Cartas na manga

Cada escolha revela um pensamento, por vezes uma intenção. O vestido é sempre escolhido baseado em detalhes e critérios que conjugam os compromissos, a viabilidade de sucesso do dia, o destino que assombra, as possibilidades de felicidade (mesmo que egoístas), as lutas e batalhas a serem encampadas, os inimigos à espreita e até mesmo o desejo – seja ele de quantas tonalidades for.

Escolher o vestido é desafiar-se a traduzir numa linguagem que pode passar despercebida toda uma personalidade e uma vida, é ter apenas alguns tantos de algum pano a enviar mensagens e declarar guerra – ou paz. Por vezes, o mesmo vestido pode dizer algo diferente, conforme os acessórios, o dia, a lua, a estação e até mesmo, jamais ele não dirá nada.

É como encampar um diálogo com o mundo, sem palavras ditas, contudo que calam mais do que gritos. Gritos. De onde quer que venham os gritos. Há uma eu que quase ninguém conhece e que graça teria a vida se fosse tão fácil assim conhecê-la. E desse quase ninguém há poucos sobreviventes. Para lograr conhecer alguém há que se ouvir os diálogos sem palavras, há que se aproximar de quem ela é quando não há ninguém a testemunhar seus atos e pensamentos. Deus foi tão grande quando não permitiu aos humanos que lêssemos os pensamentos uns dos outros! 

Até mesmo quando a escolha não é um vestido ela emite sinais sensíveis ao tato e ao olhar mais apurado. Porém, não é possível tocá-la. As traduções simultâneas são da pior qualidade, sempre com impressões deturpadas pelos olhos que a vêem. Consolida-se o fracasso do diálogo humano tão ressecado ao hábito do bê a bá.

Como o Destino não se pronuncia quando dará o ar da graça, só me cabe tecer inúmeras estratégias em cada passo, em cada olhar, em todas as escolhas e, por vezes, ter vestidos como uma boa jogadora têm cartas na manga.

Sempre uma de nós

A Fernanda chegou no início da madrugada em casa, numa kitnet onde morava sozinha. Futura Engenheira, jovem, tinha ido a um evento naquela noite. Em pouco tempo, seus gritos foram ouvidos. Um vizinho entrou, violentou-a, roubou sua TV.

Uma jovem caminhava pela Beira-rio, um homem agarrou-a, em plena luz do dia, e assediou-a (ou violentou-a, como deveria prever a lei, mas, são homens que fazem as leis).

Nunca vou esquecer daquela que foi encontrada enterrada numa praia da região, o marido era policial.

Todos os dias, sem falta. Uma de nós, sempre.

Tento não ficar obcecada ao acompanhar esses casos, porém não os evito. Não há como evitá-los – a não ser que você entre num perfil de rede social de alguma grande empresa de notícias de SC e viva aquela realidade onde não há sequer menção aos casos de violência contra a mulher.

Todo dia, muitas de nós, a cada minuto. A cada segundo.

Filmes sobre violência contra mulher, feitos por agressores de mulheres. Exibições de filmes sobre violência contra mulher, exibidos por agressores de mulheres. Agressores de mulheres em sala de aula, como professores. Agressores de mulheres nas câmaras de vereadores, como representantes do povo. Agressores de mulheres nas polícias, como defensores da lei. 

Agressores de mulheres, por onde quer que eu olhe e onde quer que eu vá.

Todos os dias, uma de nós.

Viver concentrada em não dar chance, em não dar bola, em não dar a entender o que nem foi sequer pensado. Viver sob a tensão de um botão do pânico. Não há agradecimento do tamanho da dor da Maria da Penha, ela, por nós – por quantas mais de nós?

Não acaba. Não deixa de existir por um único dia.

Ela estava na Avenida Atlântica, de Balneário Camboriú, uma das ruas mais conhecidas de Santa Catarina. Ele desferiu um tiro à queima roupa nela e depois tentou tirar a própria vida.

Minha vizinha, som de socos, gritos, liguei pra polícia. Eu devia ter ido ajudar?

Estatísticas, números, epidemia. Nove estupros por dia. Quase 90 mil casos de denúncias, 10 casos de violência doméstica por hora. Por. Hora.

Na praia, ela caminhava sozinha. Ele surgiu do nada, assediou-a, agrediu, violentou. A cidade que é uma ilha começa a preocupar-se com as inúmeras praias, lugar onde também não temos paz nem segurança.

Foi morta e teve seus órgãos arrancados, pois denunciou o marido. Agrediu a vizinha, porque discordou de qualquer coisa. Duas jovens na trilha do Morro do Morcego, paisagens lindas, ambas estupradas. 

Sempre uma de nós.

Aquela menina de doze anos na região sul da cidade.

Todas as horas, uma de nós.

Não parar de bater as pernas, para continuar viva. Todo dia.

Com quantos agressores, estupradores, assediadores, condenados ou não, topamos em um dia? Todos os dias?

Sempre uma de nós.

Ontem fui eu. Hoje eu escapei. Amanhã talvez seja eu novamente. Porque não foi nem nunca será minha culpa. A culpa não é de nenhuma de nós. Mas, sempre uma de nós.

O silêncio – Missão Fotográfica Joinville

Este ano eu me inscrevi, e fui artista selecionada, para a Missão Fotográfica Joinville. A Missão é uma residência fotográfica para desenvolver propostas fotográficas autorais sobre a cidade, pensando o tema das cartografias, orientados por Lucila Horn e Daniel Machado, numa iniciativa vinculada ao NEFA – Núcleo de Estudos em Fotografia e Arte. Entre março e agosto, fomos desafiados a fotografar Joinville, para apresentar uma narrativa autoral sobre a cidade, a ser publicada num livro de fotografia.

Quando vi a divulgação para os inscritos, pensei que era justamente o que eu precisava. Vivo imersa em reflexões (o que é muito bom e eu super recomendo) e uma delas é o motivo de eu ter tanta dificuldade em fotografar a cidade onde vivo, a qual eu conheço minha vida inteira. 

Fotografo por paixão desde criança, minha mãe sempre fotografou a família, viagens. Minha primeira câmera comprei aos nove anos e desde então tive breves períodos da vida afastada dos cliques. Contudo, Joinville nunca foi meu objeto principal de desejo fotográfico. Sempre levo a câmera e fotografo bastante as viagens, mesmo que sejam para as cidades que eu costumo frequentar, sempre fotografei muito Fpolis (e ainda fotografo).

Por vezes, levo a câmera ao sair por Joinville, desde que retornei à cidade. Em outras vezes, quando não estava morando aqui, uma vez ou outra saía e fotografava, mas é como se sempre faltasse algo. A Missão Fotográfica Joinville era exatamente o que eu precisava, obrigar-me a olhar para a cidade e fotografá-la.

Para a inscrição, que acabei fazendo no último dia já como forma de resistência à idéia de fotografar a cidade, era necessário enviar uma proposta e um portfólio. Na proposta, escrevi essa minha dificuldade e uma relação de “amor e ódio” (não são os termos corretos, mas é para que as pessoas entendam), o amor ao observar os contornos da cidade, o mar que a abraça e que ela ignora, os morros, o rio Cachoeira (que faz parte do meu jardim), as casas históricas.

O projeto da Missão é algo que sinto muita falta na cidade, projetos culturais interessantes, diversificados, diferentes – lembrando que feirinha fim de semana cansa. Como caminhar é a única forma de viver e sentir um lugar, assimilei a parte de caminhar e pedalar para olhar Joinville com outros olhos – que não aqueles sempre tão críticos sobre a mentalidade, os apadrinhamentos, as dores de cotovelo, e essa mesquinharia toda que vemos todos os dias. Então, propus fotografá-la nos seus limites, a partir da crítica e contradições. Argumentei que amar e odiar a cidade é uma contradição que muitos de nós vivemos (por favor, digam que sim, senão me sentirei muito solitária – mentira, não tem problema se só eu passo por isso).

Mal sabia eu que viveria um processo de aprofundamento incrível em olhar as contradições da cidade e que o desafio de traduzir isso em fotos transformaria algumas coisas em mim – como pessoa e como artista. Ao longo dos encontros, fui compreendendo melhor como pensar uma narrativa fotográfica (eu sou da narrativa escrita e audiovisual, na fotografia eu ainda não havia experimentado) e dialogando comigo mesma. Descartei parte das fotografias que me levaram à inscrição, desisti de fotografar certos locais da cidade (até porque um deles um colega de Missão fotografa com muito mais propriedade), entrei num período de bloqueio e os prazos para apresentar as fotografias estava chegando ao fim. 

Em meio a isso, que artista é artista 24 horas por dia, mas também gente, aconteceram outras coisas. Uma delas foi o ataque que o curta-metragem Gritos do Sul (2022), sofreu de políticos e pessoas muito mal intencionadas (da cidade, dos meios de comunicação e, vejam só, até da própria cultura!). Foram dias tensos, porque o fascista, quando se olha no espelho, não gosta do que vê – e o modus operandi deles é bem organizado e ataca com violência esperando que a gente esmoreça. Mas, querer usar o curta para atacar o prefeito, o secretário, tentar desvencilhar os laços que unem fascistas em maior ou menor grau, e querer atacar a Lei do SIMDEC e o direito à Cultura não deu certo. Não era um ataque ao Gritos do Sul (2022) nem a mim, e o tempo todo minha consciência esteve tranquila.

Ninguém disse que seria fácil ser mulher que produz e ensina arte em Joinville – bem pelo contrário. Minha vida nunca foi fácil, a vida de nenhuma mulher é fácil. (mesmo que a gente saiba que fazer certas escolhas, em Joinville, dificultam ainda mais a vida) Sem baixar a cabeça em nenhum momento, o olhar crítico para as enormes e aterradoras contradições dessa cidade foram aguçados. A gana de lutar e trabalhar só cresceu – e tem dado ótimos frutos. O que não mata, fortalece, né? 

Imersa em conflitos, saí para fotografar. Cometi o erro de tentar criar a narrativa antes, e depois buscar as fotografias que a comporiam. Foi um erro que me atrasou alguns dias. Mas, peguei a mochila e saí caminhando. Novamente, encontrei comigo mesma e com a cidade que eu enxergo e fomos felizes em muitas fotografias. Agora sim, eu tinha material para apresentar.

Acredito que a experiência foi profunda para todos os participantes da Missão que se deixaram transformar pelos encontros. Gosto muito da experiência do fazer, do processo criativo, como já disse aqui recentemente. Essa experiência, quando compartilhada pode ter várias consequências, nem sempre boas. Li um artigo esses tempos que me ajudou muito a não fazer comentários irresponsáveis sobre os processos dos demais colegas, mas gostei de muita coisa que vi, como cada um conduz o nosso olhar por Joinville.

No dia do encontro, reconstruí essa ideia da relação de “amor e ódio”, pois havia compreendido (como uma epifania mesmo) que meu “amor” é minha origem, as raízes que me prendem à cidade, e o “ódio” é tudo isso que está aí fazendo mal para a cidade – mas que fazemos de conta que não existe. E então eu descobri: o silêncio. O incômodo atroz que me dá o silêncio que paira nessa cidade, a melhor do país e onde mais morre gente de dengue! A cidade que tem canteiros floridos na frente da prefeitura e não tem álcool em gel em nenhum dispenser no PA Sul. Não se preocupem, não ficarei três dias aqui escrevendo sobre as contradições de Joinville e como é sufocante viver nesse silêncio.

O silêncio. Como é difícil e impossível escrever sobre ele. Como fotografar o silêncio? E os coordenadores ainda pediam um texto que fosse enviado junto às fotos escolhidas! Não consegui escrever sobre o silêncio e, por incrível que pareça, consegui fotografá-lo. Ao analisar e analisar as fotografias, fiz uma seleção e era aquilo ali, era o que eu queria dizer. A Lucila Horn disse que meu projeto é o mais conceitual e crítico, espero que com conceitual não seja algo inacessível às pessoas, mas sobre ser “crítico”, bem, sou eu, né, não tinha como ser diferente.

E esse texto de hoje era para falar sobre o silêncio que reina em Joinville. É um silêncio imposto de cima pra baixo, como disse um amigo esses dias – é como somos criados aqui. É o silêncio exigido para que você não seja banido dos círculos, para que você consiga sobreviver, porque se você começar a falar, a apontar as contradições, a questionar, você não vai mais conseguir viver em paz nesta cidade. Eu sei. Também sei que não sou a única que se incomoda com o silêncio – mas não vejo os outros reclamando dele. É tipo o silêncio sobre silêncio, sabe? Aqui e ali, ao pé do ouvido, às vezes os cochichos…

Esses dias conversei com uma produtora cultural de outra cidade e ela contou como a classe artística de lá era “barulhenta”, conseguia no grito as mudanças necessárias e tal. Criticamos e avaliamos como as coisas são nas políticas públicas da Cultura de Joinville e lá fui eu falar sobre o imenso silêncio que domina os artistas da cidade – eu disse pra ela que aqui isso não acontecia. No meio artístico de Joinville é tudo perfeito, por que eles fariam barulho, não é mesmo?

Talvez eu tenha a audição muito aguçada, mas o silêncio me é muito mais incômodo do que o “barulho”. Aliás, esses dias a ciência comprovou que conseguimos ouvir o silêncio, não? 

Hoje era para escrever sobre o silêncio. Não poderia deixar de contar a experiência com a Missão Fotográfica que me trouxe tantas coisas excepcionais, verdadeiro crescimento enquanto artista e pessoa (é disso que trata a autoria, ser quem somos no que fazemos). Não sei, acho que falei pouco sobre o silêncio, mas certeza que não fiquei em silêncio. Voltarei a escrever sobre ele – e a fotografá-lo. Aliás, é um dos meus temas favoritos para conversar também.

Sobre a Missão, está quase terminando a residência e logo iremos para a edição do livro. Confesso estar contentíssima com os resultados e com os frutos que virão desta experiência. Numa das orientações que tivemos, o fotógrafo disse que eu precisava “vomitar”, que minha narrativa era sobre isso. E é. Quanto mais tentam me calar, mais eu planejo e executo colocar para fora. Ninguém disse que seria fácil e, enfim, o fácil não tem graça.

Enquanto eu não volto a escrever sobre o silêncio (este texto mesmo foi gestado em silêncio), ouçam-no: ele está por todos os lados.

Hello

Hello, from here, from these empty streets during the night. I’m here to say to you how fucking great is everything.

Hello, from the future. I just need to say that every decision were your best movement. Today you have no idea everything your doubts will bring in a very positive way – but, from here, the future where I am, I know what you suffered in silence and, yeah, it worth it.

Hello, from a very spontaneous heart, like yours. You know, the past still remains there, where it belongs. You are more than they. Your heart believe, and it’s enough for you two. Don’t ever and never put it in the wrong place, far from your eyes. You’ll thanks me someday.

Hello from this special night, like others nights without any previously explication. That’s your night, baby.

I’m here to assure you that’s the way and no one can help you. You’re strong enough and brave enough.

Do it for yourself and change some lives around you.

Coração sincero

Podemos entrar no carro e fugir sem rumo até o coração dizer “é aqui”.

É aqui que quero ser feliz para o resto da vida. Mas, talvez, o resto da vida seja tempo demais.

O coração, ele sempre tem razão e merece ser perdoado pelas bordoadas que leva. Ele não se atreve a desacreditar das pessoas e suas intenções, ele vive com esperança.

Num dia assim, porém, o que salva é a fé. A fé persiste em dizer ao coração que é preciso ficar, que ele ama demais e de forma insaciável, que essa loucura de fugir ainda pode deixá-lo muito triste. Ele custa acreditar, ao mesmo tempo que nunca duvidou da fé. Afinal, o que seria dele sem fé?

O coração anseia por ver novas paisagens, por conhecer outras realidades, por ouvir quaisquer sotaques. Ele é sincero e fiel, nunca soube ser de outro jeito. Ele nunca pôde ser falso porque ama e entrega-se com paixão, de olhos fechados (o tolo). Ele jamais trairia – a si mesmo.

Este coração aprendeu a não tratar os outros como foi tratado.

Tem dias que ele respira seus anseios. Tem dias que ele precisa olhá-los com pena e lamentos, e manter-se sufocado. Ele poderia fugir, não como uma fraqueza, como quem escapa de suas responsabilidades e se acovarda. Ele poderia fugir num gesto de coragem e força, de quem tendo tudo busca não ter nada – para ser ainda mais.

Não entenderiam, é claro. E ele nunca se importou.

O coração acordou assim, num dia qualquer, e quis buscar onde ser feliz, algum outro lugar onde também pudesse ser feliz. Caso a vida já não lhe tivesse ensinado, ele teria ilusões.

Acreditaria até, quiçá, na humanidade. Por ora ele tem somente a si como escudeiro e confidente. Seus planos não os conta a ninguém, não encontrou quem fosse digno de confiança. Ele articula seus próximos passos e sorri solitário.

Qualquer dia, podemos entrar no carro sem rumo até encontrar uma árvore frondosa e carregada de mangas, cercada por terras alagadiças e cenas curiosas de um cotidiano do passado, cruzar uma estrada de barro até o mar revolto se descortinar e termos a surpresa de um amor caliente no banco do carro enquanto toca uma música alegre – de fé e esperança. O coração vai saber dizer “é aqui”. O coração, ele nunca se engana – nem é enganado.

O menino e o mar

Estava na praia e não fazia nada além de observar – faço-o por gosto, porque gosto de deixar o olhar e a mente soltos vendo os detalhes do mundo e porque, enfim, é um gesto dos meus pensamentos, diria que nem poderia controlá-los, caso quisesse. Observava o mar, suas ondas sedutoras e misteriosas, observava o sol e seu brilho sobre as ondas, observava lá longe a linha do horizonte. Gosto especialmente de observar as crianças à beira-mar, elas como que existem em outra realidade deste mundo quando veem areia e mar.

Observava distraída e atenta, os olhos viam e a alma registrava, mas eu vivia ali o instante. Foi quando um menino chamou minha atenção: menino nos gestos e na idade, mas aquele olhar era de um homem adulto. O olhar é essa janela, mas não são todas as almas dispostas a ler outras almas, é preciso um olhar atento, um interesse perscrutador para decifrar o que há num olhar. Gostei daquele olhar. Há coisas, talvez, que não caibam nas palavras.

Ele brincava com os meninos e meninas da sua idade, iam lá baldes carregados com dificuldade, cheios de água do mar, buracos cavados, castelos de areia milimetricamente planejados e executados. Quando vinha a onda e desmanchava-os, às vezes mesmo antes de terminados, havia indignação, estupefação, tristeza. E logo eles recomeçavam a batalha, o menino sempre mais determinado e metódico que os outros – eu reparava.

Do mar, o que posso dizer? Ele não desfaz nossos sonhos e castelos por maldade. Nele também não há como confiar. O mar é só mistério e incerteza. Para entendê-lo não precisa saber nadar, nem prender a respiração, nem pular onda ou identificar um redemoinho: só nos cabe vivê-lo. Já ouvi muitos conselhos, avisos e até as experiências alheias sobre o mar. De nada me serviram. Já aprendi a nadar de tudo quanto é jeito, sei usar bóias e pés de pato, sei ver as marés e o vento, até as águas-vivas consigo achá-las antes de entrar na água. Nada disso faz diferença. Cada vez que me vejo diante do mar é como se nunca houvesse estado ali – deve ser isso que mantém nossa relação tão profunda. E ele me atrai tanto pelo mesmo motivo. O mar é o desconhecido, é aprendê-lo todo novamente, a cada vez.

Por isso o olhar curioso daquele menino para o mar me deixou tão feliz. Ele parecia antever que ali havia muito a ser descoberto. Ele era inteligente também, pois tentava decifrar o que precisava para adentrar naquele mar que já era tão interessante, mesmo se sabendo tão pouco dele. Ficamos amigos, entre castelos de areia e ondas estouradas na praia. Ele flertava com o mar, chegava perto, se distanciava, interessava-se por outras coisas. Eu ficava ali, sempre tão fechada em mim, mas apaixonada pelo mar e volta e meia buscava sua companhia. Cada um no seu casulo e na sua teimosia. Mas o mar, o mar é invencível.

Essa amizade durou e o tempo foi passando, como bom amigo que sempre foi. Aquele menino sempre me olhava com seus olhos de adulto, e eu ria dos outros que não percebiam isso. Os outros estranhavam nossa amizade, pois não sabiam de nada daquilo que ninguém precisa saber porque as pessoas somente procuram o óbvio.

O dia na praia foi tombando o sol atrás dos morros e já quase noite o menino encarou o mar com vontade e com tudo o que aquele olhar me dizia. Eu quis ir junto, quis estar ombro a ombro com ele também naquele momento. Mas, como aquele personagem, que diante do mar, das ondinhas batendo nos seus pés, de toda uma nova vida diante de si, chora e desiste, o menino também desistiu. O menino me contou que entendia esse personagem, que se via nele. Eu não pude dizer-lhe que o medo é sempre mau amigo, por isso digo agora. O mar nos inflige medo, muito medo. Toda vez que o reencontro sinto medo e, bem, não sei explicar como o medo não me paralisa – talvez o truque seja não pensar. Porque o medo em si só existe na nossa cabeça, são os nossos pensamentos que se comem e destroçam e causam medo e dor. O medo se alimenta da dor.

O menino, então, não entrou no mar. Eu senti tanto e tanto que nem sei dizer. Às vezes, não sei o que fazer com meus sentimentos, prefiro levá-los para casa. O medo é aquele extremo que nos acovarda diante de qualquer coisa. Queria poder entendê-lo um pouco, pelo menos, para me desculpar de julgar o menino que não quis entrar no mar. Não consigo. Sempre direi que é preciso entrar no mar, sem antes nem depois. Sem experiência e sem saber, sem medo e sem planos, só entrar e vivê-lo. Segui para casa triste e fico aqui revirando momentos de um dia intenso como só a praia proporciona.

Ao fim da Primavera

Tenho saudade. Do suor escorrendo pelas têmporas. Do fio de suor descendo solitário e incisivo pela cavidade das costas… a nos recordar: o calor está de volta. Como lamento essas noites frias, o vento que derruba termômetros e faz do sol uma lembrança inútil. Saudade do incômodo da pele áspera da poeira e areia dos dias de sol inclemente. Qualquer aperto de mão ou esbarrão num estranho nos oferece a troca de calor corporal e gosma pegajosa. As noites curtas, os dias longos. Eu em paz comigo, outra vez. Eu com vontade de chorar pelos erros do passado e pelas perdas recentes. Eu pensando, diante da água que se espatifa contra a terra, que não sou mais eu, em tão pouco tempo. Eu, aqui, mais uma vez sem ter forças para encarar a vida. Eu tentando pensar que o mundo, enfim, não existe. Talvez, quem sabe, ele não exista mesmo. E a insolação, a pele ardendo de horas incautas ao sol. A alegria de parte da humanidade em bandos a fazer o almoço em família, a namorar à beira mar, a beber, gritar, aproveitando – dizem – cada segundo. Enquanto vejo o sol se pôr na sua cor mais linda, da varanda, pensando em alguma idéia que vi num filme ou li num livro. Tentando, por mais um ano, catar cada dia de um futuro preenchido de sonhos tão antigos. O sol se vai, assim, e nem é Verão. E há tanto a se arrepender, tanto ainda a aprender. Saudade de decidir não pensar e, assim, por si só, como milagre, não sofrer. Por vezes, reconheço, os finais podem ser melancólicos. Nada nos impede de fazer diferente, ou fazer de novo. Talvez, quem sabe, o Verão exista mesmo para ser aproveitado aos berros e cervejas. Ou, talvez, o mundo esteja aí para nos fazer esquecer de pensar. Tão mais fácil ouvir a canção e a água salgada eriçada pelo vento que não cessa… (nada me fará esquecer)
Tenho saudade de observar a vida alheia como se fôssemos de espécies diversas. Recolho-me às idéias, ao silêncio. Deixa o tempo, ele matará nossas saudades com seu prazer cruel.

Com as paredes

Falo com as paredes. Debato-me entre argumentos. Estas paredes tão velhas, tanto já ouviram. Escutam agora minhas lamúrias e minhas revoltas. Não dizem nada, por certo, mas, por vezes, ouço seus suspiros. Não dizer nada, em absoluto, me transtorna. Falo sozinha, é claro, quando quero (quase sempre), discuto cá com meus botões (é verdade) o tempo todo. Minha cabeça não se aquieta nem em sonhos. As paredes devem sabê-los, também. Falo com as portas e, por vezes, dou pontapés nelas como se acabassem meus argumentos e só me restasse a violência. Ou, talvez a frustração. Falo com as paredes, vejam só. Esses dias eu conversava com a parede da janela sobre o livro que estava lendo antes de dormir. É um bom livro e eu nunca tenho com quem discuti-los, na falta de alguém, servem-me as paredes. Conversava agora a pouco com a parede da porta da sala de visita, sobre as provas (últimas do ano, que alegria!) que estava elaborando. As portas e paredes são nossas velhas redes sociais – sendo que com elas não nos desgostamos das pessoas nem passamos vergonha nem nada. São solitárias amigas para bons pensadores. Quanta coisa já contei às paredes… quantos amores perdidos, quanta tristeza incontida, quanta esperança vivida. E eis aqui as paredes: minhas testemunhas. Pois, é claro, muito já viram. Elas têm ouvidos, graças ao bom Deus não têm boca. Se saíssem por aí contando tudo que confesso só a elas, estava eu arrependida (mais uma vez na vida). Mas, elas são boas amigas… me ouvem como se só existissem elas a me fazer companhia. Falo com as paredes, é verdade. Delas, não espero respostas. Delas, nem um abraço ou um beijo carinhoso. Delas, nem frases inteligentes ou chochas retrucadas. Delas, jamais longos diálogos madrugada adentro. Delas, apenas esta companhia que me segue a vida inteira. Talvez por isso tenho tanta aversão às paredes brancas, vazias, lavadas. Gosto delas preenchidas (de vida) de palavras, de rabiscos, de nomes, de marcas, de lembranças e histórias. Assim, de um jeitinho todo nosso, dialogamos. Falo com as paredes, até meus desamores conto para elas. Elas me ouvem. Elas suspiram que eu sei. Gosto quando sinto que elas discordam (gosto quando discordam de mim). Gosto de contar para elas como foi o dia, os altos e baixos da labuta. Mas, gosto mais ainda quando depois do burburinho e barulheira de um dia inteiro, elas me recebem no mais pleno silêncio… a noite silenciosa será só nossa. Ah, uma noite silenciosa… para colocar o coração na batida certa, para acertar os ponteiros de relógios digitais, para aclarar as idéias e ouvir os anseios nunca saciados. Falo com as paredes, rogo a elas que os problemas se resolvam (sozinhos, de preferência, pois que não quero nem ouvir falar deles), que o mês termine, que eu esteja sempre em dia, que sobre tempo para nossas conversas ao pé da noite a discutir o livro que está na mesa de cabeceira. À luz do abajur, penso que queridas são estas paredes que me olham e vigiam meu sonho. Ensinaram-me, além de tudo, a falar comigo mesma. Ensinaram-me a saber que bons diálogos são avis rara. Ensinaram-me o poder das palavras ditas na hora certa… ensinaram-me que as palavras nunca devem não ser ditas. Palavra não dita é palavra não vivida. Falo com as paredes pois não perco nem um segundo da vida. Desperdiçar palavras é desperdiçar a vida. Esta vida que passou enquanto você estava em silêncio. (ouço seus suspiros)

Atravessar rios

Atravesso rios. Pulo, feliz, de pedra em pedra e a água corre límpida. Não sabemos aonde vamos. Aceitei o convite sem nada na cabeça – esta mesma que deitou no teu ombro. Atravesso rios que em tempos ruins secaram e a visão do leito me angustiava. Sim, sinto; sinto angústia. Atravessar rios, contigo, é livrar a alma deste desvario que é a vida. A alma, afinal, sai do corpo e pode cruzar rios tranquilos no teu abraço. Nos outros dias ela geme baixinho a inclemência de uma vida que ela nunca quis assim. Tantos ruídos nos separam, além do leito seco. Atravesso rios, já os vi mais caudalosos, mais violentos, mais sedutores. Rios vi que me fazem sorrir sempre que lembro deles. Atravessar rios minha alma necessita. Surpresa foi tê-lo comigo. Pois sei, atravesso-os sozinha – como de costume. Sorri ao tão bem cair no teu aconchego e partirmos. Surpresa me vi atravessando mais um rio – tão bonito e infinito. Atravesso rios em noites de chuva neste impasse entre estações. Atravesso rios quando travam batalhas, dentro de mim, idéias e mundos reais. Lembra-te da leveza dos nossos pés a saltar as pedras, a molhar os pés, a sentirmo-nos seguros – quem diria! – como nunca me senti. E o leito secou e a realidade virou pó e os gritos lancinantes das vozes incabíveis e o desgosto chegou. A angústia, por si, voltou. E as horas giram o relógio, as horas repelem os sonhos, as horas não sabem quem eu sou. As horas viram dias que viram noites – e quem sabe atravessemos mais rios – que viram semanas que viram finais de semana que viram meses e meu tempo não chega. Conto cada milímetro de passos que não dou. Conto cada centímetro da cela onde estou. Conto cada centavo da hora que me pagam. A angústia conta as histórias dos rios que atravessei, cada noite antes de dormirmos. Enfim, não iremos a lugar algum. E o corpo deixa de existir naquelas horas que teu braço me envolve e atravessamos rios. Eis meu sorriso mais sincero.

Sorriso falso

Devolve minh’alma. Devolve que peno dias sem tê-la, sem meu corpo ter rumo. De matéria se desfaz e ignora a desfaçatez de toda esta grande merda que nos circunda. Devolve que quase já não respiro. Busco luz, busco calor – é inverno, bem sabes. Devolve esta que até me tira o sorriso do rosto, por bons motivos quando nos entretemos só eu e ela. Que este sorriso simpático exibo de pura falsidade – é, é mesmo, creia-me. Falta-me a alma a florir este corpo e a brilhar estes olhos – porque vêem o sorriso no rosto e mal percebem o opaco dos olhos, seus frouxos. Alma é para poucos. Tirou férias de mim, deixo-me às lamúrias de em nada ver alegria, de folhear páginas a bocejar, de morrer de tédio ao fio dos dias que passam sem memória. Quero-te, volta pra mim? Faça-me tripudiar das ladainhas estridentes destas gazelas ao meu redor. Faça-me encontrar-te ao lado da cama, todas as noites, para nossa charla sincera. Faça-me de novo ouvir música como o universo a clamar meus sonhos. Cadê tu, alma querida? Esqueceu-se de mim; sofreste, eu sei. Não queres mais a pentelhação de tantos nós nas cordas que me amarram – não queres mais sentir-te amarrada. Nem eu. O que faremos, então? Faço-te promessas. Quaisquer e todas. Não foste por vontade própria, bem sei. Teu algoz é a dor. Devolve minh’alma, sem ela sofro em dobro. Sem ela o chão fica e a queda é dura demais. Sem ela só resta o chão, em verdade. Sem ela este inverno nunca terá fim – e já há flores nas pitangueiras e nas cerejeiras; apressa-te. Vem, alma, foge e vem ao meu encontro. Faço-te promessas sem intenção de cumprir (vês como te amo de verdade?). Prometerei o mundo, porque sem ti as manhãs demoram a chegar e os dias demoram a acabar. Devolve minh’alma, dor. Que estar sozinha é minha melhor companhia. Que com ela sinto-me segura e capaz e até as coisas banais tiro de letra – ela é meu apoio e minha guia. Devolve minh’alma que sem ela desatino, atiro e mato. Dela dependo para ter paciência e elevar-me desta mediocridade, desviando dos ignorantes e infelizes. Dela tiro forças para chegar feliz a cada degrau, sabendo aonde chegarei. Devolve minh’alma, sua filhadaputa. Devolve que nem contigo mais tenho limites. Fico boca suja e desdenho de medo e autoridades. Danem-se. Quero minh’alma a dar-me colo, quando preciso. Vê-se bem que minha cabeça dela também precisa. Nem às idéias mais presto atenção, deixo-as no ir e vir do desalento – só em minh’alma há paixão. Vê só, sumiu-me até a paixão. Aí não tem mais jeito. Devolve minh’alma senão farei revolução – mas como se só com ela ponho o mundo de cabeça para baixo? Amuada, sem alma, quero mais que o mundo se exploda. Alma, volta. Prometerei tudo, mas duvido que sequer consiga te levar a ver o nosso mar. Mas, volta. Peço-te, assim desesperançada e emputecida. É que sem ti, só sei pedir. Volta pra nossa vida que está aí parece música de descornado que toca na rádio. Volta, não sei até quando este sorriso eu saberei fingir.

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