Trovoadas

As trovoadas anunciavam o fim: aquele calorão nos deixaria em paz. O vento descobriu as pernas, arrastou as lonas, os comerciantes recolhiam jornais e melancias. Naquele momento era possível dividir a humanidade entre os felizes, que corriam em busca dos primeiros pingos da chuva, e os infelizes, que maldiziam, xingavam e pareciam gremlins ao toque de qualquer pinguinho desavisado. Num dia de calor recorde é que você conhece de verdade as pessoas.

Algumas tremerão de desejos. Outras, dignamente ensopadas, perderão a dignidade vocabular e não haverá sabão o suficiente para tão bocas sujas. Algumas te convidarão para um caldo de cana, um sorvete (nada mais sensual que sorvete), ou para suar junto. Outras irão ao shopping, até a casa da tia rica que é toda climatizada e, claro, tem piscina. Sim, eu disse piscina. Pense na água fresca, sem algas nem ondas, paradinha te esperando para uma foto de fazer inveja aos que estão de terno e gravata dignos dos ossos do ofício pelas ruas escaldantes. Algumas te esperarão em casa, nuas em pêlo (ou sem eles). Outras, com um mau humor do (censurado, mas é aquele palavrão que vocês conhecem), dirão sem pestanejar “nem encosta”. Assim, a humanidade pode ser dividida entre os que amam – e os que não, mas talvez finjam de vez em quando. Não é possível só amar no frio, queridos. (como se tirar a roupa no frio fosse de boa, né)

As trovoadas trariam o fim: uma chuva exigente e indelicada, um vento passageiro e arrebatador. As temperaturas cairiam uns dez graus. Nada voltaria a ser como antes, pois ainda o corpo suado, os quartos abafados, as janelas a trancafiar o calor dentro de casa senão os pisos ficariam encharcados. Cachorros encharcados a balançar o rabo de felicidade, eu e você a chegar em casa, pingando a transparência das roupas, a sorrir. Os computadores, televisores e ferros de passar devidamente desligados das tomadas e os banheiros fechados (essa história do espelho nunca foi confirmada, melhor não arriscar). A terra falsamente molhada. As velas acesas para Santa Bárbara.

A chuva de Verão lava a alma dos corpos cansados. Que o calor cansa, por certo. Ela passa de raspão nos dias mais quentes só para constar: ela pensa em nós. Pensa em nós satirizando nossos sofrimentos e desistências. Não fui até a farmácia hoje, só de pensar em andar três quadras num asfalto inclemente de mais de sessenta e cinco graus eu preferi tomar sorvete para aliviar a dor de cabeça. Para quem olhava pela janela a imaginar uma rede pendurada debaixo das árvores do quintal: ainda dá tempo de correr colocar as cordas (não há lugar melhor do que uma rede para apreciar os temporais de Verão, vão por mim). É o intervalo, é o nosso recreio, aproveita e tira o lanche da bolsa, contempla como ela é passageira. Antes do suor do teu peito secar, ela terá se mandado. E a certeza de amanhã será mais sol e calor – ela, porém, é voluntariosa, pode nos deixar esperando um encontro nunca marcado.

As trovoadas diriam o meu sim: quero o caldo de cana e o sorvete, o banho de chuva, o corpo encharcado de suor a gotejar essa água gelada da chuva, os pés escorregando do chinelo, os olhos buscando um arco-íris, o testemunho das janelas fechadas às pressas, o escândalo do mar a acinzentar-se espelhando as nuvens. Viriam os raios brutais e instantâneos (talvez eu persistisse em fotografá-los). Quero estar na rede da varanda a afagar teus ombros enquanto a chuva de verão segue seu rumo a estabanar outros recantos do nosso litoral. Quero todos os temporais.

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