Este ano eu me inscrevi, e fui artista selecionada, para a Missão Fotográfica Joinville. A Missão é uma residência fotográfica para desenvolver propostas fotográficas autorais sobre a cidade, pensando o tema das cartografias, orientados por Lucila Horn e Daniel Machado, numa iniciativa vinculada ao NEFA – Núcleo de Estudos em Fotografia e Arte. Entre março e agosto, fomos desafiados a fotografar Joinville, para apresentar uma narrativa autoral sobre a cidade, a ser publicada num livro de fotografia.
Quando vi a divulgação para os inscritos, pensei que era justamente o que eu precisava. Vivo imersa em reflexões (o que é muito bom e eu super recomendo) e uma delas é o motivo de eu ter tanta dificuldade em fotografar a cidade onde vivo, a qual eu conheço minha vida inteira.
Fotografo por paixão desde criança, minha mãe sempre fotografou a família, viagens. Minha primeira câmera comprei aos nove anos e desde então tive breves períodos da vida afastada dos cliques. Contudo, Joinville nunca foi meu objeto principal de desejo fotográfico. Sempre levo a câmera e fotografo bastante as viagens, mesmo que sejam para as cidades que eu costumo frequentar, sempre fotografei muito Fpolis (e ainda fotografo).
Por vezes, levo a câmera ao sair por Joinville, desde que retornei à cidade. Em outras vezes, quando não estava morando aqui, uma vez ou outra saía e fotografava, mas é como se sempre faltasse algo. A Missão Fotográfica Joinville era exatamente o que eu precisava, obrigar-me a olhar para a cidade e fotografá-la.
Para a inscrição, que acabei fazendo no último dia já como forma de resistência à idéia de fotografar a cidade, era necessário enviar uma proposta e um portfólio. Na proposta, escrevi essa minha dificuldade e uma relação de “amor e ódio” (não são os termos corretos, mas é para que as pessoas entendam), o amor ao observar os contornos da cidade, o mar que a abraça e que ela ignora, os morros, o rio Cachoeira (que faz parte do meu jardim), as casas históricas.
O projeto da Missão é algo que sinto muita falta na cidade, projetos culturais interessantes, diversificados, diferentes – lembrando que feirinha fim de semana cansa. Como caminhar é a única forma de viver e sentir um lugar, assimilei a parte de caminhar e pedalar para olhar Joinville com outros olhos – que não aqueles sempre tão críticos sobre a mentalidade, os apadrinhamentos, as dores de cotovelo, e essa mesquinharia toda que vemos todos os dias. Então, propus fotografá-la nos seus limites, a partir da crítica e contradições. Argumentei que amar e odiar a cidade é uma contradição que muitos de nós vivemos (por favor, digam que sim, senão me sentirei muito solitária – mentira, não tem problema se só eu passo por isso).
Mal sabia eu que viveria um processo de aprofundamento incrível em olhar as contradições da cidade e que o desafio de traduzir isso em fotos transformaria algumas coisas em mim – como pessoa e como artista. Ao longo dos encontros, fui compreendendo melhor como pensar uma narrativa fotográfica (eu sou da narrativa escrita e audiovisual, na fotografia eu ainda não havia experimentado) e dialogando comigo mesma. Descartei parte das fotografias que me levaram à inscrição, desisti de fotografar certos locais da cidade (até porque um deles um colega de Missão fotografa com muito mais propriedade), entrei num período de bloqueio e os prazos para apresentar as fotografias estava chegando ao fim.
Em meio a isso, que artista é artista 24 horas por dia, mas também gente, aconteceram outras coisas. Uma delas foi o ataque que o curta-metragem Gritos do Sul (2022), sofreu de políticos e pessoas muito mal intencionadas (da cidade, dos meios de comunicação e, vejam só, até da própria cultura!). Foram dias tensos, porque o fascista, quando se olha no espelho, não gosta do que vê – e o modus operandi deles é bem organizado e ataca com violência esperando que a gente esmoreça. Mas, querer usar o curta para atacar o prefeito, o secretário, tentar desvencilhar os laços que unem fascistas em maior ou menor grau, e querer atacar a Lei do SIMDEC e o direito à Cultura não deu certo. Não era um ataque ao Gritos do Sul (2022) nem a mim, e o tempo todo minha consciência esteve tranquila.
Ninguém disse que seria fácil ser mulher que produz e ensina arte em Joinville – bem pelo contrário. Minha vida nunca foi fácil, a vida de nenhuma mulher é fácil. (mesmo que a gente saiba que fazer certas escolhas, em Joinville, dificultam ainda mais a vida) Sem baixar a cabeça em nenhum momento, o olhar crítico para as enormes e aterradoras contradições dessa cidade foram aguçados. A gana de lutar e trabalhar só cresceu – e tem dado ótimos frutos. O que não mata, fortalece, né?
Imersa em conflitos, saí para fotografar. Cometi o erro de tentar criar a narrativa antes, e depois buscar as fotografias que a comporiam. Foi um erro que me atrasou alguns dias. Mas, peguei a mochila e saí caminhando. Novamente, encontrei comigo mesma e com a cidade que eu enxergo e fomos felizes em muitas fotografias. Agora sim, eu tinha material para apresentar.
Acredito que a experiência foi profunda para todos os participantes da Missão que se deixaram transformar pelos encontros. Gosto muito da experiência do fazer, do processo criativo, como já disse aqui recentemente. Essa experiência, quando compartilhada pode ter várias consequências, nem sempre boas. Li um artigo esses tempos que me ajudou muito a não fazer comentários irresponsáveis sobre os processos dos demais colegas, mas gostei de muita coisa que vi, como cada um conduz o nosso olhar por Joinville.
No dia do encontro, reconstruí essa ideia da relação de “amor e ódio”, pois havia compreendido (como uma epifania mesmo) que meu “amor” é minha origem, as raízes que me prendem à cidade, e o “ódio” é tudo isso que está aí fazendo mal para a cidade – mas que fazemos de conta que não existe. E então eu descobri: o silêncio. O incômodo atroz que me dá o silêncio que paira nessa cidade, a melhor do país e onde mais morre gente de dengue! A cidade que tem canteiros floridos na frente da prefeitura e não tem álcool em gel em nenhum dispenser no PA Sul. Não se preocupem, não ficarei três dias aqui escrevendo sobre as contradições de Joinville e como é sufocante viver nesse silêncio.
O silêncio. Como é difícil e impossível escrever sobre ele. Como fotografar o silêncio? E os coordenadores ainda pediam um texto que fosse enviado junto às fotos escolhidas! Não consegui escrever sobre o silêncio e, por incrível que pareça, consegui fotografá-lo. Ao analisar e analisar as fotografias, fiz uma seleção e era aquilo ali, era o que eu queria dizer. A Lucila Horn disse que meu projeto é o mais conceitual e crítico, espero que com conceitual não seja algo inacessível às pessoas, mas sobre ser “crítico”, bem, sou eu, né, não tinha como ser diferente.
E esse texto de hoje era para falar sobre o silêncio que reina em Joinville. É um silêncio imposto de cima pra baixo, como disse um amigo esses dias – é como somos criados aqui. É o silêncio exigido para que você não seja banido dos círculos, para que você consiga sobreviver, porque se você começar a falar, a apontar as contradições, a questionar, você não vai mais conseguir viver em paz nesta cidade. Eu sei. Também sei que não sou a única que se incomoda com o silêncio – mas não vejo os outros reclamando dele. É tipo o silêncio sobre silêncio, sabe? Aqui e ali, ao pé do ouvido, às vezes os cochichos…
Esses dias conversei com uma produtora cultural de outra cidade e ela contou como a classe artística de lá era “barulhenta”, conseguia no grito as mudanças necessárias e tal. Criticamos e avaliamos como as coisas são nas políticas públicas da Cultura de Joinville e lá fui eu falar sobre o imenso silêncio que domina os artistas da cidade – eu disse pra ela que aqui isso não acontecia. No meio artístico de Joinville é tudo perfeito, por que eles fariam barulho, não é mesmo?
Talvez eu tenha a audição muito aguçada, mas o silêncio me é muito mais incômodo do que o “barulho”. Aliás, esses dias a ciência comprovou que conseguimos ouvir o silêncio, não?
Hoje era para escrever sobre o silêncio. Não poderia deixar de contar a experiência com a Missão Fotográfica que me trouxe tantas coisas excepcionais, verdadeiro crescimento enquanto artista e pessoa (é disso que trata a autoria, ser quem somos no que fazemos). Não sei, acho que falei pouco sobre o silêncio, mas certeza que não fiquei em silêncio. Voltarei a escrever sobre ele – e a fotografá-lo. Aliás, é um dos meus temas favoritos para conversar também.
Sobre a Missão, está quase terminando a residência e logo iremos para a edição do livro. Confesso estar contentíssima com os resultados e com os frutos que virão desta experiência. Numa das orientações que tivemos, o fotógrafo disse que eu precisava “vomitar”, que minha narrativa era sobre isso. E é. Quanto mais tentam me calar, mais eu planejo e executo colocar para fora. Ninguém disse que seria fácil e, enfim, o fácil não tem graça.
Enquanto eu não volto a escrever sobre o silêncio (este texto mesmo foi gestado em silêncio), ouçam-no: ele está por todos os lados.