Um dos fantasmas da ascensão dos extremismos é a censura.
Lula foi eleito, Bolsonaro perdeu. Não estamos livres da extrema-direita, tenho repetido inúmeras vezes. A extrema-direita tem feito sua tarefa de casa, tem se fortalecido, inclusive no meio político. Os especialistas têm gritado com frequência que precisamos pensar e agir para frear a volta da extrema-direita à presidência e que eles estão de olho no congresso, no senado, nas prefeituras e câmaras de vereadores.
Porém, tenho pensado e acompanhado os danos que a ascensão da extrema-direita já causaram, tenho me deparado com o legado do crescimento do conservadorismo (em todas as suas vertentes). Durante o período do governo Bolsonaro eu dizia que, a cada novo desmando, levaríamos mais de dez anos para nos recuperar – na educação, no meio ambiente, nos direitos individuais, os danos causados iam de irreversíveis a muito graves. O Meio Ambiente, por exemplo, a destruição, a contaminação e a exploração não são instantaneamente reversíveis com outro presidente no poder. E, segundo a realidade que apontam muitos especialistas, o mundo já atravessou o ponto de não retorno.
Nos últimos dias pensei bastante na censura. A censura na arte, especificamente, mas a censura de modo mais geral, até mesmo a auto-censura (tema que já abordei aqui). Para todos nós que criamos, a autocensura é um dos piores momentos que experimentamos internamente. Por vezes, nem nos damos conta que estamos praticando a censura no ato da criação, antes mesmo de tê-la (a nossa obra) elaborado. Para o senso comum, a censura só existe no ato de censurar uma obra já realizada, por conta, normalmente, do seu conteúdo.
Tento demarcar um início e o que me veio à mente foi aquela performance no Santander do Rio Grande do Sul, quando denunciaram que uma criança tocava o corpo nu de um homem. Depois disso, não foram poucas as “denúncias” de obras artísticas que deveriam ser censuradas – o que desencadeava, toda vez, uma série de perseguições, violências, sufocamentos e silenciamentos.
Censura é coisa do século passado, quando a Ditadura precisava “liberar” as letras das canções, as cenas das novelas e tudo mais. Porém, o que vemos no Brasil na última década é a dominação da censura. E, desta vez, não há nenhuma Ditadura para culparmos. Isso demonstra como o conservadorismo tem dominado o discurso de quem aprecia e quem apoia e financia a produção artística.
Filmes já deixaram de ser feitos por conta da censura. Produtores culturais já tiveram seus eventos vetados por conta da censura. Ela está, definitivamente, entre nós. Às vezes, a censura é denunciada, contudo, na maioria das vezes ela é silenciada – por medo, medo que temos de denunciar que este ou aquele, que esta ou aquela instituição, praticou o ato de censura, visto que vivemos num mundo de interdependência (principalmente econômica).
Tenho consumido, como sempre, muita arte. Sentia que algo me incomodava: a esterilidade, a falta de discurso veemente, a ausência da arte que desloca, que faz pensar, que luta, que incomoda (ao causar desconforto no público e que cutuca as estruturas estabelecidas). Há uma enxurrada de produção cultural em cima do muro, e onde deveria existir arte tenho encontrado mero entretenimento.
Então está tudo bem e a arte agora é só pra nos distrair?
Não está tudo bem. Os corpos incomodam, as críticas incomodam, a realidade social do país incomoda. E por que não os vemos? Seria a auto-censura trabalhando paulatinamente nas cabeças (e corações) dos criadores? Ou porque a censura de quem detém o poder tem conseguido tirar essas obras do nosso alcance?
Há censura no Brasil. Querem censurar até mesmo o que nós dizemos. Como sempre, uso esse espaço como trincheira para a liberdade. Esses dias ouvi um especialista que salientava como os blogs eram locais mais “antigos” de debate da esfera pública e que nem mesmo as redes sociais conseguiram superá-los – concordei muito.
Quando me deparo com a censura, algo se move dentro de mim. Eu sou filha da democracia, sou dessa geração que nasceu com a democracia, com o voto, com um Brasil que deveria ser diferente e enterrar seus fantasmas, para sempre. Tenho refletido muito sobre isso ao acompanhar a série publicada pela revista piauí, que me faz refletir sobre quem somos e porque nossa atuação no país não resistiu às investidas das gerações anteriores (que buscam reviver o passado) e ainda não acredita nas gerações que vieram depois (perdidas em nomenclaturas e rótulos para suas lutas de sofá e redes sociais).
Os fantasmas seguem entre nós. A censura é o apagamento da arte que vibra e pulsa nas nossas mentes e corações criativos. Censurar um filme é impedir que o discurso daquele grupo seja acessível ao público. E nós, enquanto público, não teremos acesso ao que aquele realizador disse – e assim quem detém o poder molda os discursos que estão no mundo.
Quem detém o poder, detém também a enorme responsabilidade sobre o que está sob o seu domínio. Responsabilidade. Sim, instituições públicas e privadas podem ter seus próprios critérios sobre o que vão veicular ou não. Por isso mesmo faço essa reflexão: o que temos feito com a arte no Brasil? Por medo do avanço de concepções conservadoras, do discurso virulento da extrema-direita e da ascensão do fascismo nós devemos nos calar e produzir obras amenas, palatáveis e que não gerem perseguição? E se produzidas, quem pode distribuí-las e levá-las ao público, vai censurá-las com medo das consequências. Como sempre digo, o medo é péssimo conselheiro.
O que vivemos no Brasil nos últimos anos nos levou à busca de critérios conciliatórios, de discursos policiados, de criações que não levem ao desconforto e ao risco. O mundo não é lugar de conforto, pra quem ainda não percebeu. Quando vivemos num mundo de lutas diárias pela sobrevivência, sendo mulheres que nunca sabem se chegarão vivas em casa, com a fome cultivada pela enorme desigualdade social, com corpos trans assassinados diariamente, não há como viver confortavelmente. Não existe essa possibilidade. Lamento por quem produz arte e quer se furtar a isso. Mas, me indigno com quem se exime de levar ao público que essa realidade existe – o mundo fofo do entretenimento é o que a indústria faz para ganhar dinheiro. Bem, muitos estão “produzindo arte” só para ganhar dinheiro mesmo, aqui na cidade há vários exemplos.
Essa onda conservadora, além de engatilhar a auto-censura, também abriu caminhos para uma produção artística auto-centrada nos seus traumas, vivências privadas e psicologismos. Até quando peças de teatro auto-referentes com a encenação da relação com o pai, filmes sobre a perda da mãe, livros sobre experiências reais, performances de mães e suas dores ‘reais’? O artista que não consegue transformar suas experiências e referências em ficção será um artista? Ficamos presos nesse egoísmo e auto celebração da intimidade sem abordarmos a graça de vivermos na coletividade. Ninguém censura o eu, porque quando falamos do nós o desconforto nos faz sair desse eu e nos obriga a lembrar que existe um mundo para além do nosso umbigo. Toda arte é válida? Deve ser. Talvez seja apenas uma preferência estética minha? Talvez. Mas a análise vai além do mero gosto estético, pode ter certeza.
Essas reflexões são de quem produz e consome arte no Brasil. É uma visão de dentro e de fora. A História nos conta que na época da censura institucionalizada os artistas lutaram contra ela, buscaram metáforas, escreveram versos e a enfrentaram. Nesses tempos de censura por baixo do pano, os artistas a assumem como status quo do fazer artístico. Enquanto quem a pratica vive tranquilamente, não se envolve em problemas e mina o próprio país. O Lula ganhou a eleição presidencial. A extrema-direita, o conservadorismo e o fascismo já ganharam inúmeras lutas do cotidiano da sociedade. Ao assustarem, com seus gritos, instituições e artistas sobre o que eles podem ou não produzir e exibir, eles já ganharam. Sem precisar de um AI -5 ou do DOPS.
A culpa não é deles. Só cai no medo de não enfrentá-los quem quer. Eu luto pela liberdade de cada um de nós criar seus discursos, inclusive eu mesma. Jamais serei colaboracionista com quem censura. Quem colabora e quem silencia é cúmplice.
Depois, como nos têm alertado os especialistas, quando a extrema-direita voltar ao poder, quem colaborou não poderá reclamar. Só tenham certeza que nem vocês escaparão da perseguição.
Vai faltar peça de teatro shakespeariana (aliás, viram a citação do filho que pratica atos contra a soberania do país?), performance do eu & meus traumas, filmes entretenimento e livros de romance auto-ajuda para o público anestesiado.
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