Trilogia da Periferia – Açúcar

Quando o Gritos do Sul (2022) foi atacado, eu escrevi aqui sobre ele e sobre como escrevia pouco acerca dos meus filmes. Tento reverter, desde então, essa ausência.

Açúcar (2024) é o primeiro filme da Trilogia da Periferia. Quando ele foi aprovado no edital municipal, eu ainda não havia formulado a premissa da Trilogia. Então, Açúcar surge como um curta-metragem a ser realizado no Morro do Amaral, com participação dos moradores da comunidade. 

Porém, Açúcar já era muito mais que isso. Açúcar era minha cura, pessoal e profissional. Eu e Açúcar sobrevivemos à usurpação, à falta de caráter, à manipulação, à maldade de quem quis me usar e usar o meu trabalho. Após a primeira tentativa, diante da segunda eu decidi lutar pelo Açúcar, e tive o apoio necessário para produzi-lo e seguir adiante. 

Açúcar juntou uma equipe parcialmente inexperiente, como sempre a Oficina deu oportunidades para pessoas iniciantes em quem sempre depositamos confiança para trabalhar no cinema. Se algumas delas não honram essa confiança, ficamos com a consciência tranquila. Nós fazemos a nossa parte naquilo que acreditamos, na formação, fomento e crescimento do cinema na região.

Açúcar chegou com alvoroço e certa desconfiança na comunidade da Ilha do Morro do Amaral. Aos poucos, a cada visita, a cada contato, as pessoas foram nos recebendo, abrindo suas portas, topando participar das ações e do filme. A nossa história respirava o Morro do Amaral e seus habitantes. Elisângela, nossa protagonista, foi assumida por uma menina inteligente, divertida, que se destacou desde o início e que na escola já era conhecida por participar das peças de teatro. Foi especial e curioso vê-la construir a personagem que tanto divergia da sua personalidade, o talento e a atenção aguda que Sophia Negherbon dedicou ao trabalho fizeram toda diferença.

Fomos convivendo com as pessoas, com a paisagem, com a rotina e eu lapidando o roteiro. Lá comemos peixe e pirão, passamos finais de semana, encaramos quedas de luz, nos adaptamos ao difícil acesso, observamos como a natureza comandava as relações.

Contamos com o apoio das pessoas em vários momentos, desde o empréstimo de itens até a contratação de serviços. Quando falamos que o cinema atinge o público, ao ser exibido, Açúcar atingiu as pessoas desde a sua pré-produção. Congregamos crianças dispostas e entusiasmadas a participar de um filme na rua onde elas passam todos os dias. Lutamos contra a burocracia para tê-las todas em cena e rechear nossa história com seus sorrisos. E elas foram heróicas ao gravar uma manhã inteira de sábado um plano-sequência sob o sol. 

A Trilogia da Periferia é sobre desigualdade social, é a temática ampla que une Açúcar (2025), Robin (em pós-produção) e Marta (em pré-produção). Ao deslocar a produção para o Morro do Amaral, Morro do Meio e Jardim Paraíso nós começamos um manifesto muito claro sobre o que estamos falando, sobre o que é o cinema que está sendo produzido. Os três protagonistas têm muito em comum além de serem moradores da periferia da cidade mais rica e mais populosa de Santa Catarina, um dos estados com alguns dos melhores índices do Brasil. Foi em Joinville, de forma muito profunda, que a Fahya adolescente aprendeu o significado da palavra hipocrisia. Talvez essa seja uma raiz profunda das origens da Trilogia da Periferia.

Açúcar, porém, aprofunda algo que é muito caro pra mim: as questões de gênero. Além da desigualdade social, Elisângela encarna uma herança ancestral do ser mulher. Nós gravamos farto material da protagonista realizando serviços domésticos, enquanto outras crianças brincam lá fora. Parte do serviço é para levar algo para casa, cada “ajuda” a uma vizinha incrementa a despensa da família. Nessa família, Elisângela já é uma das mantenedoras: varre, limpa, cozinha, cuida do irmão mais novo, limpa peixe, faz tudo o que precisa para que a casa se mantenha de pé. Ela combina seu papel dentro do âmbito familiar com a mãe que “trabalha lá fora”. 

A mãe é interpretada com uma docilidade e paciência incríveis pela Silmara Neves, também moradora do Morro do Amaral, que num dia de trabalho da equipe foi até nós levar seu filho para uma vaga no curta. Após a formação e o teste, ela mesma foi escalada. Silmara também trabalha com serviços domésticos na casa de terceiros e usou a expressão “trabalhar lá fora” porque para quem mora no Morro do Amaral, todo o resto da cidade é “lá fora”.

Na equipe somente eu e mais umas duas pessoas conheciam o Morro do Amaral. Todas as vezes que exibimos o filme para o público de Joinville, a maioria diz nunca ter ido até lá. Eis um sintoma de uma cidade que não se vê – e nem se enxerga.

As cenas do trabalho doméstico de Elisângela são longas e pela versão da Diretora seriam ainda mais longas (e teriam algumas que nem estão na versão final). Isso não é interessante para um filme. Ninguém quer ir a uma sessão ver uma menina fazendo limpeza. E é justamente esse desconforto que eu quis o tempo todo. Porque o filme é sobre isso.

Gravamos duas vezes e por bastante tempo a famosa cena do peixe. Por mim, ela duraria tempo real no filme para que o espectador soubesse quão difícil e demorado é limpar um peixe. Garanto que muitos não sabem. A cena do peixe foi muito especial, eu não comia peixe quando criança, mas aprendi a limpá-los com minha avó. Época da tainha íamos até o Mercado Público comprar algumas e eu ia para o quintal descamá-las, tirar as ovas, as tripas, a cabeça, cortá-las em postas ou deixá-las inteiras para serem recheadas. Eu não tinha nem dez anos. Elisângela, nos seus dez anos, demonstra que limpar peixes é ato corriqueiro para uma moradora do Morro do Amaral. 

Elisângela é mais uma personagem mulher que escrevi com o coração nas mãos, como Maíra, do Gritos do Sul. Porque essas histórias só existem por causa delas. É como eu quero que os olhos alheios vejam aquilo que a estrutura da nossa sociedade esconde e sempre fez questão de esconder. É o cinema no qual eu acredito. 

Para além do cinema político, percebo que faço cinema contra a hipocrisia. Quem sabe Robin seja mais direto sobre isso, mas fica para um próximo texto.

Quando vejo mais produções indo até o Morro do Amaral, quando discorro sobre as belezas do lugar, a receptividade das pessoas tenho certeza que levar o Açúcar pra lá foi uma das minhas melhores decisões criativas. Ao tomar decisões, ainda mais sobre produção, sempre há o caminho mais fácil e os outros: os que fazem sentido, os que desafiam, os que demandam mais empenho e trabalho… Cada um deles traz suas recompensas.

Convidei Ianca Michelin depois de já termos trabalhado juntas no Passagem de Volta e no Gritos do Sul (em ambos ela inscreveu-se na seleção de elenco). Desta vez eu precisava de uma vilã diferente, particularmente eu gosto muito de escrever vilãs e tenho muito material da vida real para elas. A vilã muito humana, do alto da sua hipocrisia a vilã dorme sobre as certezas do seu mundo. Eu e Ianca tivemos as nossas conversas para construir a personagem e nos inspiramos em pessoas próximas, essas pessoas que existem, como a Moça do filme. A poeira na cena final da participação da Ianca é uma referência cinematográfica que intuitivamente eu assinei como a retomada da Fahya à Direção – pra quem não pegou, Carlota Joaquina é o filme símbolo da Retomada do Cinema Brasileiro.

Sinto-me cada vez melhor em escrever essa minha atuação no cinema de Joinville, no cinema de Santa Catarina, no cinema brasileiro. Açúcar estreou em janeiro de 2025 na 28a Mostra de Cinema de Tiradentes, desde as primeiras edições eu acompanhava à distância, já conhecia (e me apaixonara) a cidade de Tiradentes e a Serra de São José e voltar lá para exibir Açúcar foi realizar mais um sonho – afinal, vivo de realizar sonhos. Tivemos tantos momentos especiais com Açúcar, selecionado para o MIIA de São Paulo, com curadoria de crianças e adolescentes e licenciado para a Todesplay, finalista do Respira no RS, exibido no 1o Festival Internacional Goitacá de Cinema em Campos dos Goytacazes e em breve no 7o Festival de Cinema de Três Passos, no RS. 

Por que açúcar? A referência no filme é evidente, esqueci de dizer que o roteiro é adaptado de um conto que escrevi anos atrás ao conhecer o bairro da Tapera, em Florianópolis, e que tinha um título gigante e entreguista: A rua é de barro mas eles têm açúcar. Pra quem já leu As veias abertas da América Latina e conhece História do Brasil e História da América Latina (e de muitas colônias pelo mundo) o título e o personagem do açúcar no filme dizem muito mais.  

A riqueza da vida e do fazer cinema está nos detalhes. Encerro o texto de hoje com um sorriso. Talvez eu volte a escrever sobre o Açúcar, certeza que ainda escreverei sobre o Último Natal e, em breve, sobre Robin… este que já é o meu herói. Talvez Robin tenha também muita hipocrisia para encarar. Talvez.


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