Caminho pelas fronteiras do mar a catar os destroços dos náufragos. Tudo aquilo que chegou até a areia pelo bem entender das correntes marinhas – que nem vemos e quase não as entendemos. Passo meus dias aqui a esperar os amores que viraram lembranças, as embarcações que desfizeram-se em restos de madeira. Repare que até as conchas contam suas histórias. À beira-mar quase nada chega inteiro. Coleciono pedaços de vidas que não lograram ser tudo o que sonhavam.
Não me interessam as conchas inteiras. Elas ainda não viveram o suficiente para terem algo a dizer de dentro de potes de vidro colocados na minha sala de visita. Coleciono os sorrisos de todos aqueles que viram o mar pela primeira vez, respingados pelo olhar brilhoso de sofreguidão e ansiedade diante do desconhecido: verão o mar muitas vezes ainda, e jamais o conhecerão. Coleciono chegadas e partidas, daqueles que passam de carro atulhado de malas e ventiladores, ainda uma última vez antes de afundarem-se em saudade dos dias passados em companhia do mar e do sol; dos pequeninos que não voltarão jamais, pois ano que vem serão outras pessoas em outros corpos e já poderão entrar até depois do quebrar das ondas.
Assim ocupo minha vida, a recolher as histórias acabadas e as que ficaram em pedaços… ando por aqui a montar quebra-cabeças dos corações alheios. Não discuto emoções. Reparo que as pessoas, assim como as embarcações, dificilmente resistem às tempestades. Por vezes elas até são precavidas, ouvem com cuidado as previsões do tempo, sempre estão em dia com os itens de segurança e a manutenção. Mas… nem tudo parece estar ao nosso alcance. Mas… quando são pegos de surpresa o choque causa devastações irreversíveis. E tudo vai ficando pelo mar, e o caminho absolve as marcas das desatenções…
Hoje mesmo a praia encheu-se de pequenos peixes mortos. É difícil sobreviver no mar, até para eles. Chegaram boiando sem nenhum dano aparente e o olhos esbugalhados. Nunca se sabe ao certo o que lhes tirou o ar. Vejo os abraços apertados que se desmancham em braçadas solitárias. Os corpos jovens e ativos que vão se deixando ficar nas cadeiras de praia debaixo do guarda-sol até não aparecem mais por aqui. Não faltam alianças e pranchas na minha coleção. As primeiras sempre as encontro na maré baixa, confusas deste fim na areia revolta pelas ondas. As últimas enroscadas nas pedras dos cantos, sofrendo o abandono voluntário.
Passo por aqui todos os dias, recolhendo tudo o que levo para o museu dos naufrágios. Nele nada se vê inteiro, mas possui todas as vidas. Partem-se em pedaços que quererão reencontrar-se eternamente. As embarcações, porém, podem ser substituídas. Guardo essas relíquias com o desejo infinito de que tenham um destino, que recalculem suas rotas, que consigam compreender novamente suas bússolas. Agora, que as nuvens se aproximam da praia e os grossos pingos de chuva retalham as areias e o mar acinzenta-se, empenho-me em colher todas essas desilusões largadas às pressas de um final de feriadão. Os naufrágios acontecem em momentos previsíveis, por vezes, quando o tempo não nos oferece outra chance.
E sou eu que fico aqui, a oficializar adeuses e choros contidos… a cadastrar despojos de todos vocês que partem sem tempo de sentir que algo de vocês ficou para sempre à beira-mar. O náufrago preocupa-se demais com o que lhe restou intacto. Espero pela próxima maré…
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