O conflito

Eu gosto de histórias. Não existe mais a diferença entre estórias e histórias, mas minha preferência pela ficção em detrimento das histórias reais é um tanto acentuada. As histórias de ficção fazem mais parte de mim – até mesmo para entender a realidade e suas histórias. A predileção é um tanto maior, mas não tanto. Meu gosto por histórias me fez uma boa aluna em História, uma boa ouvinte (em especial de pessoas que não conheço), uma audiência feliz de novelas, filmes, seriados e séries (necessariamente nesta ordem), uma leitora (longa história) e uma pessoa que pensa que pode contar histórias, por fim. Em algum momento este gosto me levou a estudá-las, a compreendê-las, a destrinchá-las.

Em alguma aula do curso de Cinema, um professor disse que jamais conseguiríamos assistir a um filme do mesmo modo de antes, só pelo prazer ou lazer, sem o profissional e a análise do que víamos. Ele estava parcialmente certo. E o mesmo acontece com as novelas, as séries e seriados e, também, os livros. A percepção muda, o prazer não. Entre me distrair assistindo uma novela turca na noite de um dia excruciante e ler um Umberto Eco antes de dormir, a percepção não desliga.

E eis onde eu queria chegar: as histórias carecem de conflito. “Ah, mas isso é velho!” pois não, não é. Entre teóricos há discussões sem fim sobre “como” escrever uma história, fórmulas mirabolantes, dicas imperdíveis, conselhos esquecíveis e tal. E de fato há fórmulas de sucesso (que alguns autores usaram, usam e usarão). Há milhões de livros vendidos aqui e ali, há milhões de espectadores de produtos audiovisuais (aqui, é claro, pesam outros fatores além da “história”). Ainda assim, você conta uma história quando há um conflito – ou se perde em “aí isso… aí aquilo… aí…” e não a terminará nunca. Ou quando acabar vai ouvir um “era isso?”.

Sou noveleira, já fui mais, mas minha criação audiovisual começou nas novelas da Globo e da Manchete quando eu era pequena. Deixei de assistir novelas por um bom tempo, quando tenho tempo tento voltar a assiduidade que elas exigem. E foi nesse vai e vem que senti falta do conflito. A Globo já produziu novelas fantásticas – por mais que a gente olhe algumas do passado e perceba que a produção era precária, não é a questão. Porém, comecei a sentir falta do conflito nas novelas. O folhetim é aquela história contada em capítulos, que devem começar com um conflito e desenrolar a história por um tempo (relativamente longo), prendendo o espectador a cada final de capítulo. E o que acontece quando não há o conflito? No caso das novelas que tenho observado, tudo se resume a “segredos”. O conflito foi substituído, pobremente, pelos segredos dos personagens – que na maioria das vezes é rapidamente descoberto pelo público. Lembro bem de ter visto a propaganda de Avenida Brasil e de imediato ter reconhecido a trama de Revenge. A vingança não é, em si, um conflito. Não cheguei a assistir a novela (acompanhei as críticas), porém percebi que o que a manteve foram os segredos. Talvez tudo tenha começado com o “quem matou Odete Roitmann?”, minando o conflito e sugerindo o mistério. Mas, para haver um ciclo de mortes ou uma morte (lembrem que matar um personagem é a saída mais fácil para o autor) é preciso que exista um conflito que justifique a morte dele – alguém mais assistiu Tiro e Queda, na Record, na qual havia um assassino em série que sempre deixava uma rosa?

O que é, afinal, o conflito? É a disputa pela terra, é o conflito social, é a traição. Todas essas coisas que a gente vê a vida inteira. Benedito Ruy Barbosa, nosso Shakespeare, é o melhor exemplo. Suas novelas têm claramente o conflito desenvolvido, seja a briga pela terra, a disputa amorosa, a luta de classes – e até todas elas na mesma novela. Meu Pedacinho de Chão, mesmo sendo uma novela das seis, era explícita (apesar de utilizar um espaço visual lúdico) no conflito cidade X campo, dominação social, etc.. Era tão claro e presente o conflito que ele permeava a relação do casal romântico da trama, Zelão e a professora Juliana, pois ele um analfabeto e capacho do mandante da cidade e ela uma professora da cidade grande. Quem assistiu vai recordar a beleza e a situação de afastamento dos dois por ele sequer saber escrever um bilhete de amor para ela.

Eu conversava com uma pessoa que assistia a Império e perguntei: qual o conflito? Ao que ele não soube responder. Eu assisti só o começo da novela e percebi que era só mais uma novela baseada no segredo (o comendador não sabia da existência da filha) que geraria todo o espetáculo de vingança, aceitação, culpa e tudo mais. Como as novelas se sustentam sem conflito? Do mesmo modo que todo produto audiovisual. O star sistem, o carisma dos personagens (por isso temos visto a tentativa de criarem personagens cada vez mais fortes em manias, expressões e traquejos – Paulo Betti e Alexandre Nero na própria Império, Adriana Esteves em Avenida Brasil, Mateus Solano em Amor à Vida – são eles que alimentam frases em redes sociais e nas conversas do dia, é assim que surge o fanatismo, é um bordão, uma desmunhecada, o emblemático uso de só uma cor de roupa, as frases depreciativas sobre uma classe social ou gênero), os cenários e figurinos que em instantes chegam às lojas, a beleza fabricada de homens e mulheres (porque nos dizem que o corpo malhado do Cauã Raymond ou as esqueléticas como Isabelle Dummond são bonitos e gostosos e ponto), tudo isso é o que faz uma novela hoje – e não a sua história. O conflito foi esquecido, todos os personagens escondem alguma coisa, criam-se personagens que não honram a linhagem dos grandes da nossa teledramaturgia. O jeito abestalhado do Tonho da Lua ou o tilintar das pulseiras do Sinhôzinho Malta eram adendos à caracterização dos personagens, não os esgotavam.

O segredo é necessário às histórias? Mas claro! E não somente às de mistério. Bons leitores de Agatha Christie e companhia sabem disso. Em Arthur & George, por exemplo, vemos o personagem de Arthur Conan Doyle como um ser movido pelo mistério (apesar da frustrante tentativa dele de se desvencilhar do seu personagem famoso) mas que encontra no conflito (racial) a sua história. Dizem* que Shakespeare escondia do público alguns fatores explicativos essenciais para “aprofundar de forma ilimitada o efeito de suas peças”, ou seja, ele escondia a motivação, o princípio, ou as razões do personagem. Pense numa história que começa com um filho matando o pai, e você não faz idéia do que levou-o a isso. O choque de um parricídio aumenta a sua relação com a história – do que, pelo contrário, se a história te contasse de início que eles, na verdade, não são pai e filho. A idéia de Shakespeare não é criar uma história de mistério (o famoso quem matou ou qual o segredo de fulano) mas criar um véu estratégico para o conflito.

Tão fácil recorrer a Shakespeare para explicar a enorme diferença entre o conflito e o mero segredo. O segredo é uma ferramenta, dentre tantas outras, usada pelo autor para desenvolver o conflito. Na novela Sete Vidas, por exemplo, não vejo conflito. E o que poderia ser visto como um (irmãos se apaixonam) tenho pra mim que na verdade será “solucionado” pelo segredo que a mãe da moça esconde (seria Julia de fato fruto de inseminação?).

O público brasileiro, tão formado pelas novelas, ou não abraça mais os conflitos (na busca pelo imediatismo de um personagem que renda memes e frases para o Facebook?) ou tem sido subestimado pelos autores. Desconfio que seja um bom tanto de ambos. Os autores também querem o sucesso fácil dos milhões de comentários – Agnaldo Silva comentou esses dias, numa entrevista, que se ele falasse a sério sobre gays, seria ignorado. Faltou comentar que além de faltar conflito e sobrar segredos, as novelas hoje se especializaram em “chocar”, em fingir que estão atentas às mudanças e rearranjos sociais – preferia quando elas enfiavam o dedo nas mazelas sociais e políticas, mas a gente sabe que a Globo não faz mais isso. É a velha indústria cultural, você senta no sofá no final de um dia filho da mãe e vai assistir político roubando e mandando uma banana de um helicóptero? Não, isso você já vê o dia inteiro.

Me preocupa bastante ver como nossos autores (e diretores) têm copiado produtos audiovisuais estrangeiros. Já fomos mais originais. (e nem estou falando do cinema) Além da citada Avenida Brasil (a Globo inclusive passou uma ou duas temporadas de Revenge, na esteira do sucesso da novela), Sete Vidas parte do argumento do filme The Kids Are All Right e inclui histórias paralelas também idênticas a outros filmes (a história do Ângelo Antônio, que casou com uma mulher que tinha acabado de fazer inseminação artificial lembra um filme bobinho com a Jennifer Lopez, The Back-up Plan). A minissérie que prometia ser um escândalo (até porque flertou com o mundo da política, mas só ficou no flerte barato mesmo), Felizes para Sempre?, foi dizimada por conter “referências” (de referência para cópia é um salto bem pequeno) demais a séries e filmes – e um Fernando Meirelles sem graça se justificou ao dizer que o público não tinha percebido todas as “referências”, vai ver o público esperava criatividade de um diretor tão aclamado. Seria uma decadência anunciada?

Ao mesmo tempo, chega ao Brasil, pela Band, uma novela turca que fez e faz o maior sucesso no mundo todo desde 2006/2007. Eu já tinha ouvida falar dela, passou em países da América Latina antes de chegar aqui. Mil e Uma Noites difere em muito das novelas brasileiras. A começar pela cultura e pela citação clara (porém, em termos de história, não direta) do famoso livro de literatura árabe. O conflito é claro: Sherazade, viúva de um moço rico desprezado pelos pais, arquiteta de formação com um filho pequeno, precisa de um milhão para pagar o transplante que salvará a vida do filho. Numa cultura machista e apegada ao núcleo central da família, Sherazade é a pobre heroína que esconde da empresa que tem um filho, pois filhos prejudicam a carreira das mulheres (no Brasil empresas, bancos e etc. vêem da mesma forma, mas aqui escondemos bem), desde a morte do marido trabalhou de free lancer e tem uma vida precária. Num momento de desespero ela vai até o sogro (muito rico) que renegou o filho (e a nora e o neto), porque ele não quis o casamento arranjado com uma moça de família, e pede o dinheiro. Ele nega. A doadora foi encontrada e ela tem um fim de semana para conseguir um milhão. Ela então vai até o seu chefe arrogante e pede emprestado 900 mil (os amigos emprestaram cerca de 100 mil). Como machista, arrogante e frio que é, o chefe espezinha a moça (ela está em estágio probatório, apesar de ter ganho prêmios e projetos para a empresa) oferece o dinheiro em troca de uma noite. Uma noite. Ela se nega, mas volta atrás. E a tal noite acontece. Dinheiro em mãos, filho salvo.

Como o conflito se desenrola? O chefe apaixona-se por ela. E faz desse amor uma imposição na vida dela – na empresa e na vida pessoal. A situação é grave, pois ele tratou-a como uma prostituta (era o que ele pensava dela até saber o real motivo do “empréstimo”). O personagem do chefe torna-se obcecado por Sherazade – alguns dirão que é apaixonado, mas ele simplesmente impõe o amor dele, a persegue, sequestra, exige, dá presentes: se isso não é obsessão… A novela então é o desenrolar do conflito, agregando o par romântico que precisará transpor uma série de valores e princípios. Além disso, vemos no núcleo do sogro dela como são machistas, o valor do filho homem, a mulher como parideira o valor da família e da honra. No capítulo de hoje a mãe do chefe vai se opor ao amor do filho, porque Sherazade é viúva e já tem um filho – que não é dele. Numa das sessões de terapia com a empregada, o chefe pergunta “é possível ser pai de um filho que não é seu?” – algo que, desconfio, não seria jamais colocado na boca de um personagem brasileiro.

Mas o público parece estar nem aí para o conflito. Pois vejo uma torcida absurda pelo “sim” de Sherazade desde o primeiro momento. Coisas como “um homem bonito (?) e rico assim” deve ter, obrigatoriamente, um sim – independente do sentimento da moça ou da ofensa que ela sofreu. Quase todo o público brasileiro (masculino e feminino) já teria se jogado aos pés do rico chefe bonitão (quase, porque não me incluo). E assim a gente resume uma cultura, um povo, uma rede de princípios (não é à toa que precisamos de uma lei Maria da Penha). Pouco importa o conflito, ele é bonito e rico. E como não é novela brasileira, e pra mim a parte mais especial de Mil e Uma Noites, o público não faz idéia do que e como e quais os sentimentos deles em relação “àquela noite”. Nós mal vimos um beijo dele no ombro dela e ela indo embora no dia seguinte. Sem agarração, sem cena que induzisse à violação, nadinha. Como eu sempre digo: pra que contar tudo? Perde a graça. Mina o conflito.

Digamos que eu seja saudosista. Digamos que sinto falta até do que nunca tive, como dos folhetins que saía a cada semana um capítulo no jornal (como aparece em The Paradise, o frisson do público pelos personagens e pelo clima da história que acaba sendo usado comercialmente – foi o início de tudo), mas que foram derrotados pelo interesse da imprensa e pelo ego dos autores. Sou saudosista de boas novelas tanto quanto de um público mais… mais interessante, talvez? Felizmente, com livros, séries, seriados, filmes e novelas tão à mão hoje em dia, não sou saudosista de boas histórias. E sem conflito, nem os amores me parecem atraentes.

* in Como Funciona a Ficção, James Wood.

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