A distância do tempo

Repare nestes corpos que estão à volta: em plena Primavera malhados e sem o suor sob o ar condicionado das academias. Logo será Verão e eles precisam se exibir à beira de piscinas e mares. Mas, veja, eles ficam exaustos dos pulos, das roscas, dos agachamentos. São corpos que não sabem mais (ou nunca souberam) o que é fazer força, sentir os músculos estirados ao sol com uma pá na mão, por exemplo. Repare, eles correm quilômetros intermináveis nas esteiras percorrendo parques imaginários.

São corpos que caminham sem sair do lugar. São mentes que possuem olhos que não vêem nem além da parede envidraçada das academias. São corpos que não caminham mais. Isso me diz o estacionamento lotado desses novos templos de Apolo, isso me diz a vizinha que não anda duzentos metros até lá. Por uma questão também de status, só andamos de carro – ou de moto, quando muito por necessidade. Inventar a roda nunca fez tanto sentido para uma humanidade falida presa aos freios do motor.

Nem o preço da gasolina, nem a tal vida saudável, nem nada. Nada mais nos faz andar a pé. Talvez nem os bebês mais se preocupem com isso, logo logo. Os pais perderão aquele momento emocionante de ver as perninhas trêmulas sustentarem-se sozinha e titubeantes. Porque não andamos mais a pé. E assim perdemos a força natural que o corpo desenvolve com o movimento essencial à vida. Preferimos modismos a simular os movimentos do corpo num cross qualquer a, simplesmente, fazê-los.

Simulamos demais a vida. Dentro de academias, dentro de computadores, dentro de selfies que não nos dizem nada. Não andamos mais a pé. E assim perdemos todos os entalhes do mundo ao nosso redor. Perdemos os pequenos detalhes que as ruas e as vistas panorâmicas nos proporcionam. Vamos de carro daqui até ali, paramos em frente de onde queremos e sequer nos preocupamos com o entorno.

Caminhar, e não a fatídica “caminhada” por ordem médica que é dar umas voltas pelo bairro fofocando ou absortos em fones de ouvido. Convido a caminhar, pé ante pé, a subir e descer morros, a entrar em ruas desconhecidas, a fazer pequenos serviços e burocracias cumprindo distâncias sobre os próprios pés.

Convido a esquecer nossa submissão humana de encurtar distâncias com o olho no relógio e adequar a vida à distância do tempo. “Estarei aí em uma hora” a substituir o “Estarei aí em dez minutos”. Ganha-se vida nestes cinquenta minutos a mais percorrendo com olhos, coração e pés a distância que nos separa do tempo.

Caminhar nos fez seres humanos. Nossa humanidade se esvai em canos de escape. Caminhar pelo simples fato de caminhar. De um lugar a outro. Sem prescrição médica. Dando ao corpo o movimento real da vida. Dando à distância o seu tempo. Fica o convite.

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