Deixo o carrinho de compras perto dos congelados e caminho até o pinhão. Há um pote para recolher e colocar no saco plástico, mas reparo que eles estão bem novos e, por isso, com muitas “cascas” que saem junto da pinha. Começo a catar com a mão, um por um, e reparo que há uma mulher fazendo o mesmo.
Naqueles dias eu experimentava e mostrava para as visitas como o povo manézinho é receptivo. Ao sairmos da missa uma senhora bem velhinha que mora na minha rua havia puxado conversa (ela não se conforma que ninguém mais da nossa rua, em frente à Igreja, vá à missa). Ao sairmos do Curiódromo, num domingo, um homem puxa conversa e diz que no sábado é que é bom ir porque ontem havia mais de trezentos pássaros lá. O manézinho é conversador, é solícito, é amigo.
A moça catando pinhão, como não podia deixar de ser, puxa conversa. “bom um pinhão com esse frio, né?” Era mais uma constatação do que uma pergunta. É Outono, mas uma onda de frio abateu nossas gargantas. Logo pra mim ela diz isso? Estou comendo freneticamente pinhão desde final de março. Sim, sou doente por pinhão, sou serrana, faço pinhão assado na chapa e tenho ataques de prazer.
E ela continua “mas tem que escolher, tá cheio de cascas”. Ao que eu comento que é o que vem junto na pinha, porque ele está novinho. Logo chega o marido e dois filhos, um casal.
Um sorriso de canto de boca me pega desprevinida. Vejo ali uma cena linda: mãe, pai e filhos num domingo de manhã catando pinhão, juntos, conversando “quer pegar um pouco de carne moída pra fazer panqueca, amor?” diz ela, “filha, pegou o refrigerante que você queria?” dia o pai, o menino come uma pipoca bilu, a menina bebe alguma coisa, “ó, mãe, esse tá bonito!” diz o filho ao pegar um pinhão lustroso, enorme, novinho.
Eu ali catando meus pinhões e acompanhando a cena começo a refletir sobre minhas péssimas considerações acerca do casamento, da tal constituição de família e tal. Penso: não devem ser todas tão ruins. Talvez a tolerância, talvez o amor profundo, talvez algumas coisas consigam fazer um casamento, um relacionamento, durar muitos e muitos anos em harmonia. Talvez o problema seja eu. Talvez eu não seja capaz de nada disso, porque, veja só, afinal essas coisas devem existir para algumas pessoas. Por que diacho eu sempre só vejo o lado ruim das coisas? Quer coisa mais linda que esta cena? Uma família unida num domingo escolhendo pinhão e fazendo compras? E eu aqui na minha vidinha…
Foram alguns minutos (comprei alguns quilos de pinhão). Eis que minhas reflexões são quebradas pela frase do pai “dá pipoca pra ela”. Assim, sem mais nem menos. Parece que a menina, do outro lado, ao lado do pai, havia falado alguma coisa. O menino começa “ela não me deu água”. “ela não me deu água” “ela não me deu água” “ela não me deu água” e o pai retruca “taqui a água, toma, agora dá pipoca pra ela”. O menino pára a ladainha da água para responder “agora? agora não quero”. A irmã não deu água, queria pipoca, ele não dá pipoca porque ela não deu água; na contrapartida a irmã, agora por interesse, dá a água; ele nega porque percebe o jogo. Situação óbvia e justa. Foi-se a harmonia.
“parem vocês dois” diz a mãe com uma cara cansada, já não há o amor pensando nas panquecas, já não há a alegria da escolha dos pinhões. “vão ficar de castigo os dois”. “eu fiquei de castigo já, mãe, até ontem, lembra?” diz o menino justo e invencível. “vão ficar uma semana sem poder sair” diz a mãe, “sim, só ontem que você foi na casa do Felipe, ficou uma semana… não, mais de uma semana” relembra a mãe agendadora. A menina só fala em voz baixa ao lado do pai, como se ele fosse seu mais fiel tradutor.
A cena se desfez… acusações de ambos os lados, erros elevados ao infinito de pais que acham que fazem justiça e apenas colocam-se em lados opostos… a miséria da vida a dois, da familiaridade, do convívio exposto transbordando sobre os tão lindos e novos pinhões.
Uma parte de mim sorri triunfante: serviu para refletir, mas quem sabe há situações que só possuem o lado ruim mesmo. Eu pego meu saco cheio de pinhões, antecipo o prazer que será devorá-los e me retiro com um estalo de esquecimento à cena tão grotesca posto que é comum, e tão comum posto que é grotesca.
Não preciso que me esfreguem as misérias alheias na cara, nem nos tão deliciosos pinhões.
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