Joinville investe em aniquilar seu futuro

Recentemente uma notícia que preocupou. De imediato a memória me remeteu há pouco mais de um ano, numa reunião do Conselho Municipal de Políticas Culturais, no Auditório do Museu do Sambaqui, numa noite de segunda-feira.

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Na reunião, um conhecido funcionário da prefeitura apresentou uma “proposta” de interesse ao Conselho. Era sobre a “Quadra Cultural”, que estava em trâmite nas instâncias da prefeitura, e, resumidamente, permitiria que os investidores em uma determinada região muito valorizada da cidade pudessem “investir” o que seria a outorga onerosa na dita região. O senhor, muito sorridente, apresentou o projeto, ressaltando que os investimentos incluiriam equipamentos culturais como o Museu de Arte de Joinville, a Cidadela Cultural Antarctica e o Museu do Imigrante. Na ocasião, o sorriso dele foi murchando conforme os presentes na reunião do Conselho fizeram perguntas, questionamentos e até duras críticas. 

Após ver o sorriso se desvanecer, testemunhamos o funcionário da prefeitura sair aos xingamentos afirmando que nós não tínhamos força nenhuma, que já estava “certo” que seria aprovado e ele tinha feito um “favor” em comparecer e explicar o que era o projeto.

Foi somente mais uma demonstração de desprezo ao Conselho de Cultura e seus conselheiros com a gentileza de sempre da atual gestão.

O projeto recebeu duras críticas, inclusive de uma conselheira que é moradora da região e, aparentemente, desconhecia tal projeto. Assim que o projeto fosse aprovado na tal região, ao invés de a prefeitura receber o valor da outorga onerosa e investir onde há necessidade, quem vai escolher onde será investido serão os próprios proprietários dos imóveis, delimitado ao que eles chamaram de “quadra cultural”.

Ou seja, o investidor compra um terreno naquela região, vai construir seu imóvel de altíssimo padrão, e não vai pagar a outorga onerosa à prefeitura, ele vai investir dentro daquela hiper restrita região – já elitizada e valorizada – para que o seu imóvel seu ainda mais valorizado.

Ou seja, o dinheiro da outorga onerosa, que a prefeitura poderia investir onde há real necessidade, será usado com fins particulares para os proprietários dos imóveis daquela região.

Ou seja, um minúsculo grupo que detém uma enorme fatia do dinheiro da cidade vai investir o seu próprio dinheiro em valorizar o imóvel dele, sem precisar “dar” dinheiro para a prefeitura. Porque, afinal, fazem parte daquele grupo que não quer ver seus impostos e seu dinheiro indo para outro lugar que não para o próprio bolso.

Ou seja, tendo a cidade necessidade de um parque no Paranaguamirim ou um posto de saúde no Parque Guaraní ou apoiar as hortas comunitárias nos bairros não investirá milhões onde mais precisa, mas estará revertendo esse dinheiro em criar um “bairro fechado” para a elite mais elite da cidade.

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Devo ressaltar aqui a ojeriza que senti ao ler a suposta reportagem que saiu no jornalão da cidade, que pode ser considerado um mero merchan do projeto. Na suposta reportagem, citaram um prédio recente que pagou um milhão e setecentos mil reais de outorga onerosa para a prefeitura, antes da final aprovação do projeto Quadra Cultural e lamentaram que esse dinheiro não tenha sido investido na região, melhorando as vias, e os equipamentos do local. Além disso, o texto cita que a média de renda da região é acima de 5 salários mínimos, enquanto a média de Joinville é de 2,7 salários mínimos.

Levou pouco mais de quatro anos, mas certeza que essa foi uma promessa de campanha (não daquelas que aparecem na TV e no rádio, mas aquelas feitas à portas fechadas) da atual gestão.

Joinville, com esse projeto assustador, reitera sua vocação ao atraso

Grandes cidades, ricas cidades, investem em todas as áreas. Investem nos bairros, disponibilizam equipamentos de lazer e cidadania para todas as classes sociais. Em Joinville, é diferente.

Quem mora aqui já ouviu a elite reclamar que a cidade é feita para “operários”. Eles acham chato sempre ter que ir para Balneário Camboriú, Curitiba, São Paulo, Miami para viverem. Mas, a atual gestão está mudando isso. Felizmente, os iates e lanchas já têm onde atracar para comer um peixe no domingo. Agora, os investidores e moradores da alta elite terão uma fatia (nada pequena) da cidade para chamar de sua. Não me admira que em pouco tempo alguém tenha a brilhante ideia de colocar cancelas nos acessos da Quadra Cultural, como fizeram, ilegalmente,  a um tempo atrás, naquele parque com nome francês. Às vezes por aqui precisamos lembrar que a rua ainda é pública e eles precisam conviver com o resto da população.

Preocupa-me que isso não tenha respaldo legal. Não me admira em nada que, em algum momento, os meios que a prefeitura usou para alcançar esse projeto não tenham sido todos dentro das leis. Eles são bons, também, em manipular as leis e regras – o Conselho Municipal de Políticas Culturais é um perfeito exemplo disso. Cabe ao Ministério Público ou demais órgãos darem as caras e mostrarem que aqui em Joinville eles ainda existem e não servem só para fazer de conta que não vêem o que acontece ao seu redor.

Porém, pior do que isso é o que o projeto da Quadra Cultural simboliza e significa numa cidade como Joinville. Nem vou citar como Joinville ignora e destrói seu patrimônio histórico e cultural, como desvaloriza e estrangula a cultura e as vozes dissonantes. Também vou evitar citar como a imprensa por aqui é calada, como não se vê jornalismo independente porque sabe-se qual o fim que a pessoa vai ter (quem sabe será contratada pela grande emissora local e o salário fará acalmar suas ânsias de justiça, enquanto a prefeitura dormirá tranquila). Caso eu seja atacada por trazer este assunto à tona, vocês sabem de onde veio a bala. 

Joinville admite e institucionaliza a política higienista, investe tempo e dinheiro público para privilegiar a elite que está autorizada a usar dinheiro público em benefício próprio.

Algo que me deixa curiosa é como está autorizado que um dinheiro público – a outorga onerosa – pode ser usada como investimento em benefício e uso próprio de quem deve esse dinheiro para a prefeitura. Vejamos um exemplo: se você tem um problema com a prefeitura e recebe uma multa, você pode escolher o que fazer com o dinheiro da multa em algo que trará benefícios para o seu próprio imóvel!

O que a Câmara de Vereadores pensa disso?

Vemos um surto de limpeza social que cresce entre vereadores e domina o discurso de suposta imprensa, apoiados pelo histerismo de parte da população que acusa pessoas em situação de rua como responsáveis pela insegurança no município. Porém, os assassinatos e as guerras de facções que fatiaram os bairros periféricos dessa cidade não surgem como preocupação de ninguém – a ver que toda semana noticiam os crimes e preferem resolver com “a vítima tinha antecedentes criminais”. Todo mês o governador aparece aí e ninguém expressa preocupação com a luta contra o crime organizado. 

Mas, contra algumas pessoas em trânsito, pessoas com problemas sociais reais, revoltam a população e levam vereadores a dar seus shows.

O tamanho da Quadra Cultural não é pouco, não. Abarca esses equipamentos culturais que citei como se eles fossem receber altíssimos investimentos e um Museu de Arte de Joinville da noite pro dia se tornasse um Museu Oscar Niemeyer. Como se já não fosse evidente que querem transformar a Cidadela Cultural em uma galeria de restaurantes caros para a elite. Aliás, na suposta reportagem (faltou constar: conteúdo pago), citaram que na região é onde tem “os melhores restaurantes da cidade”. Eu nunca fui em nenhum desses restaurantes, mal conheço quem frequenta os mesmos.

Vê-se claramente que a intenção é criar uma cidade dentro da cidade, uma cidade para alguns poucos, tentando criar a ilusão de que haverá “benefícios para todos”. O discurso é o mesmo com aquele novo “bairro” que nada mais é do que uns herdeiros que querem lucrar investimento em imóveis (aqui e na Serra, destruindo centenas de araucárias – a ironia com o nome não é minha). As supostas reportagens sobre esse empreendimento são vergonhosas, me admira alguém com um diploma de jornalismo que aceite assinar aquilo. 

Joinville e a desigualdade social

A elite da cidade cansou. Cansou de não ter sossego e uma parte da cidade para ela. O outro prefeito herdeiro não tve essa visão, ele era old school. Os prefeitos de Joinville sempre visaram somente a elite, mas focados em promover os investimentos da indústria e da elite – sem pensar na cidade para a elite. Joinville nunca foi para todos. Nunca. Os lamentos da elite foram finalmente ouvidos: eles querem o seu espaço garantido, onde possam viver em paz sem ver pobres e operários, onde possam caminhar nas ruas e tomar seus cafés sem tropeçar em pedintes, que possam levar seus filhos para colégios que só eles frequentam, onde exista um lugar respirável que nem se pareça com a cidade cinza, feia, destruída de sua história e abandonada como todo o resto. O maior mérito da atual gestão, do Imperador futuro senador, é lembrar que a elite existe e quer também usufruir da cidade. 

Dane-se que no Parque Guaraní morre gente assassinada pelo crime organizado e as crianças não têm onde brincar com segurança. Dane-se que no Morro do Amaral até para estudar seja uma luta. Dane-se que no Morro do Meio não existam equipamentos culturais. Os últimos investimentos em estrutura para a Cultura que tivemos em Joinville foi do governo federal.

Dane-se que a Casa da Cultura precise mendigar dinheiro com a iniciativa privada para atualizar as instalações e restaurar seus espaços. Aliás, a Casa da Cultura está na mira da privatização e ninguém parece se incomodar. Será a próxima bola da vez. Que o digam a Cidadela Cultural e o Mercado Público.

Acho curioso como essas ações da prefeitura somente demonstram a incompetência da gestão. Privatizar esses espaços e o projeto da Quadra Cultural nada mais é do que assumir que não dá conta do recado. Não dá conta, pede pra sair. A prefeitura cede as outorgas onerosas para uma região porque não garante que é capaz do mínimo: investir em infraestrutura.

O Futuro tenebroso

Joinville, com cada uma dessas ações, constrói com esmero a sua destruição. Em menos de dez anos o histerismo de meia dúzia de pessoas que hoje diz que é refém dentro de casa porque há pessoas em situação de rua será real. Joinville em nada se prepara para os desafios de uma cidade grande, que deveria ser cosmopolita (fica para um próximo texto). A cidade não sabe o que é sustentabilidade ambiental e ações que promovam o meio ambiente (logo falaremos mais disso). A cidade promove e investe na desigualdade social. A desigualdade social sempre foi o calcanhar de Aquiles de Joinville que manteve com rédeas curtas o abismo social que nos mantém – e que mantém o patrão no poder. A desigualdade social alimentada pela falta de acesso à educação superior pública, que alimenta a violência nas periferias, que tornou-a atrativa para os golpistas. 

Joinville vai pagar caro. Os guetos já existem. Enquanto a elite nariz empinado da sua sacada no América acha que só ela existe, ignora as ruas abandonadas com o tráfico na porta das escolas do Itaum. Joinville não está preparada nem nunca teve quem pensasse a cidade para ser grande. O preço será alto. Lamentável será ver que vai sobrar para todos pagarem a conta da elite colona que há tempos não tirou seus cadáveres do caminho. 

Mais três anos para vender tudo

Ano passado houve silêncio quando tal projeto passou pela Câmara de Vereadores, que aceitou tudo calada. Aliás, nem o vereador que se diz paladino da zona sul questionou algo, ele mesmo que conseguiu aprovar a Zona Industrial Sul. Sim, para os pobres operários da zona sul tem zona industrial, não terá investimento de outorga onerosa. Como se o joinvilense fosse burro e acreditasse que Zona Industrial é para o trabalhador – é somente isenção e incentivo para os industriais que vão levar suas fábricas pra lá, sem nenhum investimento em infraestrutura. O operário? Ficará menos tempo no ônibus. Assim a cidade evita reclamações.

O tal Conselho Gestor da Quadra Cultural já teve reunião. Numa delas, sem a presença da representante da Secretaria de Cultura, falou-se no desenvolvimento de projeto para o Museu de Arte de Joinville. Quem não lembra das ações policiais nos jardins do MAJ antes da Quadra Cultural? Qual a autonomia para uma incorporadora decidir o que fará com o Museu? Não há interesse dos jornalistas da cidade, até jornalista de economia, acompanhar esses projetos? Qual será a participação da população nos rumos do Museu?

A privatização dos espaços públicos culturais da cidade sempre foi um projeto. Por isso o Conselho Municipal de Políticas Culturais é sistematicamente atacado. Que o digam as testemunhas do que a Secretaria de Cultura tem tentado (e feito)…

Há quem pense, em Joinville, que Cultura é somente para a elite. Sério mesmo. Operário e povão não consome cultura. Vai vendo.

Na Lei Complementar está escrito “atendendo a população diretamente afetada e a coletividade que usufrui do território” e nem na lei isso parece bonito. Não basta ter equipamentos, é preciso garantir o acesso de toda coletividade aos equipamentos públicos culturais e de lazer.

Quanto que tá o passe mesmo? Vai vendo.

Consta lá: Gestão transparente por meio da participação social e do monitoramento das ações pelo Conselho Gestor da OUC. Participação social com reuniões vazias. Pessoal da Cultura sabe bem como é isso.

Assim a boiada vai passando… o objetivo é o mesmo. Pena Joinville ser uma cidade tão silenciosa. Os gritos das atrocidades que se cometem por aqui não são ouvidos. E tem gente que acha que sabe calar as vozes dissonantes.

Olho aberto

Algumas poucas pesquisas trazem luz sobre as questões, principalmente sobre os envolvidos. Recomendo. Insisto: se calarão?


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