Ontem eu cheguei à Ilha de mais uma viagem. Embarquei no ônibus no terminal do centro e ele seguiu pela Avenida Mauro Ramos.
Não sei se vocês já repararam no Asylo de Mendicidade Irmão Joaquim, pintado de azul, ali quase em frente ao Instituto. Nessa região muita coisa da minha vida já aconteceu. Mas eu sempre prestei atenção no asilo porque morei ali perto logo que vim para a Ilha e caminhava para ir ao supermercado e tal. O que me chamava a atenção era um senhor que sempre estava sentado no ponto de ônibus lendo. Lendo em braile. Não sei o nome dele, sei que ele já apareceu em reportagens na TV. Mas, desde então, toda vez que eu passo ali eu reparo, no asilo e para ver se o senhor está lá, com todas as dificuldades da vida, lendo. Na maioria das vezes ele está.
E, ontem, ele não estava. O ônibus parou no sinal e meu olhar pousou em uma senhora, bem arrumada, com uns colares artesanais muito bonitos, debruçada na janela do asilo. Ela olhava adiante, sentido contrário ao que eu seguia. Fiquei ali, olhar através da vidraça do ônibus, pensando o que se passava por aquela cabeça com aquele olhar perdido no nada. Eu sou acusada, muitas vezes, de ficar com o olhar perdido no nada. E sei tudo o que pode se passar nesses momentos.
Eis que ela começa a movimentar a cabeça. Seu olhar acompanha uma senhora, arrumada, da mesma idade que ela, caminhando pela calçada. Esta não se deu conta da existência da outra. Eu me senti quase invadindo uma intimidade tão peculiar. A senhora, da janela, acompanhou cada passo da outra enquanto ela estava no seu campo de alcance… e o olhar parou no nada, do outro lado, quando perdeu seu foco de atenção.
Não sei dizer o nó que me deu na garganta naquele momento. Estaria eu inventando ou os pensamentos da senhora da janela poderiam ser de raiva, de desejos? Aquela grade do muro dividia a realidade chamada liberdade. A senhora que passava na calçada pode ir ao supermercado, visitar os netos, os filhos, ir ao salão de beleza, ir para a casa dela.
Não sei o que passou pela cabeça da senhora da janela. Pela minha, a contragosto, passaram muitas coisas… talvez nem todas dolorosas. E o sentimento de invadir a intimidade me perseguiu.
E não sei porque, hoje ao assistir um filme lembrei dessa cena. Aliás, ela passa cinematograficamente pela minha cabeça. Porém, nenhuma ficção seria tão perfeita.
“Você parece ainda ter algum sopro de vida no seu olhar” (diz a moça ao sogro que acaba de lhe contar os horrores da Primeira Guerra Mundial na qual ele lutou nas sanguinárias e famosas trincheiras)
“Sim, tenho. Mas não para enterros de cachorros nem lanternas chinesas.” (lhe responde o sogro)
Esse sopro de vida citado no diálogo do filme me lembrou o ohar da senhora da janela.
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