Os homens da minha vida – tempos de pandemia

Gosto de pensar que a pandemia não aconteceu por acaso (eu acredito muito nisso) e, para quem não é tolo, as reflexões que ela causou podem ser muito úteis. Ela veio para dar fim à situações que já não se sustentavam antes, mas se arrastavam de mal a pior. Ela serviu para dar um fim no que já não apaixonava mais.

E é curioso pensar que ela também veio para destruir de vez minha (nossa?) esperança nas pessoas em relação ao futuro, às mudanças que eu imaginava ver. Como mulher, percebi que não há esperança em relação aos homens. Como dizem algumas teóricas feministas, as coisas estão mudando, mas pouco e lentamente. Eu, enfim, vi que não há mudança nenhuma.

Os homens estão diante de tudo que eles precisam saber e aprender sobre igualdade, respeito, e mil coisas, mas, mesmo assim, eles agem como os piores homens dos séculos passados. Enquanto mulher não aceito mais a grosseria, o desrespeito, a agressão (a estupidez nas respostas e tratamentos, a violência psicológica, nem mesmo o silêncio). Tenham eles vinte ou quarenta anos, geração essa ou aquela, todos – sem exceção – sabem muito bem como não devem agir. Mas, eles escolhem agir como estúpidos e idiotas e escrotos e, bem, esperam o que de nós?

Não sou eu que determino o fim de um relacionamento, é o relacionamento em si que deixa de existir. Eu apenas sigo. Parece (e é) simples. O amor é aquele bichinho que precisa ser alimentado todo dia, senão morre também. Na pandemia não foi diferente, o mundo nos desafia e quem não dança junto, perde. É preciso se reinventar, ser criativo, adequar-se às mudanças.

A falta de comunicação num relacionamento tem consequências graves que carta nenhuma, tempos depois, conserta, que arrependimento nenhum apaga. E eu, de fato, nos dois últimos anos tive motivos de sobra para ver que os homens não melhoraram. Eles continuam sendo os idiotas com os mesmos problemas de sempre. E, como eu dizia esses dias, nós não merecemos homens com problemas. Ah, mas problemas todos temos. Aham. Mas, nunca permita que os seus problemas machuquem as outras pessoas – porque elas não têm nada com isso.

Eu cansei de acreditar que algum homem, independente da idade, independente de conviver comigo que falo disso diariamente, não é machista. Que não usa o que ele mesmo faz para me diminuir, para me agredir, para me fazer lamentar pelas coisas que aconteceram. Só alguém que não me conhece para esperar isso de mim.

A pandemia levou da minha vida os homens que não me serviam e dos quais eu, por algum tipo de apego e cegueira, ainda não havia me livrado. Levou o passado que vivia a rotina (que eu tanto detesto), a mesmice, uma pessoa que não me ouvia nunca, sobre nenhuma situação. A mesma que me tratava com grosseria e achava que eu sempre estaria ali para responder quando ele quisesse. A pandemia levou da minha vida com quem tive uma parceria especial, mas que sugava, manipulava, sufocava.

A pandemia também me trouxe uma paixão avassaladora! Foi na primeira vez que saí do isolamento, ainda sob inúmeras restrições, que nossos olhares se cruzaram. Eu gosto da minha vida porque ela tem coisas adoravelmente inexplicáveis (como essa paixão e outras) e aquelas semanas foram loucas – segundo os astros, tudo estava previsto e foi um ponto de virada na vida – e eu só abracei tudo que aconteceu. Saí desse turbilhão com a vida do avesso, depois de ser arrastada por ondas gigantes, lançada contra as pedras do costão, engolido a água intragável do mar… quase afogada, me arrastei em direção à praia pensando que deixava a tempestade em alto-mar. Tola que fui: o pior estava por vir. E eu não vi mesmo! Porque estou, como é, Sandra? Dançando com a vida… de rosto colado…

Pelo menos aprendi uma coisa, eu gosto das diferenças nos relacionamentos. Eu tenho pavor do tédio e pensar em duas pessoas “iguais” num relacionamento não pode ser outra coisa. Eu gosto das diferenças sociais, de gosto, de idade, de práticas e atividades, quanto mais diferente, mais atraente. Bem, não me falta experiência para poder afirmar isso. São as diferenças que me atraem, que constroem um relacionamento interessante, pulsante, desafiante. Porque é com as diferenças que a gente aprende – e se tem uma coisa que eu gosto na vida é de aprender. E o que é um relacionamento senão o contínuo aprender o outro?

Tem homens que acham que têm um controle tão grande sobre as pessoas, que eles reagem muito mal quando vêem que fracassaram. E eu já tenho maturidade o suficiente para não ter pena desses homens! Tanto eu tenho maturidade quanto falta coragem para esses mesmos homens encararem uma mulher séria, madura, que sabe o que quer e não tem medo nenhum de seguir o que sente. Eu sei, é 2022 e a covardia ainda domina muitos homens. A covardia os corrói todo dia, enquanto a cabeça deles repassa cada atitude que deixaram de tomar, cada calhordice da qual foram capazes.

Acima de tudo, esses homens que passaram pela minha vida, nos dois últimos anos, me fizeram aprender uma coisa: eu nunca vou deixar que usem o meu trabalho para me atingir. Eu sempre prezei muito a minha profissão, eu sou super responsável com o meu trabalho, a seriedade com a qual eu trato o que eu amo fazer é sagrada. Quando eu percebi que eles estavam usando isso para me diminuir, para “se vingar”, para tentar me prejudicar porque eles eram incapazes e inconsequentes para assumir o que faziam, eu dei um basta. Jamais alguém – principalmente homens – vai usar o meu trabalho para me fazer mal, porque só eu sei tudo o que eu fiz e passei para chegar até aqui – e não pretendo parar. Isso me fez pensar em quantas mulheres ao redor do mundo são diminuídas, humilhadas, usadas, prejudicadas com os seus trabalhos por causa de homens escrotos – dentro e fora de casa. Aliás, fiquei até rememorando casos conhecidos. Cheguei à conclusão que falamos pouco disso e essa é só mais uma das coisas que, se está mudando, é pouco e lentamente.

Com a alma leve e tranquila eu sigo. Mais tranquila do que nunca. E mesmo que a cada dez anos uma cobra coral cruze o meu caminho, eu vou me arrastar pela praia até que a tempestade passe, que a ressaca amaine e o sol volte a brilhar. Às vezes eu penso, “continuo a mesma”, mas, sinceramente, eu só melhoro. Porque a vida não tem graça com nada sempre na mesma, eu morreria de tédio. O que não muda, e não mudou para esses homens dos dois últimos anos, é me pintarem como um monstro, o carrasco da vida deles! Bem, uma morena pode causar muitos estragos, já ensinou o cinema clássico de Hollywood – e aquele cantor. Quem sou eu para desmoralizar a nossa fama! (Ou para pintar o cabelo!) Como diria Jair… deixe!

Enfim, é a vida. Perdi as esperanças. Os homens não melhoram. Eles continuam os mesmos e tenho que me deparar com eles e suas grosserias, no trabalho, na vida pessoal, na reunião do conselho, em casa, onde for. Não importa a idade, pode ser um jovenzinho ou um da velha guarda, pode ser o mais ativo da igualdade nas redes sociais ou o mais brucutu offline (aliás, este tem mais chances de respeitar e admirar as mulheres, segundo minha experiência). Os homens ainda acham que dominam o mundo e as mulheres – porque, não estão erradas as pesquisadoras, eles ainda o fazem de fato. Vamos parar de fingir que as coisas estão mudando, assim eles também não precisam fingir que se interessam e importam.

Eu só sei que fiquei enojada com a covardia, que senti desprezo pela arrogância, que fiquei indiferente aos lamentos. Porque eu nunca faltei com o diálogo com ninguém nessa vida e fui humilhada e ignorada nas inúmeras tentativas de que o olho no olho e a expressão dos sentimentos resolvessem tudo. Quando não há diálogo, tudo se perde. Eu posso ser a melhor pessoa do mundo quando estou com alguém, até que a confiança e o respeito se ausentem. Daí, eu realmente não tenho mais obrigação nenhuma – com quem quer que seja, não só com os homens.

Já diria Robertão, em paz com a vida e com o que ela me traz… eu sigo – de pé e cabeça erguida. Precisa muito mais que um homem para arrancar minha felicidade de mim. E era uma noite de sexta, chuvosa, já esse Outono chato, quando Elis me ofereceu a canção definitiva desses dois anos, no assunto homens. Se alguém precisa de respostas, esse alguém não sou eu. Os homens que tratem seus problemas e, de preferência, só depois se aproximem de alguém porque, olha, ninguém merece vocês.

O Outono é chato, porém, “ah!, porém!”, Paulinho me anima a relembrar o Verão e todas as decisões que tomei nas longas conversas com o mar e o céu estrelado. Tem tanta coisa que é muito melhor (e mais eficaz) que terapia. Só os indecisos têm medo de mulheres decididas (se forem morenas, então!). Aliás, duvido muito que exista terapia para resolver os problemas (inclusive sexuais) de alguns. Ser bem-resolvida/o é mal visto na contemporaneidade, né. Mas, eu super recomendo!

Obs.: a trilha musical desses dois anos é extensa – a maria palheta ficou muito feliz com a paixão fulminante – e foi crucial para todas as reviravoltas brevemente resumidas nessas duas páginas; mas deixo aqui duas delas: a primeira me faz dar gargalhadas toda vez que toca (e não foram poucas nesses meses todos) e um dia ainda vou gravar uma versão acústica e oferecer aos sofredores; a outra foi um acalanto maravilhoso enviado pelo Destino na voz da deusa Elis (não podia encerrar melhor). As outras, bem, elas fazem parte da minha vida e, quem sabe, estejam aí para embalar novas paixões e tantas outras desilusões.

A liquidez do hype

A sensação boa que eu tive ao assistir à And Just Like That. Poderia ser só um revival para as saudosas dos anos 1990 de uma televisão que foi sacudida por Sex and The City. Friends ficava no chinelo e sabemos disso. Talvez sejamos saudosas até da televisão diante de inúmeros streamings que querem nos oferecer o mundo e que não nos entregam nada – Adorno sorri com satisfação de onde quer que ele esteja. Mas, hoje não escreverei uma crítica à And Just Like That.

No primeiro capítulo somos informadas que Carrie agora não tem mais sua coluna (texto escrito) e participa de um podcast. A forma irônica como isso é colocado no texto (sim, é uma série, que tem sua origem no texto – e o meu texto de hoje é sobre isso) dá o tom da nova série. Nos anos 2020 é preciso se “adaptar” à fluidez do público, que já não lê mais, que consome o que é hype – aqui também estou sendo irônica, pois é só substituir por moda ou tendência.

O próprio podcast não é nenhuma novidade, pois o rádio e seus programas existem há mais de século. Mas, a contemporaneidade gosta disso, de reciclar algo velho, rebatizá-lo com um nome que vira tendência e voilà, logo estará bombando. Diriam alguns entendidos que são exemplos dos tempos líquidos que vivemos, essa liquidez que não nos prende à nada nem a ninguém e que nos faz robotizados diante de telas que replicam o que devemos assistir, do que devemos gostar, onde devemos ir, o que devemos praticar. É como aquele cara que cita Bauman e seu tempo líquido no perfil do Tinder, negando que queira relacionamentos líquidos… no Tinder, amigo? Ok, talvez devamos discutir coerência antes dos tais tempos líquidos.

Vejam como funciona, eu nunca li Bauman e acabo de escrever um parágrafo inteiro citando-o: eis o poder do hype e do vazio dos tempos atuais. Qualquer um pode falar sobre qualquer coisa e passar isso adiante. Não é difícil compreender o tanto de estupidez que essa “produção de conteúdo” gera. É muita publicação pra pouco conteúdo, é muita replicação de opinião sem base nem conhecimento, é muita gente – mas muita mesmo – querendo fama e sucesso sem ter o que oferecer. 

Quando vi Carrie se “adaptando” e trocando as letras escritas no papel/tela pelo podcast uma onda de reflexão me tomou neste janeiro ensolarado e ainda pandêmico. Tenho este site, originariamente um blog, há muitos anos e sempre publiquei textos escritos. São raros os posts que têm imagens, apesarde eu ser também fotógrafa. Pensei há quanto tempo temos desprezado o texto escrito, lembrando de anos atrás quando entrava num link de uma notícia e não era mais escrita, era um áudio ou um vídeo. Estamos emburrecendo? Óbvio. Ler dá trabalho e a multidão de analfabetos funcionais e digitais é gigante. Mas não é só sobre isso.

A maior tendência é de “adaptar-se” ao simplificar as coisas. Por isso eu não busco algo que dá trabalho e fico inerte diante de uma live qualquer. Tudo muito líquido, superficial e passageiro. Carrie, com seu talento e sua carreira, teve que adaptar-se a falar de bobagens num podcast, que os ouvintes mal prestarão atenção por alguns minutos enquanto fazem sua corrida do dia ou lavam a louça e esquecerão em ainda menos tempo. Porém, é a isso que hoje em dia chamam de “produção de conteúdo”. 

Eu sempre fui rígida com relação à escrita, comigo mesma e enquanto professora. Tudo passa pelo domínio do seu próprio idioma. Se você não domina o seu idioma, você é um fracasso. Além disso, além do desprezo atual que virou hype pelo texto escrito, eu me peguei pensando que o texto escrito é a origem de quase todo conteúdo que produzimos. Esses produtores de conteúdo de internet que não redigem um bom texto antes de dar o rec ou play nas suas publicações já são nada. Um podcast sem texto prévio? Uma live sem roteiro (texto)? Um post de Instagram sem texto/roteiro? Pior ainda é quando o texto é só réplica de outros conteúdos já produzidos – aqueles que somente repetem conteúdo lido de um livro ou de sites, por exemplo! Ou, pior ainda, que repetem o que outros já disseram em outros meios. Isso é até crime, né.

A “produção de conteúdo” que não tem origem no texto é irrelevante. Conseguimos imaginar uma série ou um filme, por exemplo, que não tenham origem no texto escrito? Mesmo filmes como Don’t look up, que é pior que ruim e virou a moda de dezembro passado, com inúmeras publicações em todas as redes – até aqueles que não publicam nada sobre cinema, publicaram sobre este filme – teve origem num texto escrito. 

Neste Verão além de acompanhar a nova série da Carrie, peguei um Hemingway para ler, o famoso Por quem os sinos dobram? (numa tradução de 1942, feita pelo Monteiro Lobato). Hemingway dispensa apresentações como todo clássico e digo que demorei para começar minha relação com ele – sofro do famoso temor respeitoso aos clássicos. E desde a primeira leitura entendi porque ele produziu clássicos e, enquanto pessoa, também é admirável. Foi um homem que viveu de verdade, coisa rara hoje em dia, com a coragem que a vida exige para ser encarada de frente. Li em outro Verão o As Ilhas da Corrente e me apaixonei. Num momento me dei conta que estava, deitada na rede, há dez páginas lendo a cena de uma pescaria. Ele sabe como escrever muito bem e as cenas relacionadas com elementos da natureza são mesmerizantes. Além dos livros há as adaptações para o cinema que são produções incríveis.

Por quem os sinos dobram? tem cerca de quatrocentas páginas. Num mundo no qual Carries são rebaixadas a fazer podcasts descartáveis, quem lê quatrocentas páginas de um homem que escreveu em outro século sobre a guerra na Espanha? Como desprender-se dos hypes e escolher fazer o que se quer? Não, não é arrogância e intelectualidade ou erudição. O problema é outro. O mais relevante e saudável de And Just Like That é a crítica ácida ao seu tempo, em apontar essas incoerências e em como o tempo passa e nós envelhecemos, é certo, mas não precisamos tornarmo-nos ridículas por isso.

Voltava caminhando da praia esses dias e brincava de imaginar o que seria de Hemingway se ele vivesse nos anos 2020. Jamais faria sucesso, coitado. Sendo homem, já de partida sua vida seria complicada, visto que não queremos mais saber de homens dominando o cenário (mentira, eles ainda dominam e têm todo o poder e apoio de homens e mulheres para isso, mesmo quando sabemos que são escrotos e uns merdas – mas é coisa bem de 2020s e da liquidez sermos hipócritas e superficiais nos discursos e práticas). Ninguém nem publicaria seus romances de quatrocentas páginas com alusões ao comunismo e condenações ao fascismo. Porque, é claro, não teria público para lê-los e ele sofreria pressões para não tocar “nessas questões políticas”. Seria mais rentável um romance de até cento e oitenta páginas sobre pessoas com problemas nos seus relacionamentos porque não suportam a pressão de viver numa sociedade… líquida. Pobre coitado do Hemingway se tivesse, como Carrie, que se “adaptar”.

Só segue os hypes quem não tem personalidade e vive o medo da não aceitação dessa sociedade que vive de cliques, seguidores e likes. Não vivem por si, vivem pelos outros e o tempo todo somos cercados pela “adaptação”. Adapte-se ou morra (virtualmente).

Morte digna, eu diria. Hemingway nem teria nascido nesta virtualidade, ou, quem sabe, se fosse das últimas gerações escreveria incríveis histórias em menos de trezentos caracteres – sobre as experiências de vida com suas amizades virtuais, esqueçam as guerras e viagens e boemia. Quem sabe se assim seria o Hemingway do século XXI? 

Morrer virtualmente é glorioso, pois o tanto que há de cadáveres não enterrados nas redes é incalculável. É tanta, mas tanta, gente querendo público, querendo seguidores, likes, cliques e tal que é virtualmente impossível atender à demanda (estou muito irônica hoje).

Eu não ouço podcasts. Não vejo necessidade alguma de ouvi-los e, se o fizesse, seria com total desatenção. Não publico interações da minha vida pessoal porque, enfim, eu sei o significado do termo pessoal (e, poxa, depois da Arendt alguém ainda tem dúvidas sobre esfera pública e privada?). Nunca entendi a tara das pessoas por saber da vida de pessoas famosas, imagine querer saber da vida de gente comum? (é que esses comuns querem ser famosos porque ser famoso significa… dinheiro? auto aceitação?) Hemingway era famoso. Já faz tempo que fomos vaticinados com os quinze minutos de fama, né? Lembrei daquelas crianças que eram meus alunos e que sonhavam em ser youtubers. É preciso adaptar-se, é claro. (ainda bem que ironia é de graça, senão hoje a conta seria alta)

Ou não. Ou você tem personalidade o suficiente para ter a vida que quiser, de acordo com os seus gostos e práticas, com a coragem necessária para que seus atos sejam coerentes com seu discurso. O hype é só hype e daqui duas horas já terá deixado de sê-lo. Até a Moda já entendeu isso e alterou suas práticas e padrões. Hemingway escrevia com papel e caneta e na máquina de escrever, Carrie escrevia no computador, nada de fato mudou, a palavra mantém sua força e a tecnologia também passa, talvez tão rápido quanto qualquer hype. O ser humano é que não se adapta ao que deveria e vive a superficialidade das relações mediadas, da covardia, da falta de personalidade e, desconfio, da falta de talento. Para produzir algo relevante e de qualidade é necessário ter conhecimento, aprofundar estudos, ter talento, espírito criativo – não cai do céu nem nascemos com, precisa dedicação, esforço, trabalho, empenho e muito mais. Nem todo mundo os tem – e querer “produzir conteúdo” sem ter nada ou quase nada disso e sem ter, de fato, algo a dizer é ser mais um cadáver não enterrado na esfera pública digital. Daí o que vemos é o hype camuflando a incompetência, o fracasso travestido de números, a imitação e a cópia (mortais e que merecem uma reflexão só sobre elas). 

Assim que fica viúva, Carrie volta a escrever um livro, já no segundo capítulo. É a resposta que nós, público da televisão dos anos 1990, precisávamos. A liquidez tem em si seu próprio inimigo: ela mesma passa. Nós permanecemos. O tempo sempre teve todas as respostas, Hemingway que o diga.

Mulheres – sempre querem nos fazer carregar a culpa e o pecado

De vez em quando gosto de ouvir o rádio do carro enquanto dirijo. Gosto de me ambientar no mundo. Vou trocando as estações compulsivamente até ouvir algo que me agrada ou simplesmente me chama atenção. O mercado hoje tem uma avalanche de canções de algo entre sertanejo ou o que chamam de sertanejo universitário ou o que veio depois e muito do que acabo ouvindo é disso. 

Ouvindo essas canções eu reparo na letra e em como há uma quantidade absurda de letras que culpabilizam a mulher. É sempre ela, né? A culpa é dela (seja morena ou não). De trair, de ser abandonado, de estar chorando e bebendo, de ter feito isso e aquilo. Além, é claro, de outras tantas que desejam coisas ruins às mulheres: que chorem, que sofram, que peçam pra voltar e tal. Hoje a reflexão é para as mulheres (dos homens eu desisti até que leiam e ouçam e reflitam sobre como são) e sobre algo que carregamos a vida inteira: a culpa.

É bíblico, né? A mulher é a fonte do pecado. É a mulher que faz a humanidade cair em tentação. E como o mundo é porramente machista e os homens que ainda dominam os discursos, narrativas e quase tudo mesmo esta culpa ainda é permanentemente incutida em nós – por eles, e por elas.

Como diz um amigo: quando é que homem assume o que faz? Pois é. Deve ser genético, não sou especialista na área, mas fica a dica para investigarem. Há uma atitude dos homens que se você é mulher certeza que já passou por isso, se não passou é porque não percebeu. Infelizmente a gente demora para perceber, para se dar conta que está passando pela culpabilização dos homens. Temos a tendência, inclusive, de concordar com eles! Por isso resolvi escrever. Porque cada vez mais mulheres precisam falar e se conscientizar disso.

A situação é simples, corriqueira. O homem faz algo (alguma merda, alguma grosseria, as típicas irresponsabilidades, etc.) e não assume, não se confronta com o que fez. Aí a mulher tenta dialogar, a mulher sofre, a mulher engole, a mulher sufoca. Mas, ela tenta lidar com aquilo, ela tenta fazer com que ele assuma e veja o que ele fez. Ele foge, reação mais comum, ignora, se acovarda, etc.. Então, a mulher reage (a maioria reage, à sua maneira). O que acontece? Com a reação, em maior ou menor escala, traduzida em atitudes, decisões, mensagens, gritos ou o que for (que nenhuma mulher é maravilha, não, pra aguentar esses despeitados) a mulher é culpada. Apesar do homem não ter proferido palavra sobre o que ele fez ou disse que desencadeou todo o problema, assim que a mulher reage (algumas vezes em profundo desespero) ele toma atitude e se pronuncia. Mas, para culpá-la! Foi ela que fez isso ou disse aquilo, ela é que deixou-o triste, ela é que acusou-o, ela que é assim, etc.. Nem um pio, novamente, sobre o que ele é responsável. Ele se sai com apontar o dedo para as falhas dela, para o overreacted dela.

Explica-se isso. A origem da psicanálise está aí. Lembram os manicômios cheios de mulheres histéricas? Pois é. Hoje ainda nós temos que passar pela mesma situação, de sermos chamadas de histéricas e doentes por homens que em nenhum momento assumem suas culpas e as merdas que fazem. Porque além de nos culparem pela reação que tivemos em decorrência da ação (ou falta de) deles, eles nos chamam de histéricas e doentes. Deve ser mui saudável não assumir suas responsabilidades.

Os exemplos são inúmeros! Toda vida de toda mulher tem vários deles. No trabalho, em casa, nos relacionamentos. Por que temos dificuldade de identificá-los? Porque crescemos sendo culpadas, crescemos e somos educadas a sermos culpadas e responsabilizadas pelas nossas reações a um mundo de homens estúpidos e grosseiros e merdas e irresponsáveis. A ação vem antes da reação, vale lembrar.

Um exemplo clássico, quantas vezes já ouvimos a mãe ou a sogra dizer, para a esposa traída “mas o que você fez (ou deixou de fazer)?”. O marido trair, é obvio, todo mundo sabe, é culpa da esposa porque ela faltou com alguma coisa. Em qualquer situação o cara faz merda, a mulher chora, é agredida de várias formas (nem sempre com violência física), está machucada, mas quando reage à humilhação de ver seus sentimentos destruídos, de ver-se ignorada, de não compreender o que ele fez, e diz o que a arrebenta por dentro, quando xinga, quando ofende, quando fala a verdade, principalmente (e àquela à qual o macho foge), ela é histérica e doente. Vem o homem paternalista do caramba dizer que foi feio o que ela fez, o que ela disse, como ela fez.

Sabe, todo dia é um peso estafante ser mulher. É um peso absurdo que nos fazem carregar toda hora que nos deparamos com o tratamento de merda que os homens ainda acham que têm o direito de nos dispensar. Eu sonho com o dia que tenhamos novas gerações que não mais terão que aprender a ser mulher desde cedo, a se defender, a reconhecer as armadilhas e o machismo inerente a todos os homens. Só sonho, porque perdi qualquer fé de ver os homens das novas gerações sendo menos piores. Não precisa muito para perder a fé. Eu ainda algum tempo atrás pensava e dizia que precisávamos que os homens estivessem ao nosso lado, criticando e condenando os seus iguais nas atitudes de merda e machistas deles. Mudei de idéia. Não precisamos deles porque nem eles jamais conseguirão fazer isso, assim como muitas mulheres. Vejo esse discurso de rede social sobre as “manas”, sobre empoderamento, sobre sororidade e, queridas, vocês estão falhando feio. O discurso nas redes é só discurso mesmo enquanto vocês apoiam homens que fazem merda, enquanto vocês mesmas fazem questão de prejudicar e fazer mal às outras mulheres. Vocês valem menos qu eles.

Eu já passei várias vezes pela culpabilização vinda de macho. Hoje já identifico bem mais rápido, mas no primeiro momento sempre nos faz mal. É como rever velhas cicatrices, é um momento de desnorteamento até que você olha de novo e “porra, tu acha que eu vou cair nisso?!”. Essa é a prova de que não somos histéricas nem doentes. Nós somos inteligentes. Enquanto eles reproduzem uma atitude tão vil e vulgar do machismo nosso de sempre, muitas de nós já superamos isso. 

Homens, fiquem com seus dedos apontados para as nossas “culpas” até eles apodrecerem junto com as irresponsabilidades e merdas de vocês. Nós passaremos.

Nem digo mais “homens, melhorem” porque é jogar palavras ao vento. Perdi totalmente a fé de que homens podem ser melhores, eles escolhem deliberadamente ser os merdas que são – é uma escolha consciente. Mas, cuidado, tem muitos homens por aí travestidos de “boas intenções” e, na verdade, só estão se aproveitando do discurso da inclusão das mulheres e diminuição das desigualdades e respeito e blábláblá. Abram o olho, o mundo real é a vida e as ações, e não as redes sociais e os discursos. 

Mulheres, melhorem. Superem essa coisa que corrói por dentro de querer competir com mulheres e prejudicar mulheres e achar que são fodonas mentindo e se enganando. Ajudem outras mulheres a ver quando são vítimas da culpabilização machista e quando estão sendo usadas e abusadas por homens – mesmo que elas resistam. O que a gente aprende enquanto mulher é tão doloroso que devemos passar esse conhecimento à frente para que menos mulheres sofram – e mais homens sejam desmascarados.

Não mudaremos o mundo nem essa sociedade machista podre, mas salvaremos algumas mulheres de um sofrimento que eu não desejo pra ninguém.

Ainda sobre jardins

Há uma expressão em francês, “cultiver son jardin” que inspirou a última publicação. Tem um cunho metafórico, poético até, sobre cultivar a própria tranquilidade, estar bem consigo mesmo. Eu tenho um apreço muito grande por jardins e quintais, fui criada livremente num e não saberia viver sem. Quando passeio por aí, seja no meu bairro ou em outro país, gosto de reparar e apreciar os jardins. Cultivar um jardim dá bastante trabalho, trabalho braçal mesmo, trabalho pesado, então sempre que vejo um jardim bem cuidado, uma árvore bonita, eu valorizo muito não só a beleza e o deleite, mas o esforço do responsável. e por ser algo tão trabalhoso, vemos cada vez menos jardins. As pessoas desistiram de cuidar dos seus jardins – metafórica e literalmente falando. 

Quando a pandemia chegou, as pessoas se deram conta que não amavam os seus jardins ou que não eram felizes neles. Porque já há algum tempo elas não se davam ao trabalho de cultivá-los. Esses jardins dos quais falo existem sob quaisquer tetos também. Sem saber mais como cuidar, como amar, como ser amigo do tempo (todo jardim requer paciência e tempo) para ver aquele jardim florescer, as pessoas entraram em desespero – era mais fácil quando podiam viver na rua, sem olhar para o próprio jardim abandonado. Alguns, ao se depararem com seus erros e desleixo, souberam voltar a cuidar do que realmente importa, souberam amar aquilo que haviam deixado para trás. Foram esses que souberam ser felizes com seus jardins novamente bem cuidados – só espero que não os abandonem novamente. Porém, desconfio que estes foram bem poucos. A maioria mesmo não via a hora de sair correndo e ver qualquer outra coisa, desde que não tivesse que conviver com o próprio jardim abandonado. Sabemos muito bem o que esses fizeram – e têm feito.

Quando falamos de jardim é tão mais fácil entender porque o mundo precisa de mudanças. Seja num encontro mundial para discutir o clima, seja nas vozes das crianças e jovens conscientes, o mundo precisa que entendamos que ele é o nosso jardim. Assim como eu cuido dos meus jasmins e das minhas amoreiras, eu cuido das pessoas que eu amo, e eu cuido do que eu consumo para que não sejam destruídas as florestas, eu cuido do meu lixo para não poluir mares e rios. É tudo uma coisa só. Mas se não nos importamos com os nossos jardins, como vamos cuidar do jardim que é de todos? 

E é essa indiferença que eu jamais entenderei. Nem os maiores filósofos do passado entenderiam (não estou me comparando com eles, credo) a falta, nos seres humanos de hoje, de um princípio básico: o de sobrevivência. Muito se discutiu sobre isso, que o ser humano tem, acima de tudo, o instinto de sobrevivência, que nem é só um instinto, mas que racionalmente buscamos sobreviver. Quando vemos hoje as pessoas ignorando cuidados básicos de saúde e desprezando o cuidado com o meio ambiente percebemos que, nelas, extinguiu-se o princípio de sobrevivência. Eu não uso máscara, nem evito concretar todo o meu terreno porque estou pensando só em mim. Eu sei que a máscara é essencial para preservar vidas além da minha e sei que a chuva não terá para onde ir e entrará na casa de todos. Instinto de sobrevivência junto com pensamento racional. Devia ser tão simples. 

Cada vez me convenço mais de que tudo deveria ter parado completamente no início da pandemia. Tudo. Sem adaptações para o online, sem o famigerado home office, sem nada fingindo que tudo poderia se ajeitar. Isso só não foi possível – é evidente, mas, ainda assim, necessário nomeá-lo – devido ao sistema capitalista. O capital diz que as nações têm que produzir e consumir, produzir e consumir. E nós só precisávamos parar por algumas semanas até conter o vírus, evitar novas variantes e salvar milhares de vidas. Era só isso. Mas, o capital inventou que nós poderíamos continuar consumindo pela internet, sem correr risco (mas expondo milhares de outros ao risco, de produtores a entregadores), inclusive comida, explorando absurdamente os produtores deste meio, explorando e expondo os entregadores. A minha vida, eu sobreviver numa situação trágica, sempre – sempre – custará a vida de alguém. Esta lição é nobre e desde quando a aprendi (com Primo Levi) tento passá-la adiante. Aquelas pessoas que morreram, morreram para que nós, hoje, estivéssemos vivos. Muitas delas não tiveram a chance de ficar em casa, pedindo comida por aplicativo, comprando inutilidades pela internet (quanto antes admitirmos que são inutilidades, melhor), fazendo festas online. 

Porque nos faltava cultivar nossos jardins. Se cada um fosse feliz no seu jardim, saberia ter enfrentado o isolamento e a pandemia muito melhor – sem ânsias de sair e ver gente e consumir, e postar foto na praça de alimentação do shopping. Produzir e consumir, produzir e consumir. Quando foi mesmo que nos reduzimos a isso? Quando que tornou-se mais importante eu sair e não usar máscara, expondo-me e aos outros ao meu redor, do que eu salvar a minha vida? Quando que produzir e produzir foi mais importante do que eu manter minha paz de espírito e preservar a vida dos que viviam comigo? Quando que consumir deve vir acima de todas as coisas?

Vi muita gente desesperada nestes últimos tempos. A falta que um bom jardim bem cuidado faz na vida das pessoas… O desespero é mau conselheiro – o medo é o pior. Juntos, eles levaram as pessoas à irracionalidade, à ignorarem o próprio instinto (não há nada de errado no instinto, pelo contrário, é o que temos de mais natural em nós), e se jogarem nos braços da morte por intermédio de um sistema que os desumaniza na totalidade. Produzir e consumir. 

Para muito além dos discursos bonitos e de curtir os posts da Greta, é preciso um exercício precioso e, quiçá, doloroso: voltar-se para o próprio jardim. Desconfio que quase ninguém vai gostar do que vê. Por isso mesmo é tão precioso. Mas, desconfio também, o mantra “produzir e consumir” estará lá tão incutido nas cabeças que através de auto-ajudas e analistas de todo tipo, dirão para aceitar o jardim do jeito que está, afinal, não é sua culpa – culpabilizar(-se) está proibido, não sei bem o motivo. Confesso que, às vezes, é difícil acompanhar todas as desculpas esfarrapadas que a sociedade dá para si mesma e para seus erros. Quem sabe já digam que produzir e consumir é instintivo no ser humano. Não duvido.

Mudou a minha vida

(escrevo este texto pois sinto-me em dívida com uma pessoa,

e sem ter como agradecê-la, deixo o registro, que provavelmente nunca será lido)

Imagino que já aconteceu com todo mundo, mesmo que nem todos tenham se dado conta. Há gestos, nossos e dos outros, que mudam a vida das pessoas. Por vezes, nem é um gesto, é apenas uma frase. Quiçá um olhar.

Dirão que é coisa de quem vê em tudo a mão do Destino (e é), ou que é coisa de quem vive acreditando em misticismo e superstições. Por certo que quem vê a vida assim é mais feliz e encontra mais sentido em toda nossa passagem pela Terra. Alguns, religiosos, terão outras interpretações – que em nada impedem de ser acrescentadas às outras explicações. Se alguém ainda acha que a vida é algo racional, exato e calculado, acho melhor parar por aqui.

Eu acredito no Destino e inclusive já falei dele, o tal velho safado. Ele ri de mim, se diverte, me leva à loucura. É o segundo bom amigo que tenho neste mundo, pois todos sabem que o primeiro é o Tempo (sempre foi). E certeza que é o Destino que coloca as pessoas diante umas das outras, com funções específicas, e neste momento as coisas acontecem.

Quando eu estudava na graduação, à noite e longe de onde eu morava, eu pegava o ônibus. Volta e meia via um senhor, figura atípica num ônibus que tinha o embarque na universidade, dez da noite, direto para a outra cidade. Ele sentava em qualquer lugar do ônibus, ao contrário de mim, que sempre sentei no mesmo lugar (como boa velhinha que sou), ali na frente do cobrador. Eu via-o sentar e sempre puxar conversa, mesmo que os jovens arrogantes e arredios não fizessem muita questão com seus fones de ouvido e desinteresse natural. Um dia ele sentou ao meu lado e conversamos o trajeto todo. Não sou de conversar gratuitamente, mas naquela época eu fazia isso e acho, hoje, que é herança (obrigada, vô) ter essa disposição de bater papos com desconhecidos. Sobre o que foi a conversa? Nem saberia dizer depois de tanto tempo. Mas lembro que falamos sobre um assunto em específico que, na época, me marcou muito e “ajudou” a tomar uma decisão que eu precisava tomar. Cheguei em casa eufórica, pensando sobre a conversa, tomei banho, preparei minha janta e fui dormir com a resolução que tomaria no dia seguinte – e que provocaria inúmeras mudanças na minha vida. Nunca mais vi aquele senhor na vida.

Podem ser situações assim, inexplicáveis. Podem ser questões mais concretas, como o Elias na rodoviária de Goiânia (eu sempre falo nele). A pessoa que te ajuda, que faz além do que ela deveria, para resolver as coisas. Essas pessoas existem e estão sempre pelo nosso caminho. Mas, depende de nós.

Primeiro, depende de nós termos ouvidos e olhar atento. Se ignoramos sempre tudo e todos à nossa volta, jamais teremos contato com o extraordinário. Tem pessoas que são assim, só olham para si, só vivem no seu mundinho. Que pena. E também depende de nós saber compreender, ver o contexto, refletir sobre os acontecimentos, sobre os milagres e acreditar no Destino. Essa, acredito eu, é a parte mais difícil. Porque, simplesmente, não há regras, não há cartilha, não há certezas. É preciso desenvolver, ao longo da vida, uma visão profunda das coisas que acontecem para, às cegas, apenas acreditar. Vale intuição? Vale. Mas a reflexão e a observação também são bem confiáveis.

Tem dias que não esperamos nada da vida, e aí ela nos chama para dançar. Não vale a pena dizer não. Quem se recusa jamais saberá o que está perdendo. Quem aceita, se joga. É preciso se jogar de cabeça, sem perguntas. Quem sabe as explicações virão, às vezes nunca saberemos ao certo qual era a música ou para onde fomos. O certo é que tudo aquilo terá um efeito.

Nesses gestos, pode ser uma mera frase, ou um verso, dito por quem você não conhece. E você se depara com uma verdade que na tua vida inteira nunca tinha se dado conta. Pode ser simples assim, ou essa simplicidade pode ser apenas o começo do entendimento de toda a situação. Vai depender do quanto você está disposto a mergulhar nessa aventura com o Destino. E, como ao senhor daquele ônibus, talvez, como eu, você nunca terá a oportunidade de agradecer.

A verdade é que nós nunca sabemos como os nossos gestos, as nossas ações, mudam a vida das pessoas. Pode ser algo muito fortuito, pode ser com relacionamentos e presenças mais frequentes e próximas. Uma conversa, um convívio, uma lembrança, uma ajuda, uma declaração, um gesto, um olhar, um sorriso. O oposto também é verdadeiro, temos poucas chances de dizer às pessoas como elas mudaram a nossa vida – com tão pouco.

A morte do Cinema Brasileiro

Ontem foi o dia da Morte do Cinema Brasileiro. Foram anos gloriosos, alguns não tanto, não por culpa dele mesmo, é claro. Fazemos e assistimos ao cinema brasileiro desde aquela famosa filmagem na Baía da Guanabara, em 19 de junho de 1898. Para além da discussão de datas, se devemos comemorar a primeira filmagem ou a primeira exibição, a vida e a permanência do nosso cinema sempre esteve ameaçada.

Ontem faleceu o ator Paulo Gustavo, vítima de covid-19. Um dos atores de maior sucesso do nosso cinema, campeão de bilheteria, popular e talentoso. Considero, portanto, digno marcar a data como a morte do Cinema Brasileiro. Os últimos suspiros foram Bacurau e Democracia em Vertigem, provavelmente, antes de alçarem ao poder este governo de genocidas. Morre com Paulo Gustavo toda a última Era brilhante e profícua do cinema que tanto nos orgulha, pois desde a última eleição o cinema tem sido paulatinamente destruído e sufocado.

O mesmo governo que faz campanha pela morte dos seus cidadãos, incitando violência, caos, irresponsabilidade e tratamentos ineficazes diante de uma pandemia é aquele que destruiu as políticas públicas de cultura, censura e censurou obras e artistas e propaga o ódio à esta classe trabalhadora. Nem quero comentar a desfaçatez do presidente em dar uma nota de pesar pela morte de Paulo Gustavo. Junto a ele foram tantos outros artistas, compositores, cantores, atores e atrizes, técnicos vítimas de um vírus que não teve nenhuma política pública de contenção por parte do governo federal (e de tantos governos estaduais e municipais). Vale ressaltar que instituições internacionais alertam para este assassinato da nossa cultura, apontando paralelos com Rússia, Turquia e Hungria, onde não há leis explícitas de censura, porém o controle silencioso de tudo que é produzido. Dizem elas que estamos praticando a mesma coisa.

Sempre estudamos, na História do Cinema Brasileiro, que o governo Collor foi a “pá de cal” no cinema, quando tivemos um ano sem produções de longa-metragem. O setor todo sentiu, de uma hora para outra, o fim das políticas públicas e apoios à produção cinematográfica. Depois disso, nosso cinema sobreviveu aos anos Itamar, FHC e floresceu nos anos do Lula e da Dilma. Tivemos leis aprovadas, criação do Fundo Setorial, uma real e efetiva estruturação de toda a cadeia do setor, forte presença da ANCINE e de várias regulamentações, editais, patrocínios e financiamentos que permitiram ao setor crescer e se desenvolver. Permitiram uma ligação inédita com o público, permitiram filmes como os que o Paulo Gustavo fazia, foi nessa época que os recordes de bilheteria da década de 1970 foram batidos. O nosso cinema já era reconhecido lá fora (não que isso importe), e o que mudou foi termos um aumento na qualidade e na quantidade de filmes produzidos. Foi nessa época que “ganhamos” espaço na TV por assinatura e nas salas de cinema, nos inúmeros festivais que inundaram o país, e cresceram os cursos na área. Nunca fomos um cinema vira-lata, mendicante, pobre.

As comédias, inclusive, são nosso ponto forte. Campeãs de bilheterias, são elas que falam mais diretamente com o público, vivem cravadas na nossa cultura, nos hábitos e costumes. Por isso mesmo, não são elas que fazem tanto sucesso lá fora, porque é sabido que as comédias tendem a tratar de questões mais corriqueiras e entranhadas numa cultura, sendo, por isso, às vezes mais difíceis de serem compreendidas por pessoas de culturas diferentes daquelas onde foram produzidas. Os atores e atrizes desses filmes caem no gosto popular, participam de tantos programas e especiais, inclusive na TV, que são facilmente adorados e reconhecidos. Quando são bons, é claro, e esses não nos faltam. 

Porém, tudo mudou. Antes mesmo da pandemia, projetos que haviam sido aprovados ficaram sem recursos e sofreram censuras e o Ministério da Cultura, criado em 15 de março de 1985 foi aniquilado (no governo Temer houve a tentativa de acabar com o Ministério, revertida sob pressão popular). A ANCINE é vítima de um desmonte sem precedentes, a Lei Rouanet (que só mudaram o nome), está paralisada, não contratam avaliadores, os projetos estão represados nas mãos de um único indicado (ex policial militar). A Cultura, de forma geral, é o bode expiatório deste governo de genocidas, pois é do que eles mais têm medo. Eles têm medo do que somos capazes, porque nós somos muito capazes. Curiosamente, com a pandemia não foi só a produção nacional que sofreu congelamento, pois até mesmo você que ama seu super sucesso clássico hollywoodiano ficou sem ter acesso às salas de cinema – enquanto o vírus circular livremente, ninguém terá acesso à elas e poucas sobreviverão abertas depois.

Quando falamos de um governo que tem como política a destruição – de vidas, da educação, da cultura, do sistema de saúde, do meio ambiente – é a isso que nos referimos. Ontem o cinema brasileiro morreu junto com Paulo Gustavo. Não vemos no horizonte sequer a possibilidade de retomada do setor. Não é apenas um problema de não termos salas de cinema e festivais abertas para exibirmos nossos filmes: a produção, as gravações estão todas paradas. Quer dizer, quem trabalha com cinema, e tem consciência que entrar num set hoje é fazer o vírus circular, está paralisado. Infelizmente, também dentre nós há aqueles que insistem em “produzir mesmo assim” e sequer usam os EPIs adequadamente. É lamentável, ainda mais vindo de pessoas que dizem ser contra o atual governo e seus desmandos, que tenhamos entre nós essa gente irresponsável (é a única palavra que me ocorre). Contudo, a realidade do setor é a paralisação, é a falta de trabalho, é a necessidade. Muitos profissionais do setor abandonaram suas funções e buscaram trabalhos os mais diversos para manter seu sustento, esta é a mais cruel realidade, até porque os auxílios do governo, previstos para a área da Cultura, foram insuficientes e mal distribuídos. 

O problema se dá que queremos voltar a trabalhar, só isso. Não estamos pedindo esmola nem nada (a recordar o que tanto falam dos trabalhadores da Cultura). Queremos que o número de contágios e o número de mortes seja controlado com medidas eficazes oriundas do setor público – e, não posso deixar de lembrá-los, da própria população. Sei que há, apesar de não saber o que se passa na cabeça de pessoas assim, quem defenda que não precisamos de cinema aqui no Brasil. Essa gente não se importa com a produção cultural do próprio país, acredita que não temos nada de qualidade, prefere assistir a outras coisas (de origem e qualidade duvidosas, inclusive) e, para piorar, ignora que somos muitos trabalhadores que vivem disso. Assim como uma pessoa escolhe ser advogada ou encontra sua vocação no design, na engenharia, nas vendas, e em qualquer outra profissão, nós temos o nosso conhecimento, formação e amor à profissão no cinema. No mínimo, é ignorância e egoísmo achar que não temos direito a isso.

Não temos previsão de retomada. Aliás, curioso usar esta palavra: “retomada”. É por ela que conhecemos o período que segue o “fim” da Era Collor. O Cinema da Retomada é o período quando voltamos a respirar, retomamos o fôlego, mostramos a nossa cara – o marco, inclusive, é um filme muito popular e excelente: Carlota Joaquina. Fazemos rir e rimos de nós mesmos. Hoje a realidade nos cala, não duvido que na próxima “retomada” nós ainda riremos muito disso tudo – o talento do nosso cinema e dos nossos roteiristas, diretoras e diretores, atores e atrizes nunca deixa de nos surpreender. Acredito que antes disso ainda entraremos em choque com os documentários e ficções que nos levarão a refletir sobre tudo isso que temos passado: com socos no estômago e tapas na cara. É, afinal, para isto (também) que estamos aqui.

A maior culpa é do governo instituído e composto por genocidas (lembrem, ninguém faz um governo sozinho). Porém, cada um de nós que faz o vírus circular também é culpado. Muito culpado. Cada um de nós que tomou atitudes irresponsáveis (indo à praia, à festas, ao supermercado, ao bar porque “o dia está tão lindo”, dizendo “ah, eu já peguei mesmo” e tudo mais que nem tenho mais paciência para listar) é responsável pela morte do Paulo Gustavo e dos mais de quatrocentos mil mortos. Chega de querermos só responsabilizar os outros, né? O desemprego, a crise e as mortes são culpa de cada um que não teve consciência e tornou-se cúmplice do governo de genocidas. Nós só queríamos trabalhar com segurança. Só queríamos viver este sonho que é trabalhar com cinema e audiovisual, no Brasil. Só queríamos estar vivos. Enquanto estamos paralisados, sem produzir, muitos de nós morrem, como o Paulo Gustavo e o nosso Cinema. Eu quero crer que voltaremos, um dia, com toda a força que tentam nos tirar. Hoje, eu só me revolto e lamento o sucesso que os genocidas e seus cúmplices alcançaram. 

Quando for a data da Nova Retomada eu voltarei com alegria e desforra a escrever aqui.

Natureza e Cultura

Talvez o que muito me alarme é ver que as pessoas não se dão conta de que fazem parte da natureza. E então, século XXI, temos um mísero vírus que veio mostrar a todos sua condição de humano, mortal e integrante da natureza. Não fossem as queimadas arrasadoras da Amazônia e do Pantanal, com as quais destruímos tudo o que tínhamos, que nos foram dadas de mãos beijadas, para que ainda sobrevivêssemos muito tempo por aqui, e o ser humano diante de um vírus que mata e adoece, além de deixar sequelas graves, e ainda não nos vemos como parte da natureza.

Logo no início da pandemia, numa missa o padre Bertino falou sobre a natureza. Claro, do ponto de vista religioso Deus fez tudo isso, toda a vida e a natureza. Mas, mesmo para quem não acredita em Deus (e dentre esses e aqueles há tipos das piores espécies), a natureza existe e nós somos parte dela. Simples assim. As crianças hoje não sabem disso. Tive a infeliz oportunidade de me deparar com esta questão em sala de aula, crianças que não sabiam que o ser humano não é “criação” de si mesmo e pertence ao mesmo mundo que os animais, as plantas, o mar, o vento, a terra.

Sem precisar de nenhuma Greta Thunberg, sem desmerecer o trabalho louvável que ela faz, deveríamos ser capazes de nos entender enquanto ser que vem da natureza. Mas, crescemos cada vez mais desligados da terra, longe das árvores, ralando o joelho no cimento das calçadas e dos pátios dos prédios. Nascemos vendo a natureza nas telas da TV e do celular, ouvindo falar dela com o distanciamento das salas de aula enquanto crescemos e, quando muito, temos um contato fugaz e vil (que assim se dá o prazer de algo que nos é útil apenas) quando de férias em alguma praia ou parque. Ganhamos um cachorrinho porque temos inveja do colega, se ele morre logo nos dão outro, porque a vida e a natureza são substituíveis.

Assim como nossos avós que estão (ainda) morrendo às centenas na pandemia, eles morrem porque são velhos, mal os enterramos e a vida segue. Distanciamos as crianças de tal maneira do que é a vida, dos seus ciclos, da sua perenidade, do quanto precisamos da natureza para estarmos vivos, que machucá-la é machucar a nós mesmos, que não há mais volta. Nem um vírus violento pôde lograr fazê-los entender que é preciso respeitar a natureza. O vírus, em si, já existia na natureza há muito tempo. Nós, como seres humanos, que desrespeitamos regras simples. E, ao que tudo indica, continuaremos a fazê-lo com sofreguidão. Tantas conquistas que o último século nos trouxe caem por terra diante do medo do ser humano morrer contaminado – e voltamos aos plásticos, aos descartáveis, a não reciclar objetos contaminados.

Em meio à pandemia entreguei-me de corpo e alma, ainda mais, à natureza. Tenho o privilégio de viver cercada dela, somos resistência. Enquanto todos colocavam pisos e brita, nós mantivemos a terra. A cada flor que desabrochou nestes mais de cento e oitenta dias de isolamento, a cada galho brotado, a cada centímetro de crescimento das mudas, a cada pulo alegre dos cachorros, a cada sabiá cantando na janela, meu sorriso não me abandonou. Mantive, assim, a sanidade. Sinto-me parte desta natureza. Sinto falta de tantos outros espaços, além do meu quintal, nos quais sempre pude ver e viver a natureza – muito melhor que qualquer barzinho sufocante ou lanchonete fechada com ar condicionado, desses não sinto falta nenhuma. Mas, voltarei a eles, quando a presença do ser humano não for mais um risco de vida. Hoje, é isso, a presença de outros seres humanos é um risco de vida. A natureza algoz de si mesma, por nossa própria culpa.

Certo que também me entreti com as obras do ser humano, com tudo isso que produzimos para provar que somos diferentes (melhores?) do que os outros animais e árvores e plantas. Tudo o que o ser humano produz é cultura. Curiosamente, também a cultura tem sido paulatinamente destruída neste mundo – pelo próprio ser humano, com essa gana de destruir a si mesmo. Não é o vírus o nosso maior inimigo.

Eu acredito tanto numa quanto na outra: tanto na natureza quanto na cultura. Não vivo, absolutamente, sem nenhuma das duas. Aliás, vivo todos os dias muito próxima delas. A humanidade, confesso, é que não me faz falta (assunto para outro dia). Leio livros, jornais e revistas, assisto séries e filmes, convivo com todo tipo de tecnologia, vivo com meus animais e plantas, planto, colho, faço compostagem. Há um ritual em tudo isso: viver. Minha alegria foi, nestes tempos, encontrar dois filmes que falavam justamente da nossa relação com a natureza. Curiosamente, dois filmes filmados na Bolívia.

Um deles, Salt and Fire, dirigido por Herzog, tem atuações péssimas. É, infelizmente, o que coloca tudo a perder. Porém, o argumento era bom, prometia um percurso de uma mulher diante de questões grave sobre a usurpação da natureza pelo ser humano. Numa sequência lúdica, vemos dois meninos presos com a protagonista numa ilha no meio do lago de sal: tinha tudo para ser excelente, não fosse a direção incerta e a atuação pífia. Porém, seu significado é tocante. Somos parte da natureza, por vezes nem quem a defende entende isso. Herzog é mais um diretor homem superestimado. Sem negar seus filmes bem-sucedidos, sabemos que é exagero tudo o mais. A sequência final do filme é totalmente esquecível, bem ao tom do cinemão mais do mesmo. (mas reparem nas péssimas atuações novamente)

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Aparentemente Salt and Fire não era para ser filmado na Bolívia. Mas, no caso de También la lluvia, seria difícil pensá-lo em outro lugar. Um filme adorável, com atuações brilhantes, uma direção decidida e impecável. Dirigido por uma mulher, Iciar Bollain, da Espanha, também com participação de Gael Bernal (em Salt and Fire ela começa o filme e depois some), apesar de protagonizada por homens, conta duas histórias. A história da produção de um filme nos rincões bolivianos e a história de uma América colonizada pelos espanhóis, num gesto quase de mea culpa. También la lluvia nos apresenta um mundo corrompido, onde a natureza perdeu-se dos seres humanos, mas que é, ainda, protegida pelos indígenas que sabem (nunca deixaram de saber, como nós) que dela vivem e dependem. Além das piadas internas sobre as figuras do produtor e do diretor, assim como sobre os egos e personalidades dos atores, o filme flui confrontando as duas histórias, até que, finalmente, um boliviano possa ensinar ao espanhol o que vale a vida.

Não é de se espantar que a cultura, essa coisa criada pelo ser humano e sobrevivente dos ataques dos seus próprios criadores, essa coisa que nós criamos (todos os dias!) para fazer do mundo ainda mais belo (pois a natureza já o embeleza o suficiente), essa coisa que dá sentido às nossas vidas; não é de se espantar que a própria cultura pague tributo à natureza. Eis um gesto inteligente dos meros mortais que nós somos. Porque nunca imaginei que precisaríamos de um vírus invisível aos olhos, mortal aos pulmões, tão pertencente à natureza quanto nós, para nos fazer entender o quão errados andávamos pelo mundo. Nunca terei imaginação o bastante para entender o que faz tantos e tantos ainda andarem errados pelo mundo. Enfim, seja bem-vinda a Primavera. Apesar de termos conseguido, depois de séculos tentando, transtornar até mesmo as Estações do ano.

Não há normalidade nos nossos dias

Duas frases têm me cansado bastante nestes tempos de pandemia. A primeira, otimista aos raios da irritação, “Tudo vai passar (logo)”; a segunda, inocente na sua ignorância analítica, “seremos outros depois disso tudo” (ou equivalente com “tudo vai mudar”). Além das previsões estapafúrdias que tenho visto por todos os lados, além da discussão política sobre os limites do Estado sobre nós. Discutem sem olhar o básico.

O ponto principal, me parece: não estamos vivendo uma situação normal. Portanto, não finjamos que está tudo normal, não sigamos nossos dias como se houvesse normalidade, não trabalhemos como se fosse uma situação igual à anterior. A minha geração, a geração dos meus pais, as gerações depois de mim, nenhuma viveu uma pandemia. Os nossos idosos (tão, mas tão, maltratados pelas suas famílias, pelo governo, por tudo e todos) acima de uns oitenta anos podem ter lembranças de epidemias de tifo e outras, quando as pessoas, naquela época, passaram por situação semelhante.

Como exigir normalidade numa situação extraordinária? Como manter dias e horários? Como pressionar e manter prazos e datas? Trabalhos e estudos online, compras por entrega, bancos com atendimentos restritos, protocolos para todos os lugares. Onde está a normalidade? Máscaras, meus queridos… não há nada de normal nestes dias.

E as dicas e reportagens sobre o que fazer na quarentena? Livros, filmes, séries, receitas… eu dava conta disso tudo, antes da quarentena. O volume de trabalho, problemas e responsabilidades na quarentena acabaram com meu “tempo livre”. Admiro quem está aproveitando a quarentena em casa até para aprender a cozinhar, maratonar séries e fazer cursos online. A quarentena acabou com tudo isso pra mim – e, por favor, cozinhar e tantas outras coisas cotidianas sempre fiz. O que faziam antes da quarentena essas pessoas que fizeram seu primeiro pão ou bolo em casa? O que faziam da vida antes da quarentena esses pais e mães que não aguentam seus próprios filhos? O que faziam da vida antes da quarentena essas pessoas que foram ler tutoriais de como limpar a casa? Viviam no shopping? Não saíam da academia? Confesso que prefiro não conhecê-las (nem às suas respostas). Que a quarentena mostrou o quão vazios são muitos dos indivíduos contemporâneos, já sabemos.

Ninguém estava preparado para a quarentena global, eis a verdade. Os sistemas de saúde muito menos. Mas, tudo faz parte de um processo de adaptação temporário. Não se pode transferir em pé de igualdade a realidade presencial para a virtual. Toda adaptação prevê considerações sobre os meios – posso falar da minha área, como a discussão de adaptar um livro para o cinema, são meios diferentes, impossível apenas “reproduzir” a história escrita em imagens. Mas, as pessoas não pararam para refletir.

Aliás, talvez a quarentena devesse ter sido apenas isso: parar e refletir. Deveríamos todos ter parado absolutamente tudo, e ficado em nossas casas, reclusos e contemplativos, consumindo apenas o essencial (comida, água e tal, nada perto das MPs desvairadas do pseudo-presidente). Não há que se discutir a economia. Paremos, apenas isso. Somos seres humanos, apenas isso. Humanos que, mesmo diante de tecnologias e ciência tão avançadas em plena segunda década do século XXI não sabemos direito o que fazer diante de um vírus invisível (e que é negado por muitos, não apenas por ser invisível). Nos falta, em geral, momentos de reclusão, contemplação e reflexão. É o que a vida contemporânea nos quitou. Neste momento é crucial pensar, e pensar novamente. Repensar o modelo de sociedade na qual vivemos, repensar nossos hábitos (e não esses discursos fúteis das redes sociais), repensar nosso modelo de trabalho, repensar nosso modelo de ensino (e aprendizagem, às vezes esquecemos que é uma via de duas mãos), repensar nossos espaço habitacional, repensar nossos hábitos alimentares, repensar nossas atitudes em relação aos outros. Repensar tudo, enfim.

Mas, como contemplar e refletir enquanto temos que assumir papéis que não nos cabem, diante de meios que desconhecemos (e que não são feitos para nossas necessidades!), na tensão e angústia da vida e da morte, na preocupação com os que amamos, com responsabilidades que acumulamos? Impossível. E, assim, nos quitaram, também, nossa humanidade. Somos seres humanos, apenas. Não somos máquinas. E, num repente, reproduzimos uma relação homem x máquina mais atroz do que a Revolução Industrial (naqueles tempos, dizem uns, havia justificativa para não se saber ao certo os efeitos da máquina sobre o ser humano – hoje, não há nenhuma).

Esse mundo contemporâneo do século XXI mostrou-se estúpido e embrutecido. Estúpido, visto que não aprendeu nada com os últimos milhares de anos. Embrutecido, visto que acha que se garante tanto com suas máquinas e tecnologias e ciência, mas, na verdade, está apenas assustado e sem rumo.

Parem o ENEM, parem os vestibulares, parem as fábricas, parem as escolas, parem as instituições, parem as igrejas, parem as praias, parem (os governos), parem as academias, parem os shoppings, parem tudo. Apenas, parem. Não há normalidade nos nossos dias. Para voltarmos à vida, teremos que estudar uma outra realidade. E, não, não acredito que será tudo diferente porque as pessoas, essas mesmas que não vêem motivos para pararmos, continuarão a existir. Se não pararmos para refletir sobre o hoje, o amanhã será muito pior – passará longe desses olhares otimistas e inocentes.

(Quase caí na tentação de terminar com um “quem viver, verá”, mas, não só pelo clichê, não quero desrespeitar as centenas de milhares de mortos; nem quero ser mais uma a rabiscar previsões. De fato, só temos o hoje.)

A angústia de cada pôr-do-sol

O pôr-do-sol de todos os dias me trouxe algo novo: uma angústia que não passa. Logo ele, que sempre tanto amei. Aliás, sempre tanto amei a natureza, estar em contato com ela, longe dos seres humanos, mais próxima de mim. Todos os dias, acordo e abro as cortinas janelas. Ao cair da tarde faço o movimento inverso. Tenho parado uns instantes a ver o sol ao longe fazendo do céu uma pintura sempre linda. Vê-lo, trancada em casa há mais de um mês, assim furtivamente me enche de angústia. O sol, por sinal, tem aparecido com mais frequência do que a usual para esta época. O calor do nosso querido Verão estendeu-se como quem dizia “vim pra ficar”. E nós dentro de casa.

A princípio, não me angustia ficar tanto tempo em casa. Amo minha casa. Começo a sentir falta da natureza, por certo. Mas a angústia tem outra razão de ser. O que existe lá fora.

Quando pensamos que nosso maior inimigo seria um vírus de alta letalidade que já entrou para a História Contemporânea, com imagens da Lombardia e de Guayaquil como impressão profunda desses tempos em nossa consciência, nos deparamos com algo muito mais letal. Sim, a ignorância de um povo que já havia jogado o próprio país ao precipício. 

Nosso inimigo não é a fome. Não será o desemprego. Não é a falta de UTIs e respiradores. Nosso maior problema não é a crise econômica que virá para o mundo todo nem as consequências práticas de uma pandemia global. Nosso inimigo é o discurso assassino. É o desvario coletivo sob a batuta da mais pura e indigna maldade. Não me digam que são só alguns poucos, porque não foram poucos os que correram ao comércio, não são poucos os que vão todos os dias às padarias, não são poucos os que querem academias reabertas, não foram poucos os que correram ao litoral para aproveitar o feriadão nas praias. Enquanto isso, quem pode, sob a mesma batuta, faz demissões em massa, pressionando seus funcionários a que trabalhem dobrado, apenas para lucrar mais com uma situação de calamidade global. 

O desvario é o tom do discurso, porque a essência é a maldade. Há dias tenho pensado como deve ser, no mínimo, constrangedor estar do lado errado da História. Tento encontrar outra palavra para constrangedor, mas que mantenha o decoro do texto. Como deve ser doloroso, estupidificante, nojento, quem sabe, descobrir-se na contramão dos fatos históricos. Gostam tanto sempre de usar o exemplo do nazismo, tentemos: como deve ter sido para milhares de alemães, levados pelo discurso de desvario e maldade apedrejar, cuspir e denunciar judeus (muitos seus amigos, vizinhos, colegas). Um exemplo mais próximo que me apetece sempre usar: como deve ter sido para gerações perceberem-se escravagistas neste país, saber que a riqueza de sua família veio do sangue dos negros, para muitas das mocinhas e mocinhos da época que desprezavam a pele negra e foram se dando conta, ao longo do tempo, que eles eram cruéis bestas que chicoteavam seus iguais. 

Deve ser um encontro interessante dessas pessoas com suas próprias consciências, ao verem que a História clamava por eles no momento, que defendessem o que era certo como um imperativo categórico apenas e pronto. Mas, optaram pelo erro, guiados ou não pelo discurso desvairado de uns, explícitos na maldade. Já diz a igreja que temos, de fato, o livre-arbítrio para tomar essas decisões, enquanto igrejas que já estiveram do lado errado da História tentam acertar pelo menos desta vez- outras disseminam a mais rasa ignorância a mascarar a completa maldade de suas ações, que também não são de hoje. Contudo, não há como negar, foi o ser humano que buscou este vírus. É o ser humano que escolhe propagá-lo,  em carreatas pelo país, em caminhadas aparentemente inocentes na beira da praia, em idas ao supermercado aos risos e conversas desbragadas. 

A natureza deve assistir a tudo pasmada. Precisou que um vírus inocente que vivia em seu seio viesse tomar metrópoles para que nós a deixássemos em paz. A produção de petróleo parou. Nosso consumismo estúpido parou. As máquinas assassinas de todo tipo pararam. A natureza vive seu devir a ignorar nossa estupidez e desespero. Ou, quem sabe, ela nos olhe como eu, com uma angústia sem fim, a cada pôr-do-sol… pensando, talvez, que a humanidade nunca aprendeu com seus próprios erros, que a humanidade sabe propagar melhor a maldade contra seus iguais do que sabe curar as doenças. E, vejam só, a natureza é testemunha dos nossos atos desde tempos imemoriais. Nós passaremos, ela permanecerá.

Amores pensados

Senti falta de escrever – de escrever aqui. E o que me fez voltar é nobre: cinema e relacionamentos (não falemos de amor, que raramente este é o problema). Nada menos que um filme argentino com o Darín, Un amor menos pensado (Juan Vera, 2018). Darín é o ator perfeito para o papel do hombre tierno e a história trata de um relacionamento como todos os outros, que sofre aquilo que todos sofrem: a ação do tempo, seu maior inimigo. Porém, é um belo filme com uma preocupação detalhista que engrandece-o diante dos espectadores. Talvez não seja para qualquer espectador reparar nos enquadramentos a partir das luminárias e abajures, tampouco reparar no design dos copos que se repetem ou na direção que nos prende em diálogos exatamente ao ritmo deles.

Um casal de meia idade que se separa após a partida do filho para estudar no exterior. Simples assim. E a esposa, após esta viagem, se vê numa madrugada, sem sono, se perguntando o que é tudo aquilo a sua volta, para que cada xícara, cada móvel. O marido não entende bem e prefere justificar com uma explicação psicológica de “síndrome do ninho vazio” e logo, do nada, eles se separam.

O filme é muito bem escrito, dosando ritmos necessários a cada cena. Até a separação o drama predomina, você acompanha o cotidiano e a cumplicidade do casal. Após a separação o humor (por vezes hilário) predomina e vemos os “novos” relacionamentos dos personagens, cada um tentado a vida de algum jeito – vale ressaltar que é a esposa que irá “desbundar”, enquanto o marido se debate na precariedade da vida sozinho e demora mais para envolver-se com outras mulheres (cenas hilárias, Darín escondendo o corpinho numa cena pós-sexo – para quem lembra da juventude dele quando seu derrière era bastante explorado). Boa também a introdução do uso da tecnologia digital de redes sociais e aplicativos num filme com personagens acima dos cinquenta.

Como filme ele mostra que a experiência como Produtor e Roteirista permitiu a Juan Vera afinar sua Direção num nível bastante sutil e elevado. Como história nos leva a pensar… a pensar o que fazemos com nossas vidas a dois. Parece-me que os casais, quando se juntam, vivem de objetivos: o anel, o noivado, a festa de casamento, a casa, o carro, as viagens, os filhos, os empregos estáveis, etc.. Mas, e quando este “etc.” acaba, o que acontece? Por que os relacionamentos são feitos de metas a serem cumpridas – e, normalmente, com prazos? Por que não se pode viver a vida a dois pelo que se sente um pelo outro? Porque, neste meio, há um relacionamento. E quase tudo num relacionamento é problema. Muitos desses problemas são disfarçados pela busca incessante em cumprir os objetivos, juntar dinheiro para as metas, que se multiplicam junto à multiplicação dos filhos.

Eis o fracasso do amor: os relacionamentos. E o tempo vai corroendo tudo aquilo que se constrói dia a dia. Diante dos nossos questionamentos interiores – que, quando exteriorizados são impossíveis de ser compreendidos por quem amamos – pouco importa que o outro é um excepcional degustador de empanadas. Os objetos de decoração, as lembranças da vida a dois, as fotografias de momentos felizes se despedaçam diante de novos objetivos. Tudo o que fazia o relacionamento ter sentido incomoda e atrapalha: não se está mais apaixonado. Esquece-se que manter-se apaixonado toda uma vida é obra diária e que requer todas as nossas forças e atenção. Justamente um dos grandes erros das pessoas num relacionamento: que tudo está garantido (they take it for granted, é a expressão que me parece sob medida). Nos conhecemos, apaixonamos, começamos o relacionamento, estipulamos as metas e seguimos em frente. O “apaixonar-se” fica lá no início e, assim, esquecido.

Por isso, no filme eles decidem se apaixonar novamente – ela mais que ele, sejamos justo, mas é o dado especial para o hombre tierno do Darín, porque, de modo geral é mais raro encontrar estes homens. Em nenhum momento, sabemos, se trata de sentimento. O amor não é o problema e por isso o título em português, derivada da tradução do inglês (sei lá porque, né, afinal espanhol é nosso parente, inglês não), “Um amor inesperado” (“An unexpected love”, em inglês) não faz jus ao original El amor menos pensado. É, de fato, o amor mais esperado (o final não surpreende, nem deveria). Mas, é aquele amor que nós não pensamos, que existe e não é um problema – é, bem provável, a solução.

Quando não pensamos, nos perdemos em todos os perrengues de uma relação sujeita às intempéries. A burrice de todo casal é não perceber que as tempestades passam, as boas obras resistem. O casal do filme prova que o fim dos objetivos e das metas esvazia o que existe na vida a dois e o amor não parece o suficiente para garantir a felicidade – pensar numa tarde de domingo es peligroso e abandonar o programa do cinema à noite porque ficou tarde minam tudo. O amor menos pensado reconstrói uma vida sem toda aquela lista de obrigações e objetivos a serem alcançados. Eu nunca vi um relacionamento desta forma, devo ser exceção.

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