprego e renda. Nós contribuímos com a economia da cidade – e com muito mais, porque nem tudo se resume a dinheiro, mesmo numa sociedade capitalista. E até quando acham que vão nos desrespeitar? Até quando pensam que esta cidade foi feita para dois ou três sobrenomes? 

Felizmente as eleições do Conselho da Cidade já anunciaram que as coisas estão mudando. Felizmente há uma onda que não vai morrer na praia de um Novo Cinema sendo feito em Joinville – eu até diria “só não vê quem não quer”, mas, infelizmente não é bem assim. 

Cinema não existe sem público. Cinema não é para exibir aos amiguinhos e tá tudo bem. Não tá tudo bem. Ah, mas o SESC! Sim, o SESC é a melhor sala equipada e acessível, em termos, para exibir filmes. Mas o SESC não é uma sala pública de cinema e tem sua programação também. Até quando vamos remendar os problemas evidentes?

É muito bonito, poético até, isso de sussurrarem as coisas, das críticas veladas e silenciosas, os tapinhas nas costas – que é como fazem muitos da arte e cultura de Joinville. Tenho a forte impressão que essa prática não surtiu resultados em seus mais de cento e tantos anos de cidade e que ela não se sustentará mais diante de uma população diversa, composta por muita gente que vem de fora tentar a vida aqui porque ela parece terra de oportunidades – não pode mais ter oportunidades só na linha de produção. A cidade não é de uns poucos e seus nomes e sobrenomes. A arte e a cultura não são só feirinhas na praça e enfeite de natal na rua.

Nós estamos organizados e bem armados. Eu produzo aqui e a economia não vai me deixar de lado – enquanto dá isenções para grandes indústrias. Quando vi o governador visitar Joinville, não encontrei agenda com o secretário de cultura exigindo um CIC em Joinville – soube que o governador assinou duplicação para a rua que leva à cidade industrial. Se cada uma e um que trabalhou nas minhas equipes cobrasse o investimento do imposto que foi deduzido do seu cachê nos equipamentos públicos de cultura da cidade, já teríamos um avanço. Se cada um e uma que trabalha com cultura tivesse a visão da força do seu trabalho, aí sim as coisas mudariam.

E eu não vou deixar ninguém em paz enquanto não tivermos uma sala pública de cinema, onde tenhamos diversidade de programação, onde tenhamos cinema joinvilense na tela, onde tenhamos cineclubes e encontros e mostras – e tudo acessível. Tenham minha palavra.

Feio é passar fome, Joinville

Ao sair de casa naquele sábado de chuviscos, de máscara, caminhando pela beira-rio, deparei-me com a surpresa. De longe, pensei ter visto uma tarrafa ser lançada no rio Cachoeira. Surpreendida pela visão, um segundo lance confirmou que era mesmo uma tarrafa que se espatifava contra a turva água do rio, logo ali atrás do prédio verde, aquele prédio que fica num lugar de destaque na cidade, dizem que sobre o rio, o que não é verdade.

Continuei caminhando solitária, como gosto, e me aproximei do tarrafeador. Ele vestia-se com roupa impermeável, como pedia o dia e a atividade que ele praticava, e ao lado jazia uma zica em lamentável condições. Deparei-me, então, com minha incredulidade: dois peixes gordos caíam da rua tarrafa no chão úmido da beira do rio. Eles se debatiam para minha incredulidade e de mais dois que assistiam à cena a poucos metros. Éramos três espectadores daquela cena inusitada no centro da cidade, a poucos metros da nobre e imponente prefeitura da cidade, que fica ali sobre o morro, na frente do prédio verde, como de atalaia – dos cidadãos, não dos peixes.

Estava já próxima do cidadão joinvilense que praticava aquela façanha, digo, pescaria, quando me senti atarantada. Ele, sorrindo, via que era o motivo da minha curiosidade, e dos outros dois da plateia, e declarou “Dois dias de almoço garantido!”. Havia júbilo naquele sorriso triste. Dois peixes gordos, porém pequenos, garantiam o que comer na mesa de um brasileiro, cidadão joinvilense, que vê os preços dos alimentos básicos explodirem há meses. Eu parei por alguns segundos, ouviu-se o silêncio das caras pasmas. Ele baixou os olhos e recolheu a tarrafa para um novo lanço – do qual ela voltou vazia, assim como dos seguintes. Teria almoço somente para os dois próximos dias, mesmo.

Segui meu caminho sem tracejado pelas calçadas, amparando-me nos pensamentos. Uma cidade grande, uma cidade operária, uma cidade que se quer nobre, mas não é. Uma cidade enclausurada nos seus apartamentos de elite com janelas que vêem o horizonte, mas ignoram o que jaz aos seus pés. Uma cidade que não olha no espelho, que não elege quem a representa na maioria. Na volta, subi a rua da prefeitura, caminhei até a entrada, onde há um varandão com vista para o rio, para a praça do chafariz, para o prédio verde, para as costas do monumento à barca, para a bandeira do Brasil hasteada na praça que leva seu nome. Fiquei ali por um tempo olhando aquele pequeno pedaço da cidade que não a representa em nada e onde tudo começou. Ali construíram as primeiras casas, ali o lamaçal fez morada a um povo miserável que foi trazido com falsas promessas. O rio abandonado. A praça do chafariz, sem chafariz, e recuperada. A barca, que a mim lembra o engodo, jamais o sucesso. Aquela triste bandeira tremulando fraca, como sem fôlego. E tentei ver além, tentei ver ao pescador inusitado atrás do prédio verde, tentei buscar os bairros onde a vista não alcança, dali da vista do prefeito. Não se vê, é verdade. A vista daquele varandão só vê o falso e o artificial.

Dias depois, a notícia da derrubada do prédio verde. Por quê? A verdade ou o que contam? Porque ele é feio, é a verdade. Contam que é para obras de mobilidade (sem comentários). A perplexidade tomou conta de mim. A decisão do prefeito logo foi apoiada, ele é feio, dizem os cidadãos, do calor dos seus apartamentos com vista para as serras, nas redes sociais. Não é permitida feiúra na janela da prefeitura. Por isso repaginaram a praça do chafariz e plantaram meia dúzia de flores no canteiro do monumento à barca. O prefeito e a vice esses dias haviam sido fotografados no varandão em frente a prefeitura, “vendo” a cidade. O prédio verde enfeiava a fotografia.

Por alguns dias me perguntei se seria plano de governo extirpar a feiúra da cidade. O que fariam com os feios e feias? Teremos vale-cirurgia estética, quem sabe. Humor ruim, eu sei. Ou só incomoda o feio que suja a vista da janela da prefeitura? Feio é passar fome. E isso nem o prédio verde esconde, senhor prefeito. Feio é pedir para os outros fazerem o que sua responsabilidade – pedir doação de alimentos para quem vai se vacinar, para serem doados aos necessitados; pedir pra empresas plantarem flores nos canteiros da cidade e recuperarem praças; pedir para empresas trocarem o piso da Casa da Cultura. Isso é muito feio: não assumir suas responsabilidades.

Repito: feio é passar fome. E o joinvilense passa fome, mas, das suas janelas não é possível ver isso. O feio, em Joinville, nos ronda, é só olhar.

A morte do Cinema Brasileiro

Ontem foi o dia da Morte do Cinema Brasileiro. Foram anos gloriosos, alguns não tanto, não por culpa dele mesmo, é claro. Fazemos e assistimos ao cinema brasileiro desde aquela famosa filmagem na Baía da Guanabara, em 19 de junho de 1898. Para além da discussão de datas, se devemos comemorar a primeira filmagem ou a primeira exibição, a vida e a permanência do nosso cinema sempre esteve ameaçada.

Ontem faleceu o ator Paulo Gustavo, vítima de covid-19. Um dos atores de maior sucesso do nosso cinema, campeão de bilheteria, popular e talentoso. Considero, portanto, digno marcar a data como a morte do Cinema Brasileiro. Os últimos suspiros foram Bacurau e Democracia em Vertigem, provavelmente, antes de alçarem ao poder este governo de genocidas. Morre com Paulo Gustavo toda a última Era brilhante e profícua do cinema que tanto nos orgulha, pois desde a última eleição o cinema tem sido paulatinamente destruído e sufocado.

O mesmo governo que faz campanha pela morte dos seus cidadãos, incitando violência, caos, irresponsabilidade e tratamentos ineficazes diante de uma pandemia é aquele que destruiu as políticas públicas de cultura, censura e censurou obras e artistas e propaga o ódio à esta classe trabalhadora. Nem quero comentar a desfaçatez do presidente em dar uma nota de pesar pela morte de Paulo Gustavo. Junto a ele foram tantos outros artistas, compositores, cantores, atores e atrizes, técnicos vítimas de um vírus que não teve nenhuma política pública de contenção por parte do governo federal (e de tantos governos estaduais e municipais). Vale ressaltar que instituições internacionais alertam para este assassinato da nossa cultura, apontando paralelos com Rússia, Turquia e Hungria, onde não há leis explícitas de censura, porém o controle silencioso de tudo que é produzido. Dizem elas que estamos praticando a mesma coisa.

Sempre estudamos, na História do Cinema Brasileiro, que o governo Collor foi a “pá de cal” no cinema, quando tivemos um ano sem produções de longa-metragem. O setor todo sentiu, de uma hora para outra, o fim das políticas públicas e apoios à produção cinematográfica. Depois disso, nosso cinema sobreviveu aos anos Itamar, FHC e floresceu nos anos do Lula e da Dilma. Tivemos leis aprovadas, criação do Fundo Setorial, uma real e efetiva estruturação de toda a cadeia do setor, forte presença da ANCINE e de várias regulamentações, editais, patrocínios e financiamentos que permitiram ao setor crescer e se desenvolver. Permitiram uma ligação inédita com o público, permitiram filmes como os que o Paulo Gustavo fazia, foi nessa época que os recordes de bilheteria da década de 1970 foram batidos. O nosso cinema já era reconhecido lá fora (não que isso importe), e o que mudou foi termos um aumento na qualidade e na quantidade de filmes produzidos. Foi nessa época que “ganhamos” espaço na TV por assinatura e nas salas de cinema, nos inúmeros festivais que inundaram o país, e cresceram os cursos na área. Nunca fomos um cinema vira-lata, mendicante, pobre.

As comédias, inclusive, são nosso ponto forte. Campeãs de bilheterias, são elas que falam mais diretamente com o público, vivem cravadas na nossa cultura, nos hábitos e costumes. Por isso mesmo, não são elas que fazem tanto sucesso lá fora, porque é sabido que as comédias tendem a tratar de questões mais corriqueiras e entranhadas numa cultura, sendo, por isso, às vezes mais difíceis de serem compreendidas por pessoas de culturas diferentes daquelas onde foram produzidas. Os atores e atrizes desses filmes caem no gosto popular, participam de tantos programas e especiais, inclusive na TV, que são facilmente adorados e reconhecidos. Quando são bons, é claro, e esses não nos faltam. 

Porém, tudo mudou. Antes mesmo da pandemia, projetos que haviam sido aprovados ficaram sem recursos e sofreram censuras e o Ministério da Cultura, criado em 15 de março de 1985 foi aniquilado (no governo Temer houve a tentativa de acabar com o Ministério, revertida sob pressão popular). A ANCINE é vítima de um desmonte sem precedentes, a Lei Rouanet (que só mudaram o nome), está paralisada, não contratam avaliadores, os projetos estão represados nas mãos de um único indicado (ex policial militar). A Cultura, de forma geral, é o bode expiatório deste governo de genocidas, pois é do que eles mais têm medo. Eles têm medo do que somos capazes, porque nós somos muito capazes. Curiosamente, com a pandemia não foi só a produção nacional que sofreu congelamento, pois até mesmo você que ama seu super sucesso clássico hollywoodiano ficou sem ter acesso às salas de cinema – enquanto o vírus circular livremente, ninguém terá acesso à elas e poucas sobreviverão abertas depois.

Quando falamos de um governo que tem como política a destruição – de vidas, da educação, da cultura, do sistema de saúde, do meio ambiente – é a isso que nos referimos. Ontem o cinema brasileiro morreu junto com Paulo Gustavo. Não vemos no horizonte sequer a possibilidade de retomada do setor. Não é apenas um problema de não termos salas de cinema e festivais abertas para exibirmos nossos filmes: a produção, as gravações estão todas paradas. Quer dizer, quem trabalha com cinema, e tem consciência que entrar num set hoje é fazer o vírus circular, está paralisado. Infelizmente, também dentre nós há aqueles que insistem em “produzir mesmo assim” e sequer usam os EPIs adequadamente. É lamentável, ainda mais vindo de pessoas que dizem ser contra o atual governo e seus desmandos, que tenhamos entre nós essa gente irresponsável (é a única palavra que me ocorre). Contudo, a realidade do setor é a paralisação, é a falta de trabalho, é a necessidade. Muitos profissionais do setor abandonaram suas funções e buscaram trabalhos os mais diversos para manter seu sustento, esta é a mais cruel realidade, até porque os auxílios do governo, previstos para a área da Cultura, foram insuficientes e mal distribuídos. 

O problema se dá que queremos voltar a trabalhar, só isso. Não estamos pedindo esmola nem nada (a recordar o que tanto falam dos trabalhadores da Cultura). Queremos que o número de contágios e o número de mortes seja controlado com medidas eficazes oriundas do setor público – e, não posso deixar de lembrá-los, da própria população. Sei que há, apesar de não saber o que se passa na cabeça de pessoas assim, quem defenda que não precisamos de cinema aqui no Brasil. Essa gente não se importa com a produção cultural do próprio país, acredita que não temos nada de qualidade, prefere assistir a outras coisas (de origem e qualidade duvidosas, inclusive) e, para piorar, ignora que somos muitos trabalhadores que vivem disso. Assim como uma pessoa escolhe ser advogada ou encontra sua vocação no design, na engenharia, nas vendas, e em qualquer outra profissão, nós temos o nosso conhecimento, formação e amor à profissão no cinema. No mínimo, é ignorância e egoísmo achar que não temos direito a isso.

Não temos previsão de retomada. Aliás, curioso usar esta palavra: “retomada”. É por ela que conhecemos o período que segue o “fim” da Era Collor. O Cinema da Retomada é o período quando voltamos a respirar, retomamos o fôlego, mostramos a nossa cara – o marco, inclusive, é um filme muito popular e excelente: Carlota Joaquina. Fazemos rir e rimos de nós mesmos. Hoje a realidade nos cala, não duvido que na próxima “retomada” nós ainda riremos muito disso tudo – o talento do nosso cinema e dos nossos roteiristas, diretoras e diretores, atores e atrizes nunca deixa de nos surpreender. Acredito que antes disso ainda entraremos em choque com os documentários e ficções que nos levarão a refletir sobre tudo isso que temos passado: com socos no estômago e tapas na cara. É, afinal, para isto (também) que estamos aqui.

A maior culpa é do governo instituído e composto por genocidas (lembrem, ninguém faz um governo sozinho). Porém, cada um de nós que faz o vírus circular também é culpado. Muito culpado. Cada um de nós que tomou atitudes irresponsáveis (indo à praia, à festas, ao supermercado, ao bar porque “o dia está tão lindo”, dizendo “ah, eu já peguei mesmo” e tudo mais que nem tenho mais paciência para listar) é responsável pela morte do Paulo Gustavo e dos mais de quatrocentos mil mortos. Chega de querermos só responsabilizar os outros, né? O desemprego, a crise e as mortes são culpa de cada um que não teve consciência e tornou-se cúmplice do governo de genocidas. Nós só queríamos trabalhar com segurança. Só queríamos viver este sonho que é trabalhar com cinema e audiovisual, no Brasil. Só queríamos estar vivos. Enquanto estamos paralisados, sem produzir, muitos de nós morrem, como o Paulo Gustavo e o nosso Cinema. Eu quero crer que voltaremos, um dia, com toda a força que tentam nos tirar. Hoje, eu só me revolto e lamento o sucesso que os genocidas e seus cúmplices alcançaram. 

Quando for a data da Nova Retomada eu voltarei com alegria e desforra a escrever aqui.

Cabeça no travesseiro

Hoje não acordei bem. Com um dia cheio e tantas coisas para fazer e resolver, tudo em casa e online. Mas, eu não estava bem, o corpo cansado, a dor de cabeça e a frustração. Na agenda vi horas depois que era o 344º dia do isolamento rigoroso. Antes, deparei-me com o post de uma conhecida do Facebook que narrava também ter acordado mal, atingida pelo isolamento. Em pouco tempo vi outros comentários, de nós, pouquíssimos, que temos seguido isolamentos radicais e como nos sentimos derrotados. Não há vacinas, os outros não se importam com a vida, os governantes preferem a morte, o peso acachapante de um ano de pandemia, como as notícias nos têm derrotado dia a dia, a sensação de impotência diante desta realidade – e muito mais.

Nunca proteger a quem amamos fez tanto sentido, nunca tudo aquilo que é, de fato, supérfluo se fez tão ausente. Por um tempo, ao longo deste quase um ano, eu me debatia (em silêncio) sem entender a estupidez e a ignorância humanas. Pensava que talvez o vírus, tão invisível, não gerasse a resposta de precaução necessária nas pessoas. Procurava mil e centenas de respostas para este show de horrores que temos presenciado há meses, praias cheias, pessoas indo ao shopping, restaurantes, bares e baladas clandestinas, os xingamentos aos professores “que não querem trabalhar”, a disseminação de mentiras (que matam). Fui silenciando aos poucos, até que calei-me. Entendi, finalmente, que não há razão, razoabilidade nem lógica que ultrapasse o limiar da cegueira coletiva.

Relacionamentos terminaram no isolamento, não porque a pandemia causou o fim, mas porque ele já estava determinado – principalmente não falta de respeito pelo outro. Enquanto uns punham fim aos seus amores, porque preferem preservar a vida, outros tantos relacionamentos começavam, em pleno auge de um vírus altamente contagioso! – bem, esses não dão tanto valor à vida. Os mortos não são crianças nem jovens, e sucessivamente têm sido desprezados em números e números nos jornais diários. Enquanto morrerem velhos, está tudo bem. E milhares de idosos convivem com este desdém coletivo social, cientes de que a vida deles não vale nada para o resto – e que nem vacinas estão garantidas para salvar suas vidas.

Havia o medo de uma segunda onda, quem sabe uma terceira. E depois de uma semana (justo a semana antes do Carnaval) em azul – baixa do número de contágios – Santa Catarina cai no precipício, com o sistema de saúde colapsado. Mas o comércio peita decretos, as baladas continuam acontecendo e você foi até tomar um café na confeitaria. Entre ondas, naufragamos todos.

Abri o portão para receber uma encomenda e novamente uma entregadora estava sem máscara. Ao ser questionada ainda quis discutir, “não vou entrar na tua casa”. Ronda meus pensamentos que não são somente os governantes os culpados pelo nosso fim, mas toda essa população que corrobora os discursos abusivos e criminosos dos governantes. Sair algemado do Planalto é pouco para aquele lá, mas e para todos e todas que estão ao meu redor? E para cada um que publica suas fotos e stories ignorando que vivemos a pior pandemia do último século? Bem, só posso falar desse mundo virtual no qual convivo com vocês porque não tenho – felizmente – convivido com vocês presencialmente. Pelas telas eu não corro risco de me contaminar, mas o nojo e o desprezo pela irresponsabilidade de vocês cresceu tanto que nem vejo-os mais. Eu cancelei vocês da minha vida.

O corpo não respondeu bem ao dia, a cabeça voltou a doer depois que passou o efeito do remédio, a chuva não acalmou os ânimos e sinto há meses essa vontade louca de andar. Só isso mesmo, sair andando – é o que tenho sentido falta no cotidiano. Poderia fazer a lista do que me falta nesse isolamento, é curta e pungente. Porém, ao final do dia, respiro, faço o balanço do que resolvi e do que ficará para amanhã, pressinto que a noite me fará bem (longe da realidade) e sei que amanhã será igual. 

Se penso em quebrar um pouco a rotina de 345 dias no isolamento radical? Se penso que estou “adoecendo” física e psicologicamente? Não. Força de vontade e consciência não me faltam – e não me faltarão até o fim desta longa pandemia. Esta que será ainda mais longa por culpa de todos aqueles que decidiram ser estúpidos e ignorantes – sabendo que a conta de milhares de vidas está nas suas costas. Eu, como sempre disse minha mãe, posso encostar a cabeça no travesseiro e dormir tranquila. Aos pouquíssimos que estamos seguindo o isolamento, ter a razão não nos conforta, porém, nos une. Saibam disso.

Lúcia morreu em vão

Diante de tanta indecência e imoralidade, fica difícil entender o que nos causa mais dano. Indecência e imoralidade, entendam, não é sobre gente pelada e cenas de sexo, não. Isso aí é até um refresco para os olhos nos tempos que vivemos. A indecência e a imoralidade ficam mesmo por conta das atrocidades dos governos e da irresponsabilidade desenfreada do povo. Por primeiro, quero dizer: você, querido e querida, que tem respeitado o isolamento social, que sabe que não precisa ir pro shopping, pra praia, pra academia, subir o mirante, fazer churrasco com os amigos, sair pra namorar, que só sai pro essencial (supermercado, farmácia e tal) devidamente paramentado de máscara, luva e álcool em gel porque protege e respeita quem ama e aos outros, você não está sozinho. Esses dias ainda pensei “mas será que eu estou exagerando?”; não, não estamos exagerando, somos nós que estamos garantindo que este Estado, que esta cidade, que este país não esteja numa situação ainda muito pior.

Mas, afinal, como sentir-se diante de um governo que tem por política de Estado a morte? Como sentir-se sã diante do incentivo ao extermínio de idosos e pessoas com doenças crônicas? Como ser saudável e preocupar-se com o corpo e com a mente quando o país se empenha em matar a periferia? Como? O tempo sempre faz com que entendamos melhor as coisas, porém, ninguém precisava de tempo para saber que este criminoso que chamam de presidente era só isso mesmo, um criminoso. Esses dias lembrei de quando acompanhei angustiada o julgamento do STF, sobre o crime de racismo que o Bolsonaro cometeu: eles o absolveram. Tomara que se arrependam até a alma, pois colaboraram em deixar livre um criminoso que tornou-se presidente (sob o aval de boa parte do povo, nunca esqueçamos) e hoje os ameaça semanalmente.

A morte, atirar brasileiros e brasileiras à morte, é o princípio deste governo. E, não, não tem nada a ver com a economia. É o prazer sádico de enviar à morte pretos, pobres, velhos e doentes. Por pouco, não iriam os judeus junto. Exceto esta ausência, sabemos bem com qual lista de extermínio ela se assemelha. É extermínio, não tem outra palavra. E, por falar em extermínio, lembrei-me várias vezes, nos últimos tempos, da Hannah Arendt. Como não lembrar dela, não é? Esta confusão absurda entre público e privado, este povo que cumpre as ordens dos seus superiores sem questionar-se. Então, se ele manda fazer algo imoral e criminoso, você fará? Ah, claro, o amor ao emprego. Se fôssemos mais éticos, como trabalhadores, obrigaríamos, à força, que os patrões o fossem também. Mas, negligenciamos nossa moral. Calamos e procedemos feito gado com medo, sabendo, porém, que ao final só nos caberá o abate.

Enfim, tudo isso para falar só uma coisa… da Lúcia. Conhecíamos a Lúcia faz muitos anos. Em algumas ocasiões minha mãe foi tratada por ela, que atendia os curativos, pontos e tal no hospital da Unimed, em Joinville. Foi um espinho um dia, uma mordida do cachorro no outro, um corte de qualquer coisa acolá (minha mãe é sapeca, eu sei). Ao longo dos anos estabelecemos uma relação muito boa, Lúcia sempre conversava durante os atendimentos (eu e minha mãe temos esse costume também). Mesmo quando não era atendida no curativo, víamos a Lúcia, pois a sala do curativo era próxima dos consultórios e inúmeras vezes lá estava ela quando passávamos. A última vez que a vimos foi final de janeiro, começo de fevereiro deste ano. Levei minha mãe para uma consulta e ela passou por nós, sempre gentil.

Minha mãe, há mais de setenta dias sem sair de casa, sem contato com ninguém além de nós, há meses acompanha a situação da pandemia pelo mundo. Lamentou muito a situação na Itália, onde ela esteve recentemente. Sei que sofreu calada vendo as imagens e os números de Manaus, para onde ela já viajou e voltou encantada com o povo, com a natureza, com tudo. Com Guayaquil não foi diferente, até tentei evitar que ela visse os vídeos que rodaram a internet. Ela via, de longe, lugares que ela conhece, sempre lembrando das pessoas que ela conheceu por lá, pois, sim, mamãe faz amizade onde quer que ela vá.

Quando li, há uns dias, do falecimento da Lúcia, enfermeira de Joinville, não sabia se devia contar pra minha mãe. Lúcia, enfermeira, que tantas e tantas pessoas cuidou durante anos e anos de profissão, ficou dois meses internada com covid-19. Não, Lúcia não era idosa nem tinha comorbidades, fatos tão queridos pela imprensa local para justificar as mortes. Lúcia não foi a única profissional de saúde da cidade que morreu decorrente da contaminação por covid-19. Lúcia morreu, vocês entendem?

Lúcia morreu por causa de você que vai pro shopping. Lúcia morreu porque você achou que era só uma gripe e foi pro hospital pegar um atestado, mas não lavou as mãos direito e pegou nos trincos das portas, porque você espirrou sem máscara. Lúcia morreu porque você acha que não pode descuidar do corpinho e exigiu a reabertura das academias. Lúcia morreu porque você achou o cúmulo o Estado intervir no fechamento da igreja e hoje vai à/ao missa/culto de máscara, só por obrigação, mas abraça todo mundo, e fica, sem máscara, conversando na porta da igreja. Lúcia morreu porque, é claro, a economia não pode parar. Lúcia morreu porque, “e daí?”. Lúcia morreu porque os ônibus precisam voltar a rodar, porque os pais não aguentam mais seus próprios filhos dentro de casa e as aulas, é óbvio, precisam voltar, expondo professores, funcionários e o escambau, afinal, a economia, é claro. Lúcia morreu pela estupidez humana que abriu baladas e bares pro pessoal poder encher a cara e ouvir música. Lúcia morreu. Lúcia morreu porque estas gerações nunca passaram por uma pandemia nem por uma guerra e, sem a experiência empírica, não têm capacidade intelectual de compreender uma nova situação que se apresenta. Lúcia, a Lúcia morreu.

Lúcia morreu para satisfazer a ganância de alguns e a ignorância violenta de um Estado que vai perdurar apesar das mortes, dela e de milhares de brasileiros. Lúcia morreu porque há alucinados a negar os fatos, as estatísticas e a Ciência. Lúcia morreu porque você acha que tudo bem não sossegar o facho e passar uns finais de semana em casa. Lúcia morreu e as pessoas não entendem que recuperar onze mil diariamente não é número a ser comemorado quando nas mesmas vinte e quatro horas confirmamos mais trinta mil casos e mais de mil mortes. A conta não fecha. E, acima de tudo, essas vidas não voltarão. Assim como a doença é dolorosa, de lenta recuperação, aniquila a pessoa, além de usar métodos invasivos para garantir a sobrevivência. Quem, por livre e espontânea vontade, assume que não se preocupa com isso? Ah, sim, só os atletas que acreditam que com eles será só uma gripezinha. É a política de Estado: matar, matar, matar. Você que hoje vai ao shopping e à academia, você pratica a política de Estado assassina. Você que não pensa nos seus funcionários e cumpre as regras meia boca, você pratica a política de Estado assassina.

É só entrar num comércio, num colégio, no shopping, na loja de departamento, num escritório. Em nenhum lugar você verá as pessoas seguindo as normas à risca. Vide as máscaras no pescoço ou no bolso, a economia no álcool em gel, as conversas e risadas, etc..

Nós vivíamos num mundo tão difícil, no qual a luta pela conscientização contra o machismo, a violência, o racismo, as desigualdades tomavam nossos dias. E, hoje, a pandemia só evidencia como a ignorância e a estupidez são latentes – e a política de Estado é assassina. Não me venham querer fazer crer que tudo será melhor, depois. Lúcia morreu, em vão.

Não há normalidade nos nossos dias

Duas frases têm me cansado bastante nestes tempos de pandemia. A primeira, otimista aos raios da irritação, “Tudo vai passar (logo)”; a segunda, inocente na sua ignorância analítica, “seremos outros depois disso tudo” (ou equivalente com “tudo vai mudar”). Além das previsões estapafúrdias que tenho visto por todos os lados, além da discussão política sobre os limites do Estado sobre nós. Discutem sem olhar o básico.

O ponto principal, me parece: não estamos vivendo uma situação normal. Portanto, não finjamos que está tudo normal, não sigamos nossos dias como se houvesse normalidade, não trabalhemos como se fosse uma situação igual à anterior. A minha geração, a geração dos meus pais, as gerações depois de mim, nenhuma viveu uma pandemia. Os nossos idosos (tão, mas tão, maltratados pelas suas famílias, pelo governo, por tudo e todos) acima de uns oitenta anos podem ter lembranças de epidemias de tifo e outras, quando as pessoas, naquela época, passaram por situação semelhante.

Como exigir normalidade numa situação extraordinária? Como manter dias e horários? Como pressionar e manter prazos e datas? Trabalhos e estudos online, compras por entrega, bancos com atendimentos restritos, protocolos para todos os lugares. Onde está a normalidade? Máscaras, meus queridos… não há nada de normal nestes dias.

E as dicas e reportagens sobre o que fazer na quarentena? Livros, filmes, séries, receitas… eu dava conta disso tudo, antes da quarentena. O volume de trabalho, problemas e responsabilidades na quarentena acabaram com meu “tempo livre”. Admiro quem está aproveitando a quarentena em casa até para aprender a cozinhar, maratonar séries e fazer cursos online. A quarentena acabou com tudo isso pra mim – e, por favor, cozinhar e tantas outras coisas cotidianas sempre fiz. O que faziam antes da quarentena essas pessoas que fizeram seu primeiro pão ou bolo em casa? O que faziam da vida antes da quarentena esses pais e mães que não aguentam seus próprios filhos? O que faziam da vida antes da quarentena essas pessoas que foram ler tutoriais de como limpar a casa? Viviam no shopping? Não saíam da academia? Confesso que prefiro não conhecê-las (nem às suas respostas). Que a quarentena mostrou o quão vazios são muitos dos indivíduos contemporâneos, já sabemos.

Ninguém estava preparado para a quarentena global, eis a verdade. Os sistemas de saúde muito menos. Mas, tudo faz parte de um processo de adaptação temporário. Não se pode transferir em pé de igualdade a realidade presencial para a virtual. Toda adaptação prevê considerações sobre os meios – posso falar da minha área, como a discussão de adaptar um livro para o cinema, são meios diferentes, impossível apenas “reproduzir” a história escrita em imagens. Mas, as pessoas não pararam para refletir.

Aliás, talvez a quarentena devesse ter sido apenas isso: parar e refletir. Deveríamos todos ter parado absolutamente tudo, e ficado em nossas casas, reclusos e contemplativos, consumindo apenas o essencial (comida, água e tal, nada perto das MPs desvairadas do pseudo-presidente). Não há que se discutir a economia. Paremos, apenas isso. Somos seres humanos, apenas isso. Humanos que, mesmo diante de tecnologias e ciência tão avançadas em plena segunda década do século XXI não sabemos direito o que fazer diante de um vírus invisível (e que é negado por muitos, não apenas por ser invisível). Nos falta, em geral, momentos de reclusão, contemplação e reflexão. É o que a vida contemporânea nos quitou. Neste momento é crucial pensar, e pensar novamente. Repensar o modelo de sociedade na qual vivemos, repensar nossos hábitos (e não esses discursos fúteis das redes sociais), repensar nosso modelo de trabalho, repensar nosso modelo de ensino (e aprendizagem, às vezes esquecemos que é uma via de duas mãos), repensar nossos espaço habitacional, repensar nossos hábitos alimentares, repensar nossas atitudes em relação aos outros. Repensar tudo, enfim.

Mas, como contemplar e refletir enquanto temos que assumir papéis que não nos cabem, diante de meios que desconhecemos (e que não são feitos para nossas necessidades!), na tensão e angústia da vida e da morte, na preocupação com os que amamos, com responsabilidades que acumulamos? Impossível. E, assim, nos quitaram, também, nossa humanidade. Somos seres humanos, apenas. Não somos máquinas. E, num repente, reproduzimos uma relação homem x máquina mais atroz do que a Revolução Industrial (naqueles tempos, dizem uns, havia justificativa para não se saber ao certo os efeitos da máquina sobre o ser humano – hoje, não há nenhuma).

Esse mundo contemporâneo do século XXI mostrou-se estúpido e embrutecido. Estúpido, visto que não aprendeu nada com os últimos milhares de anos. Embrutecido, visto que acha que se garante tanto com suas máquinas e tecnologias e ciência, mas, na verdade, está apenas assustado e sem rumo.

Parem o ENEM, parem os vestibulares, parem as fábricas, parem as escolas, parem as instituições, parem as igrejas, parem as praias, parem (os governos), parem as academias, parem os shoppings, parem tudo. Apenas, parem. Não há normalidade nos nossos dias. Para voltarmos à vida, teremos que estudar uma outra realidade. E, não, não acredito que será tudo diferente porque as pessoas, essas mesmas que não vêem motivos para pararmos, continuarão a existir. Se não pararmos para refletir sobre o hoje, o amanhã será muito pior – passará longe desses olhares otimistas e inocentes.

(Quase caí na tentação de terminar com um “quem viver, verá”, mas, não só pelo clichê, não quero desrespeitar as centenas de milhares de mortos; nem quero ser mais uma a rabiscar previsões. De fato, só temos o hoje.)

Damas da noite

Um dia me perguntaram o que era o amor. Sim, eu sei. É cada pergunta… quem diria que eu tinha resposta para esta. O amor é a dama da noite florida numa noite de Primavera.

Ela encanta meus dias e noites. Obrigo-me a deixar as janelas abertas até mais tarde – a despeito dos pernilongos – para conviver com seu perfume entorpecedor. Que perfume! Se o amor não cheira a isso, melhor não me contarem. Damas da noite floridas mudaram minha vida. Conheci-as há um tempo, quando caminhava longas caminhadas noturnas com paixões e sonhos e idéias. Sabia identificá-las à distância, cheguei a mapeá-las pela cidade. Eu era feliz. Hoje tenho duas no jardim, coisa linda é contemplá-las carregadas com suas pequeninas flores brancas e tão perfumadas. Nas Primaveras chuvosas desta terra onde me exilei, elas caem e estampam o terreno por onde meus cachorros correm alegres. Eu sou feliz. Penso que deveria plantar uma delas mais próximo ao portão, para despertar nas pessoas tudo aquilo que, anos atrás, elas me despertaram. Enfim, dizem, sou egoísta. Eu quero ser feliz. Por aqui não há muitas damas da noite, nem eu faço longas caminhadas. O cinza nos espanta. O cinza nos exila em nossas próprias casas. Mas, é preciso ser feliz. Reparo que há, ainda, alguns ipês, amarelos na sua maioria, e azáleas. Um salve aos nobres de coração que cultivam tais belezas que nos encantam os olhos todas as Primaveras e Invernos. Não é fácil cultivá-las, precisa dedicação, tempo, amor e prazer.

É como o florescer das damas da noite. Talvez, sem saber, eu as tenha sequestrado ao meu jardim para ter amor – para sempre. Nem sempre, eis que florescem apenas na Primavera e parte do Verão. No Outono, sabemos, não há amor. E o amor, por vezes, hiberna… não há amor que dure um ano inteiro. Por vezes, penso, ela chega intempestiva bem naquela época do ano que o peso da vida nos carrega à desesperança e impaciência. Ela me avisa: calma. Faz com que eu não desista depois de tempos tão sombrios. Procura mostrar-me amor, novamente, o conheces tão bem. Vê-la cheia e vistosa muda meus dias – ainda exaustivos, ainda carregados da vida mesquinha e diária. Motivo do meu sorriso em dias desenganados. O amor, enfim, faz promessas. Mas não dura o ano inteiro.

É preciso viver algum tempo sem amor para saber dar a ele a devida atenção. É fácil (quem sabe até mais fácil) viver sem ele. Não me recordo de algo fácil na minha vida. Sei que aguardo pela Primavera e seu vizinho Verão, ano após ano, no longo exílio. A dama da noite é o símbolo da minha espera, que nunca é em vão. A dama da noite sacode a umidade do corpo e o torpor das sensações. É seu perfume forte e doce que irrompe meus pensamentos, dia após dia – mesmo sem as longas caminhadas, ainda há sonhos, paixões e idéias. Ela surge exatamente quando eu poderia iniciar a implosão, para segurar-me firme nos desejos que me assolam (porque eles sempre estarão aqui). Todos os dias, paro a fitá-la curiosa do poder que exerce sobre mim. É o amor, enfim. Passei meses a vê-la verde como mais uma das árvores do jardim, às vezes em expectativa, confesso – às vezes, indiferente. Diante dela revejo a vida nos seus explícitos detalhes: eu amo.

O que a universidade pública faz por NÓS

Diante das atrocidades do atual governo, foi incentivada intuitivamente uma campanha para mostrar aos outros (àqueles que acham que “sustentam vagabundo com seu dinheiro”) o que a universidade pública fez por nós. Por nós, porque mesmo que ela tenha feito por mim, eu replico, todos os dias, os efeitos dela na Cultura, no Conhecimento e na Educação. E isso é fundamental para o país. O governo Bolsonaro é inimigo do nosso futuro. Estava conversando com um estrangeiro que mora aqui e ele disse não entender a atual política, chamando-a de “política da destruição”. E é isso mesmo, uma política que visa destruir o Meio Ambiente, a Cultura e a Educação é uma política que aniquila o Futuro. O Brasil sempre foi o “país do futuro”, desde minha infância ouço isso; de um futuro que nunca chegou. Agora, até este sonho querem nos tirar.

Eu que nem gosto de sair por aí falando da minha vida darei o testemunho do que o ensino fez por mim. Porque tem pai e mãe apoiando este imbecil eleito sem saber que, se não fosse a universidade pública, seus filhos não teriam professores de qualidade em sala de aula. É simples assim.

Estudei o Fundamental e o Médio em escola particular, uma opção dos meus pais em busca da melhor educação que eles poderiam nos dar. O Médio só consegui terminar com bolsa. Fiz curso de Inglês dos seis aos dezessete, fiz curso de Espanhol. Minha mãe sempre repetia o que meu avô dizia: a educação é a melhor herança que eu posso deixar pra vocês. E eles deixaram mesmo.

Aos dezoito anos saí de Joinville, sozinha, para ir fazer graduação em Florianópolis. Levei comigo uma mala com roupas e uma pequena caixa com livros. Fui fazer Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina e Cinema e Vídeo na UNISUL, esta particular. Foi a minha escolha. Meus pais haviam cursado ensino superior, meus irmãos também, todos apenas em faculdades particulares devido à dificuldade de acesso, histórica, ao ensino superior público. Meus avós não tiveram esta oportunidade. Não foi fácil, eu garanto. Os gastos, os perrengues, as dificuldades de viver sozinha longe de casa. Mas, me sentia feliz e corajosa, pois vi muitos, inúmeros colegas até bem mais estudiosos que eu, ficarem pelo caminho. Ouvi de colegas do ensino médio, que o pai preferia que ele/a fizesse faculdade em Joinville mesmo, nem tentasse o vestibular da Federal, porque a mensalidade seria o valor dos gastos em outra cidade. Uma idéia péssima, eu garanto.

Em cinco anos eu me formei nas duas. Mera coincidência, a formatura das duas foi exatamente no mesmo dia. Optei pela cerimônia da Federal, porque até nisso uma universidade federal faz diferença – eles não cobram pelo local, etc.. Foram cinco anos intensos, fui bolsista do PET (Programa de Ensino Tutorial), do governo federal, do curso de Letras da UFSC. Uma das melhores experiências da vida, pois vivíamos envolvidos em atividades de pesquisa, ensino e extensão, além de um convívio intelectual enriquecedor. Fui bolsista de iniciação científica, na UNISUL, com verba federal, na área do Cinema. Participei de eventos na universidade, comi no bandeijão pagando R$1,50, paguei passe estudante (em 2004 o valor do passe era R$1,50 e pagávamos metade), conheci gente de todo canto do país e do mundo, tive acesso a uma biblioteca maravilhosa. Vivi intensamente.

Depois eu fiz mestrado em História na Universidade do Estado de Santa Catarina, hoje também ameaçada de cortes. Ampliei ainda mais meus estudos e visão de mundo. No primeiro ano do curso, trabalhei em sala de aula como professora substituta de Filosofia na rede estadual em uma cidade pequena, com menos de 30 mil habitantes, que sempre sofreu com falta de professores. Ia de uma cidade para outra, toda semana. No segundo ano recebi bolsa Capes, até defender minha dissertação de mestrado na data, sem prorrogação nenhuma. Nestes dois anos de mestrado participei de vários eventos científicos da área, apresentei trabalhos, publiquei textos e artigos. Uma vez tive dinheiro de verba para viajar, pela universidade, mas em todos os outros eventos paguei com o valor da bolsa. Bolsa de R$1.500 (o valor hoje continua o mesmo), para pagar tudo (aluguel + transporte + comida + etc. etc.), e dedicar-me exclusivamente à pesquisa, à leitura, ao aprimoramento intelectual. E não foi pouco, eu garanto.

Depois do mestrado fui professora de Filosofia na rede estadual, no Ensino Médio, numa cidade da grande Fpolis. Em todas essas escolas eu vivi o dia a dia de alunos que são abandonados pela sociedade. Eu vivi o dia a dia de profissionais que dão o sangue pela Educação, conheci pessoas maravilhosas, admiráveis em caráter e empenho.

Há alguns anos sou professora da rede particular, professora de Filosofia do sexto ano do Fundamental ao terceiro ano do Ensino Médio. E há dois anos sou professora de graduação em Cinema e Audiovisual. É o trajeto de uma vida toda. É estar em sala de aula, todo dia, defendendo a Educação. Defendendo a formação que eu não pude ter em Joinville, pois aqui faltam professores de Filosofia e só tem, sei lá, eu e mais um graduados em Cinema – em toda uma cidade de seus quinhentos mil habitantes. Porque, acreditem, há um mundo além de ser chão de fábrica e trabalhar em prestação de serviços – sem desmerecê-los, mas não podemos condenar uma juventude inteira de uma cidade a essas ocupações.

Meu sonho era ter uma escola de Cinema em Joinville, com filiais em Lages e Criciúma, por exemplo, para descentralizar o conhecimento e o acesso. Sou defensora da UFSC em Joinville (“em Joinville”, não na BR) com cursos de Licenciaturas de todas as áreas, esta sempre foi a minha bandeira. Eu nunca quis ser professora – achava chato, repetitivo, entediante. Até que descobri como é fazer algo por tanta gente (hoje tenho mais de trezentos alunos) e ver como isso, de fato, muda o mundo. Como é bom deixá-los em dúvida, como é bom vê-los questionarem, como é bom vê-los crescerem intelectualmente. Eu mudo o mundo e construo o futuro, todos os dias, dentro da sala de aula.

Hoje sou orientadora de Iniciação Científica, na graduação, na mesma área do mestrado e da Iniciação Científica que fiz lá na graduação. São anos desenvolvendo trabalhos, estudos e crescendo para poder trabalhar junto com alunos e novos profissionais. E minha formação não foi “paga” por esses aí que desmerecem e achincalham a universidade pública, foi paga com a vida inteira correta e trabalhadora dos meus pais. E, hoje, eu posso dizer com orgulho o quanto devolvo para a sociedade o investimento que fiz na minha formação. Por isso, senti como ofensa pessoal o corte aleatório de bolsas dos programas de pós-graduação. Vi ontem na TV pesquisadores sendo estrevistados, tendo que mostrar a importância dos seus estudos para o país (pré-sal, vacina da zika) e que estão à mercê de parar por questão de não conseguir se manter sem a verba das bolsas. Ninguém fica rico “ganhando” bolsa de pós, ok? E, também, porque sei que o conhecimento não pode ficar parado, quero ver no horizonte do meu futuro a possibilidade de continuar os estudos em universidade pública.

Ouvi de uma educadora de respeito, ontem, “Todos deveriam aderir, pois afetará a todos” se referindo às escolas e universidades particulares, estaduais, etc. diante da greve que começa hoje, dia 15 de maio. Concordo com ela, e digo mais: toda a sociedade deveria aderir à greve da Educação porque esta é uma luta de todo um país. É uma luta de todos nós contra esse disparate inconsequente que estão perpetrando. História como a minha e a de milhares estão em jogo diante da alucinação de cortar verba da Educação.

Mais alucinação ainda foi entender que o governo “contingenciou” a verba da Educação para ameaçar a população a apoiar a reforma da Previdência. Ouvi do ministro que não há corte de verba, mas se houver apoio à reforma, então os valores serão liberados normalmente. É ameaça, é chantagem, estamos reféns de um governo de incompetentes que, diante de uma população que não quer perder mais e mais – enquanto eles não abrem mão de nada – diz “não”. São uns canalhas. É canalhice dizer que não haverá verba para pagar as aposentadorias, dentro de meses – por que não cortar os salários de deputados e senadores, e suas verbas de gabinete, por seis meses? (eles não trabalhariam por amor à pátria?).

A partir de hoje, declaro-me em greve. Mesmo estando em sala de aula, pois trabalho para a iniciativa privada e se eu faltar sofrerei as consequências – até o momento que todos, mesmo estas instituições, seus alunos e funcionários, tomem consciência que a luta é necessária e fundamental ao Brasil -, estarei em situação de greve. Estou em greve pelos valores e atitudes de toda uma vida.

As balas perdidas do Bolsonaro já fazem as primeiras vítimas

Sei que muitos de nós estão esmorecendo. Já nos sentimos doentes e, por vezes, o corpo sucumbe aos maus tratos pscicológicos que temos sofrido no último ano. Aquilo que parecia inacreditável se realizou: Bolsonaro tornou-se presidente. E, deste posto, desfere suas balas perdidas em muitos – milhares, milhões – de nós.

Escrevo para todos aqueles que se sentem como eu e, em especial, aos colegas e amigos que estão caindo diante das ameaças e atitudes concretas do esfacelamento que planejaram para o nosso país – porque o país não é nem jamais será deles. Ele não é meu presidente, ele não me representa. Ele, não.

Estudo, trabalho e atuo em duas das grandes áreas que ele escolheu como inimigas: Educação e Arte/Cultura. Ele as escolheu como inimigas porque são essas duas áreas que nos tornam quem somos: seres humanos críticos e combatentes. Sem arte e educação a pessoa não se torna grande. Como eles, aliás, não o são. E, além disso, sou uma pessoa que vive e trabalha neste país, atacada, também, pelos outros desmandos de ordem estúpida e conluios com os empresários que querem mais e mais para si – vide as mudanças em leis de questões relacionadas ao trânsito e à reforma da previdência. Em tudo, sinto-me atacada, diariamente.

Alguns colegas foram para o exterior – e decidiram ficar, atrasando sua volta porque não vêem horizonte por aqui. Não os culpo. Milhares de jovens só sabem dizer “quando tiver a chance, vou embora” – colegas e amigos dentre estes. Só fica quem não tem como sair, quem tem outros motivos que os prendem aqui, ou, ainda, poucos que preferem lutar. Porque, agora, não há mais espaço para a ingenuidade.

Ano passado, assim que ele foi eleito, um aluno me disse “Não será assim tão ruim, professora” diante dos meus temores. Bem, nem ele acredita mais nisso, e dizer que temos só quatro meses do pior governo deste país. Apoiado por militares e seus filhos, que o ajudaram a se eleger, todos ignorantes e com a maldade evidente nas suas ações e discursos, já abandonado por muitos que nele votaram e até mesmo pelos que fizeram campanha por anos em prol da sua candidatura. O fenômeno Bolsonaro eu conheci, eu vi crescer, eu acompanhei a cooptação e proliferação de idéias populistas e violentas que atraíram uma juventude agressiva e desiludida e idosos raivosos, principalmente, além da classe patronal ressentida.

Estamos adoecendo, estamos nos sentindo fracos a cada ataque. Sem preparo nenhum, rodeado de incompetentes, o governo destila maldade contra a Educação e a Arte/Cultura, investindo em ações que querem cumprir “promessas de governo” a partir de frases feitas e uma estupidez que parece não ter fim. Primeiro foi a ANCINE, depois a Lei Rouanet, agora as Humanidades. Um estúpido que quer que o seu filho tenha um “ofício” (termo em desuso desde o começo do século passado). Um estúpido que governa pelo Twitter, divulgando mentiras e infâmias. Uma equipe que não consegue colocar sequer um site no ar, que divulga “mudanças” numa lei que ninguém viu.

Vejo colegas e amigos doentes. Eu também fiquei, ano passado. Porque não quis acreditar que vocês votariam e votaram nele. A propagação de idéias maliciosas foi tão bem arquitetada há anos que pessoas lúcidas preferiram ignorar o fato de que estavam votando num energúmeno maldoso a posicionarem-se contra este senhor que, até o momento, acha que acabar com o horário de Verão foi uma atitude benéfica em relação aos “péssimos governos anteriores”. Que estúpido acredita nisso? E dizer que muitos votaram nele por isso mesmo, para acabar com o horário de Verão.

E ele quebrará o país como tem quebrado muitos de nós. As privatizações, os ataques ao funcionalismo público, o assassinato de idosos aposentados e pensionistas, o desemprego, os salários baixos, a exclusão escolar. Se ele ficar quatro anos é isso que teremos: um país quebrado, com uma população miserável, inflação explodindo, hospitais sem atender, falta de itens básicos nos supermercados. Tipo a Venezuela. Enquanto eles estarão no poder, fazendo piada no Twitter. Ele, que viveu a vida inteira às custas do dinheiro público – como militar e parlamentar.

A tristeza também adoece e mata. Ver as Humanidades atacada de forma tão vil e inconsequente me revoltou. Ele jamais saberia, pois nunca pôs os pés num curso superior, que até as engenharias precisam dos graduados em Filosofia. Pois a Lógica, a Filosofia da Matemática, a Filosofia da Ciência existem. Não que ele saiba, é claro. Os cursos de Pedagogia, Direito, Psicologia, Comunicação, e até mesmo a Biologia nasceu pelas idéias de um filósofo. O desconsolo de alguns amigos que, sabiamente, afastaram-se das notícias e do contato com as pessoas me assusta e entristece. Porque estes ataques não têm sido em vão e têm alcançado seus objetivos. E, com uma canetada, digo, uma tuitada, ele ceifará muitas vidas.

Somos resistência, porém. A cada dia, todos os dias. Eu estou com bandeira em punho, vinte e quatro horas por dia, em todos os espaços e canais que tenho contato. Porque eu sei que eu mudo o mundo a minha volta, todos os dias. E esse era meu sonho de adolescente: mudar o mundo. Não o abandonarei jamais – nem a vocês, caros amigos e colegas. Devemos nos deixar cair, de vez em quando, porque o fardo é pesado e difícil de assimilar. Mas, é preciso mostrar porque e para que estudamos tantos, lemos tanto, nos posicionamos o tempo todo e nos tornamos grandes. É preciso mostrar que eles não são maioria – e que nós somos melhores. É hora de levantar a cabeça.

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