Lânguida e arrasada na cadeira, braços caídos a encostar no chão, olhos fechados do rosto jogado para trás a banhar-se no sol do inverno daquela manhã. O grande cão cinzento ao lado, sonolento e atento aos passinhos do sabiá que revira a terra nova. Ela repara no vermelho diante dos seus olhos fechados, vira o rosto para a sombra, dizem que é o sangue que colore o escuro. Sente o vento inquieto bailando sobre a pele quente das mangas arregaçadas do moletom. Sussurros de prazer lhe dão o gozo do frio sobre o quente… e ela destina-se a não sair mais nunca dali. O sol das onze lhe dá o torpor de todos os prazeres do mundo. Ela é a medida de todas as coisas. A vida, assim, é bela. As coisas cheiram a jasmim do imperador. O som dos carros e vozes é o piar dos bicos-de-lacre sobre o mato. As intenções das pessoas são o afagar do focinho do cão no seu calcanhar. Ela vê o mundo através dos olhos fechados na penumbra avermelhada. É uma brincadeira de sol e sombra. As folhas caem da cerejeira como os dons são bem usados por todos. Ela é a medida de todas as coisas, assim, todos creem em Deus. Todos gozam os prazeres da carne como ela antecipa o chá quente que a espera dentro de casa. Ela abre os olhos a piscar-se intensamente buscando os galhos do hibisco sem flores. O livro desfolhado no colo demora-se a ficar nítido. Talvez ali tenha algo importante a ser lido. Talvez as pessoas preocupem-se com o que é sério a ser dito. Ela joga novamente a cabeça para trás até cair do encosto da cadeira. Fecha os olhos. O sol lhe queima a ponta do nariz arredondado. Um esboço de sorriso se achega quando ela ouve o cão sair correndo atrás do sabiá desprevenido que cutucava o canteiro das roseiras. Ela é a medida de todas as coisas, assim, cães têm asas. Homens têm dois corações, crianças não sentem dores. Ela pensa no horário, pensa nas páginas a serem lidas, nas árvores que precisam ser plantadas, e abandona-se igual ao sol e ao prazer. Ouve miados vindos da janela. Ouve os zunidos da rua. Ouve o eco do seu coração. E ouve o zumbido do ouvido. Ela é a medida de todas as coisas. As más-línguas, assim, são contorcidas em nós de silêncio. E os dias viram noites somente em estripulias debaixo dos lençóis – e cobertores, quando inverno. Os olhares acariciam em pré-abraços. As distâncias são vencidas com beijos levados pela brisa. E o sol se põe quatro vezes por dia. Porque ela é a medida de todas as coisas. Ela sente o mundo na medida do prazer daquele corpo estirado ao sol. E o mundo é do tamanho daquele jardim. Da altura da ameixeira. E precisa tanto dela como ela dele. O cachorro lambe seu braço e exige carinhos e atenções. Ela ergue a cabeça e sorri e manda-lhe beijo. Deixa a mão perdida sobre a cabeça do bichano. Talvez lhe dê uma insolação. Talvez lhe atrase o dia. Talvez lhe doa as costas. Talvez lhe chamem. Joga a cabeça para trás e não fecha os olhos. Distrai-se com o limite do céu. Ela é a medida de todas as coisas. E, a começar, não existem limites. Assim, nada traduz-se em palavras ou idéias: tudo é emoção. Emocionam-se perdidamente todos os seres sobre a Terra, diariamente, pelos amores e paixões, pelo que e por quem quer que seja. Entregam-se a desejos sempre, todos os viventes. Porque ela é a medida de todas as coisas. Fecha os olhos. O livro cai do colo e espatifa suas folhas na calçada. Ela estica as pernas. Ficará ali. Se não para sempre, ao menos até que, enfim, o mundo lhe caiba nas suas medidas.
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