Estava saindo do cabeleireiro e ela me pegou pelo pulso, virou minha mão com a palma para cima e disparou “ó, que vida tumultuada!”. Bem, se até a cigana se surpreendeu com o que viu, quem sou eu para falar… Em seguida ela se refez do deslize profissional e largou “tua linha da vida é longa, muito longa…” (reticências porque ela deixou no ar um intervalo). Eu sorri. Ela não. “Você vai viver muito e vai sofrer bastante também, vejo muito sofrimento na tua vida” e não tirava os olhos do mapa minucioso que se espalha pela minha mão. Bem, sorri novamente e disse que tudo isso eu já sabia. Ela levantou os olhos com o rosto apertado e não gostou do meu sorriso. “Vejo coisas tristes, moça. Muitas realizações, é verdade, mas uma vida e tanto. Não é sempre que eu encontro uma vida assim.” pensei, então, que era melhor eu compor um semblante mais compungido para não decepcioná-la. Ao mesmo tempo, quis animá-la. “Ah, não se preocupe, terei tempo para me acostumar a todas as voltas que a vida dá, já foram tantas até aqui, vou aprendendo”.
Tudo isso foi em instantes, diálogo rápido que quando escrito parece uma eternidade. Ela afrouxou um pouco meu pulso e quis que eu fosse para o canto da esquina com ela, pois ela me disse que viu coisas das quais queria me prevenir, avisar, ajudar. Foi aí que eu, pela primeira vez, puxei de leve meu braço e neguei com veemência. A vida não tem graça se a gente sabe o que virá, senhora. Dispensei-a (e ela pareceu preocupada, não apenas decepcionada como quem perde um lucro). “Mas, moça, talvez você precise de ajuda…” e eu, sorrindo, acenei negativamente com a cabeça e segui meu caminho. Talvez eu precise, mas nada nos previne do que a vida trará.
Talvez se ela tivesse me surpreendido de cara com algo que eu não soubesse, talvez se ela tivesse dramatizado mais (pode ser ingenuidade, mas achei sincera a preocupação). Talvez se o bichinho da curiosidade tivesse me picado. Mas o couro é velho e sabe bem que quanto antes algum sinal misterioso nos “ajuda” das coisas ruins da vida, pior será a queda. Aliás, se ela tivesse me oferecido contar as coisas boas que me acontecerão, aí sim eu teria ficado para ouvi-la. Se ela quisesse me confidenciar quais objetivos eu conseguirei alcançar, teria até pagado com o maior prazer. Mas se oferecer para antecipar as desgraças da vida? Já basta vivê-las e tê-las, depois, na memória. Saber antes eu dispenso.
Eu sei que viverei por muito tempo. Sei que perderei muitas pessoas que amo. Sei que (sofri) sofrerei. E como minha jornada será longa e tumultuada, tal qual foi até aqui, deixo de antemão algumas decisões (que poderão, é claro, mudar oportunamente). Quero uma casa no campo, com carneiros, cabras e cavalos pastando ao redor. Quero o silêncio das línguas cansadas, também. Tenho alguns livros, gostaria de tê-los por perto, mas quem sabe um dia já não possa mais lê-los – deixarei uma lista dos meus favoritos e peço que os leiam sempre para mim. Digo sempre, porque alguns eu de coração posso ler e ouvir para o resto da vida.
Tenho um HD só com discos e discografias. Por favor, se eu não tiver mais condições de dar play, não me deixem sem música. Dividam meu tempo entre o campo e a praia. E exijo que não me deixem perder nenhum nascer ou pôr-do-sol – talvez lá um dia eu não saiba mais o que é segunda-feira, ou para que servem os ponteiros do relógio, mas do sol eu jamais esquecerei. Tenho uma lista de filmes, novelas e séries especiais para quando chover, para os sábados à noite ou quando eu ficar doente. Talvez eu nem consiga mais enxergar direito, mas quero assisti-los até o fim, e legendados, por favor.
A gente nunca sabe muito bem o que vai acontecer no futuro. Sendo ele sombrio ou brilhante, ou um vai e vem de ambos, minhas preferências devem ser cumpridas. É claro que não esqueci uma lista das comidas essenciais. Se deixar faltar milho, por exemplo, depois que eu me for jamais deixarei a alma do responsável em paz. Não quero deixar desgostos ou desavenças para o futuro, por isso resolvo tudo hoje. O passado despedaça alguns futuros. No mais, cercada de natureza (se algo dela ainda resistir até o meu futuro…), de bichos, livros, música, filmes e comida, acredito que exigirei pouco da vida. Vejam, não exijo companhia. Talvez eu vá perdendo a memória aos poucos. Assim, acrescento as fotos nessa minha bagagem para o dia do amanhã. Quando eu esquecer, ainda poderei contemplá-las, com dúvidas e sem revivê-las; se a memória ainda não me falhar, poderei degustá-las inúmeras vezes.
Terei tempo para muita coisa, eu sei. E quando as condições não mais me permitirem os tumultos, a casa no campo, a praia, as companhias e os acompanhamentos ideais não me roubarão o sossego. Porque isso também a cigana não precisaria me dizer.
Lindo 🙂
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