Isso é só um texto, a vida é muito pior

Demorei um pouco para me apaixonar por documentários, porque as referências que eu tinha quando criança eram do canal Discovery. Mas, quando tive os primeiros contatos transformou-se em um amor longo, duradouro, surpreendente, daquele de tirar os pés do chão – como todo amor deve ser. Sou adepta de pensar o documentário como o cinema mais eficiente diante da realidade, o cinema mais cinema (o filme documentário, não reportagens, “grandes reportagens” e coisas do gênero). O cinema ficcional é um grau a menos, apesar de ter possibilidades que nos toquem de diferentes formas. Enfim, longa, gostosa e necessária discussão. Porém, não para o momento.

Dentre os documentários, me descobri uma admiradora dos documentários sobre o mundo da música, seja sobre compositores e cantores, sobre álbuns e canções. Essa admiração veio com a prática de montar filmes, ao observar o quanto o ritmo é importante e como a trilha sonora do filme é essencial. Esse ano assisti a vários desses e recentemente me deparei com o Boas Novas, que esteve em alguns festivais. Cazuza foi a trilha musical da minha adolescência até o início da vida adulta. Quando terminei de assistir à Boas Novas, apareceu o Mamonas pra Sempre, banda da qual fui fã loucamente quando criança – eles morreram dois dias antes do meu aniversário e minha irmã (só podia ser ela) havia comprado o CD deles para me presentear. Coisas da vida.

Sobre Boas Novas, há detalhes da estrutura e das escolhas estéticas que me incomodaram – não acho que seja um documentário para ser assistido como filme. A Montagem me incomodou ao colocar em foco o Diretor em momentos que era mais importante, para a narrativa, as emoções do entrevistado ou mais imagens de arquivo. Na sinopse, inclusive, é afirmado que o diretor, produtor musical de Cazuza por um período, teria imagens pouco conhecidas e resolveu fazer o documentário. Contudo, senti falta de material mais robusto para afirmar isso.

Alguns entrevistados, como o fotógrafo, trouxeram falas um tanto preocupantes, sendo que a história toda quer reafirmar Cazuza como um guerreiro, como de fato foi, e não como um doente, um fraco, uma vítima. Em certos momentos, perdeu-se o tempo da emoção – o que eu considero fundamental para este tipo de documentário. Os entrevistados (e poderiam ter sido mais) tinham relações muito próximas com Cazuza, e disso teria que ter sido tirado proveito. Contudo, entendo que muitos deles já falaram dezenas de vezes sobre Cazuza e suas histórias. Eu mesma sei algumas de cor.

Para além do documentário, assisti como público, como quem foi atingida pela vida e pelo trabalho de Cazuza. Meu primeiro contato com ele foi com os versos “tua piscina tá cheia de ratos tuas idéias não correspondem aos fatos” que rodava numa propaganda da TV (eu não lembro do que era a propaganda). Eu era criança, lembro algo de terem comentado sobre a morte dele, mas não vi nada porque ele não frequentava os discos lá de casa e eu era inquieta demais para parar na frente da TV. Não havia ninguém da família que fosse fã de Cazuza – talvez as referências fossem pelas músicas que emplacaram nas novelas. Somente quando adolescente fui me atentar mais ao trabalho dele e, a partir de então, houve imediata identificação. 

Ao assistir ao documentário, percebi que o espírito de contestação, a revolta com a hipocrisia, os versos e declarações ácidos e críticos, a coragem e o desprezo pela covardia, como também, é claro, os amores inventados, fizeram, todos juntos, Fahya adolescente se encantar. Há algo dito algumas vezes no documentário sobre o Cazuza ser contra e combater a caretice. Eu havia lido a biografia escrita pela mãe, mais tantos outros materiais. A relação dele com a família, sua condição social, tudo fazia parte daquele show. Porém, no final da vida – sabendo que o final está ali, ao contrário de muitos de nós que não sabemos quando ela chegará – ele deixa um legado com Burguesia: eu sou burguês, mas eu sou artista.  A presença dele, apesar da sua origem, sexualidade, hábitos, enquanto artista que olha o mundo e faz sua poesia que não é correta, branca, suave, muito limpa, muito leve (perdão, mas não tinha como deixar de citar o compositor que tem sido a trilha da minha vida adulta) é o ponto central da existência. Todo amor que houver nessa vida, um hino para quem exercita diariamente a criação como vida, já abordava o ato de quem cria. Burguesia vai além. Não à toa, tenho dois versos dele tatuados (um justamente de Todo amor que houver nessa vida), e foi a segunda vez que me tatuei, já no auge da vida adulta.

Ser artista no nosso convívio, a Fahya adolescente já sabia o que queria ser quando crescesse. As canções contam histórias, minha vida sempre foi sobre ler, assistir, ouvir, viver e criar histórias. Esses dias comentava com uma colega sobre saber separar a vida e a obra de intelectuais e artistas. Confesso que hoje é impossível. Cazuza não só narrava amores exagerados, mas tinha um olhar feroz para o mundo, para o Brasil, para a sociedade. Numa cena, ele, interrogado (não é possível usar outro termo) por Marília Gabriela, afirma que a AIDS caiu como uma luva para a Direita e para a Igreja. E não é? Lembro até recentemente algum post na internet esculhambando Cazuza e sua obra porque ele representava valores que não eram “adequados” para a turma do Deus, pátria e família. Ainda bem, né?

Pensei várias vezes em como as relações políticas são intrínsecas à arte, algo sobre o que amo falar, e reparei em como o Diretor quis trazer o contexto da existência do Cazuza para os dias de hoje. Aquela geração viveu na Ditadura e viu a reabertura, eu sou da geração que vem depois, que nasceu no fim de Ditadura. Eu sou da geração dos filhos e filhas de Democracia. Por um tempo, vivemos enganados como se não tivéssemos responsabilidades sobre isso. Mentira. 

Barão Vermelho, por exemplo (e isso não está no documentário), teve uma canção vetada porque usava o verbo “dar” com conotação sexual. Esse era o nível. E o desbunde necessário depois dos anos de violência, repressão e censura – moral, religioso, social, sexual, artístico – era inevitável. O surgimento da AIDS foi uma bomba. Por muito tempo eu acompanhei de perto todas as notícias sobre a AIDS, o preconceito sempre foi algo inexplicável pra mim, lembro de quando surgiram pesquisas que comprovavam que a maioria de contaminadas, num determinado ano, eram de mulheres heterossexuais casadas – sim, contaminadas pelos seus santos maridos, no ato sexual dentro dos seus lares. Eu combatia essas visões preconceituosas ao meu redor, até conviver de perto com pessoas soropositivas ainda numa época sem tratamentos efetivos e, até recentemente, quando tive alunos contaminados. A forma como Cazuza foi exposto e escrachado pela mídia ao se assumir portador do vírus HIV é daquelas coisas mais nojentas que a sociedade brasileira já produziu.

Mas, quero voltar a duas coisas: à caretice e ao trabalho. E assim engato para o documentário sobre o Mamonas Assassinas. 

Ser fã, pra mim, é ser daquelas que conhece bem até as canções que não fizeram tanto sucesso. É gostar tanto de Minha Flor, meu Bebê e de Desastre Mental (que fecha o documentário) e chorar emocionada com a versão ao vivo (inédita pra mim) de Ritual. É ter Ideologia como um mantra. Ambos, Cazuza e Mamonas Assassinas só foram possíveis num mundo antes da Direita brasileira ter reassumido o poder, com Bolsonaro, após a Ditadura. Hoje nenhum deles poderia existir. O que me faz pensar quantos deles estão por aí e nunca serão ouvidos por nós. Ao longo dos documentários me dei conta que ambos eram homens, e que, sim, nesse mundo misógino, machista e tal e tal, minhas maiores referências eram fruto da estrutura dessa sociedade. 

Eu era uma daquelas crianças que adoravam Mamonas Assassinas e cantávamos o Vira e Mina sem pudor nenhum. Toda a composição, das letras aos figurinos, era genial. Era crítico, era poético, era revolucionário. Eu gosto de gente com bom humor. Eu sou piadista em tempo integral. O humor faz da vida algo mais interessante. Usar o humor para debochar, ironizar, satirizar as coisas mais sérias, então, deixa tudo mais gostoso. Mamonas Assassinas era tudo aquilo que o universo onde eu vivia não permitia existir. Por aí também foi Cazuza. Mesmo tendo sido criada com a nata da música brasileira, desde muito cedo, esses compositores não eram aceitos dentro do padrão já estabelecido. Se isso também foi motivo pra eu gostar mais, nunca saberemos.

Mamonas pra sempre me incomodou, esteticamente, no início, mas depois entendi a proposta por seguir a textura e luz do VHS – aliás, saudade VHS! Isso faz muito parte do meu mundo. O VHS de vídeos pré-redes sociais de celulares na mão o tempo todo. Ri muito de várias gravações caseiras realizadas pelos integrantes da banda, pois as referências de falar para a câmera, registrar certas coisas (e não publicá-las imediatamente!) me soaram muito familiares. Eu cresci com câmeras VHS, isso é coisa da minha geração. Também foi um divisor de águas na construção de o que pensar da vida e do trabalho.

Mamonas também eram o oposto da caretice – e como o mundo está careta, meu Deus! Os jovens caretas, as famílias caretas, os machos caretas, os discursos caretas, os artistas caretíssimos! A Direita, após a Ditadura, nunca desapareceu, e esteve rasteira e insidiosa nas cabeças de jovens pelo país todo, com Bolsonaro como representante a discursar violências sem tamanho, até se eleger nos braços desses caretas. Eu disse que a volta da moda de calça jeans de cintura alta era um sintoma maligno. 

As pessoas estão mais preocupadas com a sexualidade umas das outras do que combater a caretice. E é essa gente careta que acha que certas atitudes são, justamente, contra a caretice. Cazuza e Mamonas Assassinas viviam o trabalho deles. A gente não bate cartão. A gente vive o que produz e precisa viver pra produzir. Os caretas de hoje só querem bater cartão, nem mesmo trabalhar querem, é só bater cartão mesmo. Não há ânimo na vida, não há interesse em intervir no mundo através do seu trabalho e da sua atuação no dia a dia.

Nós queremos viver o inferno e céu de todo dia. Só assim faz sentido. Transformar o tédio e a poesia em ritmo, cena, personagem e melodia. Quem quer seguidores e dinheiro jamais entenderia isso.

Tão bom ser artista e ainda colocar o dedo na ferida. Sem nem precisar usar suas escolhas pessoais e sexuais para isso. O quanto a Ditadura alimentou gerações (não vamos esquecer os oitentões que estão aí e viveram mais a Ditadura do que a geração dos filhos dela) para explodir os limites e romper barreiras e impor novas leituras de mundo. Vejo a última ascensão ao poder da Direita, com um governo de milicos, como um detonador perigoso do oposto: é como se hoje vivêssemos sob o escrutínio de uma sociedade mais vil, cruel, violenta, persecutória do que os anos de chumbo. Não parece, é assim mesmo.

Ambos fazem questão de demarcar, mesmo que de leve, seu posicionamento político. Boas Novas fala sobre a caretice abertamente, apesar de não fazer citação direta aos dias e governantes atuais, enquanto Mamonas pra Sempre exibe algumas vezes a faixa de Lula presidente nos comícios onde a banda fazia apresentações.

De certa forma, mesmo nos meus momentos mais inocentes, é bom saber que sempre estive do lado certo. Ambos também acertam em não querer “limpar” a imagem dos artistas. (mas o que foi aquilo da fala da Lucinha sobre o Frejat?! por outro lado, ainda bem que ela processou tudo que houve na sua relação com Cazuza) Hoje mesmo, com esses artistas caretíssimos que o Brasil tem produzido (não, gente, o “senta, senta, senta” não é nenhum hino contra a caretice), e toda a preocupação que se vê de publicações, redes sociais e o escambau. Cansativo, viu. 

Difícil sequer acompanhar novos artistas nesse país. Ainda mais esses artistas que alcançam grandes públicos e só são burgueses mesmos, ao ignorarem todo o tipo de absurdos que o mundo ao redor alimenta. 

Como li num texto hoje, não é nostalgia, é diagnóstico (li num post desses de Instagram que tem dezenas de cards que ficariam melhor numa página de texto). O post falava justamente que os poetas seguem sendo de esquerda, mas a esquerda não é mais poética. Fica a necessária e urgente reflexão.

Sim, Belchior é o compositor da trilha sonora da minha vida adulta. Quem será depois dele? Talvez saberemos em breve. Ou talvez eu tenha que continuar com ele e nossa realidade de não ter dinheiro no banco, nem parentes importantes. Enfim, não se preocupem com isso, é só um texto. A vida é muito pior.


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