Bálsamo

Uma dor no pescoço hoje me pegou de jeito, como fosse a lembrança de sonhos estranhos sobre criaturas não identificadas encontradas na mata em noite escura. Nem pesquisei o significado do sonho, desta vez, pois decidi que não queria saber. Sim, pra quem pensa demais, decidir não saber é um bálsamo.

Um bálsamo: como uma canção gostosa inesperadamente a qualquer momento do dia; como o sorriso a caminhar pelas ruas à lembrança de uma provocação indecente; como olhar perdido no horizonte do rio que deságua no mar; como as palavras que querem dizer ou talvez não digam; como o banho quente e o gole de cerveja gelada. Um bálsamo como mergulhar na água fria em dia quente, um dos meus preferidos. 

Readaptar o corpo e a cabeça para diminuir o ritmo, confiar mais em si mesma, dar aos céus o que não está mais ao seu alcance e respirar. Desacelerar, talvez. Dialogar com a cabeça que sempre pensa demais e se cobra mais ainda que nem tudo é tão importante assim.

A dor no pescoço virou motivo para um alongamento cheio de flerte e doçura. Perder a oportunidade por quê? Colocar pra tocar uma dúzia de sambas sensuais foi a solução para girar o pescoço e o corpo até que a dor fosse embora – se foi, nem lembro, porque os pensamentos entraram nos versos e viajaram até onde não deviam (mas queriam). 

Os problemas se acumulam em listas e mais listas e prazos apertadíssimos sobre a mesa. Decidi não me preocupar. Nada é mais importante do que a paz de quem fez sua sopa, cortou suas frutas, ficou de chamego com seu cachorro, caminhou pelas ruas fotografando flores e árvores em busca de identificá-las – sim, hoje isso era o mais importante. 

Prioridades: cozinhar ouvindo música; caminhar sem rumo ou destino; ouvir as conversas alheias em busca de ideias e histórias; suspirar em busca de inspiração; pensar em “como seria” se eu fosse uma pessoa diferente e sempre concluir que não é uma boa ideia; catar vírgulas e silêncios e espaços para criar teorias mirabolantes; escrever continuamente e se auto-elogiar; ler tudo aquilo que me puxe para a realidade dura, difícil e dolorida; jogar um jogo perigoso com a ilusão.

A cada braçada eu me sentia ainda mais disposta. Parar nunca foi uma opção. A decisão de saber menos e de me importar menos é o caminho mais acertado porque o peso de ser mulher, de ser artista, de viver daquilo que tanto amo que é criar, de criar o que incomoda quem prefere só reafirmar suas certezas, de ser livre, independente e feliz superou o que eu quero pra hoje. 

A cada braçada o bálsamo da água fria lavava meus sonhos e me fazia respirar intensamente minhas prioridades: pra hoje só tenho eu. Tanta confiança e garantia tiveram o respaldo do maiô novo, eu desconfio. O sol, o vento, o som dos pássaros e as risadas embalam a volta pra casa e penso que esse pescoço ficará feliz ao voltar para o travesseiro, alta madrugada, e escolher nosso mais novo sonho.

Danem-se as pedras

Ali, então, entrou uma mulher. Todos sabiam o que ia acontecer: seria apedrejada. Este costume ancestral, uma tradição passada de geração em geração, era imediatamente colocado em ação.

Onde quer que uma mulher ouse entrar, ela será apedrejada sem um milésimo de segundo de dúvida antes da ação.

É o peso da realidade que carregamos no lombo. Um corpo por vezes cansado, exausto das tentativas e ciente das oportunidades que nos escaparam porque somos quem não querem que sejamos. 

Somente uma mulher para mudar tudo. O medo lança as pedras.

Mesmo quando somos procuradas e convidadas para adentrar naquele espaço – seja público ou privado – somos condenadas por não seguir o modelo que esperam de nós. Uma mulher só pode ser uma mulher.

As pedras são lançadas sem dó, sem piedade, sem justiça. 

As pedras nos atingem – muitas aprendem cedo onde podem e onde não podem entrar e assim seguem suas vidas o resto dos seus dias. 

Outras, bem poucas, ignoram os roxos na pele e as cicatrizes e em algum momento partem para chutes e empurrões de portas e janelas. Vai doer mais para as pedras.

Danem-se as pedras, pois elas continuarão a ser lançadas. Por todos, em cada lugar onde uma mulher ouse entrar.

Joinville investe em aniquilar seu futuro

Recentemente uma notícia que preocupou. De imediato a memória me remeteu há pouco mais de um ano, numa reunião do Conselho Municipal de Políticas Culturais, no Auditório do Museu do Sambaqui, numa noite de segunda-feira.

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Na reunião, um conhecido funcionário da prefeitura apresentou uma “proposta” de interesse ao Conselho. Era sobre a “Quadra Cultural”, que estava em trâmite nas instâncias da prefeitura, e, resumidamente, permitiria que os investidores em uma determinada região muito valorizada da cidade pudessem “investir” o que seria a outorga onerosa na dita região. O senhor, muito sorridente, apresentou o projeto, ressaltando que os investimentos incluiriam equipamentos culturais como o Museu de Arte de Joinville, a Cidadela Cultural Antarctica e o Museu do Imigrante. Na ocasião, o sorriso dele foi murchando conforme os presentes na reunião do Conselho fizeram perguntas, questionamentos e até duras críticas. 

Após ver o sorriso se desvanecer, testemunhamos o funcionário da prefeitura sair aos xingamentos afirmando que nós não tínhamos força nenhuma, que já estava “certo” que seria aprovado e ele tinha feito um “favor” em comparecer e explicar o que era o projeto.

Foi somente mais uma demonstração de desprezo ao Conselho de Cultura e seus conselheiros com a gentileza de sempre da atual gestão.

O projeto recebeu duras críticas, inclusive de uma conselheira que é moradora da região e, aparentemente, desconhecia tal projeto. Assim que o projeto fosse aprovado na tal região, ao invés de a prefeitura receber o valor da outorga onerosa e investir onde há necessidade, quem vai escolher onde será investido serão os próprios proprietários dos imóveis, delimitado ao que eles chamaram de “quadra cultural”.

Ou seja, o investidor compra um terreno naquela região, vai construir seu imóvel de altíssimo padrão, e não vai pagar a outorga onerosa à prefeitura, ele vai investir dentro daquela hiper restrita região – já elitizada e valorizada – para que o seu imóvel seu ainda mais valorizado.

Ou seja, o dinheiro da outorga onerosa, que a prefeitura poderia investir onde há real necessidade, será usado com fins particulares para os proprietários dos imóveis daquela região.

Ou seja, um minúsculo grupo que detém uma enorme fatia do dinheiro da cidade vai investir o seu próprio dinheiro em valorizar o imóvel dele, sem precisar “dar” dinheiro para a prefeitura. Porque, afinal, fazem parte daquele grupo que não quer ver seus impostos e seu dinheiro indo para outro lugar que não para o próprio bolso.

Ou seja, tendo a cidade necessidade de um parque no Paranaguamirim ou um posto de saúde no Parque Guaraní ou apoiar as hortas comunitárias nos bairros não investirá milhões onde mais precisa, mas estará revertendo esse dinheiro em criar um “bairro fechado” para a elite mais elite da cidade.

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Devo ressaltar aqui a ojeriza que senti ao ler a suposta reportagem que saiu no jornalão da cidade, que pode ser considerado um mero merchan do projeto. Na suposta reportagem, citaram um prédio recente que pagou um milhão e setecentos mil reais de outorga onerosa para a prefeitura, antes da final aprovação do projeto Quadra Cultural e lamentaram que esse dinheiro não tenha sido investido na região, melhorando as vias, e os equipamentos do local. Além disso, o texto cita que a média de renda da região é acima de 5 salários mínimos, enquanto a média de Joinville é de 2,7 salários mínimos.

Levou pouco mais de quatro anos, mas certeza que essa foi uma promessa de campanha (não daquelas que aparecem na TV e no rádio, mas aquelas feitas à portas fechadas) da atual gestão.

Joinville, com esse projeto assustador, reitera sua vocação ao atraso

Grandes cidades, ricas cidades, investem em todas as áreas. Investem nos bairros, disponibilizam equipamentos de lazer e cidadania para todas as classes sociais. Em Joinville, é diferente.

Quem mora aqui já ouviu a elite reclamar que a cidade é feita para “operários”. Eles acham chato sempre ter que ir para Balneário Camboriú, Curitiba, São Paulo, Miami para viverem. Mas, a atual gestão está mudando isso. Felizmente, os iates e lanchas já têm onde atracar para comer um peixe no domingo. Agora, os investidores e moradores da alta elite terão uma fatia (nada pequena) da cidade para chamar de sua. Não me admira que em pouco tempo alguém tenha a brilhante ideia de colocar cancelas nos acessos da Quadra Cultural, como fizeram, ilegalmente,  a um tempo atrás, naquele parque com nome francês. Às vezes por aqui precisamos lembrar que a rua ainda é pública e eles precisam conviver com o resto da população.

Preocupa-me que isso não tenha respaldo legal. Não me admira em nada que, em algum momento, os meios que a prefeitura usou para alcançar esse projeto não tenham sido todos dentro das leis. Eles são bons, também, em manipular as leis e regras – o Conselho Municipal de Políticas Culturais é um perfeito exemplo disso. Cabe ao Ministério Público ou demais órgãos darem as caras e mostrarem que aqui em Joinville eles ainda existem e não servem só para fazer de conta que não vêem o que acontece ao seu redor.

Porém, pior do que isso é o que o projeto da Quadra Cultural simboliza e significa numa cidade como Joinville. Nem vou citar como Joinville ignora e destrói seu patrimônio histórico e cultural, como desvaloriza e estrangula a cultura e as vozes dissonantes. Também vou evitar citar como a imprensa por aqui é calada, como não se vê jornalismo independente porque sabe-se qual o fim que a pessoa vai ter (quem sabe será contratada pela grande emissora local e o salário fará acalmar suas ânsias de justiça, enquanto a prefeitura dormirá tranquila). Caso eu seja atacada por trazer este assunto à tona, vocês sabem de onde veio a bala. 

Joinville admite e institucionaliza a política higienista, investe tempo e dinheiro público para privilegiar a elite que está autorizada a usar dinheiro público em benefício próprio.

Algo que me deixa curiosa é como está autorizado que um dinheiro público – a outorga onerosa – pode ser usada como investimento em benefício e uso próprio de quem deve esse dinheiro para a prefeitura. Vejamos um exemplo: se você tem um problema com a prefeitura e recebe uma multa, você pode escolher o que fazer com o dinheiro da multa em algo que trará benefícios para o seu próprio imóvel!

O que a Câmara de Vereadores pensa disso?

Vemos um surto de limpeza social que cresce entre vereadores e domina o discurso de suposta imprensa, apoiados pelo histerismo de parte da população que acusa pessoas em situação de rua como responsáveis pela insegurança no município. Porém, os assassinatos e as guerras de facções que fatiaram os bairros periféricos dessa cidade não surgem como preocupação de ninguém – a ver que toda semana noticiam os crimes e preferem resolver com “a vítima tinha antecedentes criminais”. Todo mês o governador aparece aí e ninguém expressa preocupação com a luta contra o crime organizado. 

Mas, contra algumas pessoas em trânsito, pessoas com problemas sociais reais, revoltam a população e levam vereadores a dar seus shows.

O tamanho da Quadra Cultural não é pouco, não. Abarca esses equipamentos culturais que citei como se eles fossem receber altíssimos investimentos e um Museu de Arte de Joinville da noite pro dia se tornasse um Museu Oscar Niemeyer. Como se já não fosse evidente que querem transformar a Cidadela Cultural em uma galeria de restaurantes caros para a elite. Aliás, na suposta reportagem (faltou constar: conteúdo pago), citaram que na região é onde tem “os melhores restaurantes da cidade”. Eu nunca fui em nenhum desses restaurantes, mal conheço quem frequenta os mesmos.

Vê-se claramente que a intenção é criar uma cidade dentro da cidade, uma cidade para alguns poucos, tentando criar a ilusão de que haverá “benefícios para todos”. O discurso é o mesmo com aquele novo “bairro” que nada mais é do que uns herdeiros que querem lucrar investimento em imóveis (aqui e na Serra, destruindo centenas de araucárias – a ironia com o nome não é minha). As supostas reportagens sobre esse empreendimento são vergonhosas, me admira alguém com um diploma de jornalismo que aceite assinar aquilo. 

Joinville e a desigualdade social

A elite da cidade cansou. Cansou de não ter sossego e uma parte da cidade para ela. O outro prefeito herdeiro não tve essa visão, ele era old school. Os prefeitos de Joinville sempre visaram somente a elite, mas focados em promover os investimentos da indústria e da elite – sem pensar na cidade para a elite. Joinville nunca foi para todos. Nunca. Os lamentos da elite foram finalmente ouvidos: eles querem o seu espaço garantido, onde possam viver em paz sem ver pobres e operários, onde possam caminhar nas ruas e tomar seus cafés sem tropeçar em pedintes, que possam levar seus filhos para colégios que só eles frequentam, onde exista um lugar respirável que nem se pareça com a cidade cinza, feia, destruída de sua história e abandonada como todo o resto. O maior mérito da atual gestão, do Imperador futuro senador, é lembrar que a elite existe e quer também usufruir da cidade. 

Dane-se que no Parque Guaraní morre gente assassinada pelo crime organizado e as crianças não têm onde brincar com segurança. Dane-se que no Morro do Amaral até para estudar seja uma luta. Dane-se que no Morro do Meio não existam equipamentos culturais. Os últimos investimentos em estrutura para a Cultura que tivemos em Joinville foi do governo federal.

Dane-se que a Casa da Cultura precise mendigar dinheiro com a iniciativa privada para atualizar as instalações e restaurar seus espaços. Aliás, a Casa da Cultura está na mira da privatização e ninguém parece se incomodar. Será a próxima bola da vez. Que o digam a Cidadela Cultural e o Mercado Público.

Acho curioso como essas ações da prefeitura somente demonstram a incompetência da gestão. Privatizar esses espaços e o projeto da Quadra Cultural nada mais é do que assumir que não dá conta do recado. Não dá conta, pede pra sair. A prefeitura cede as outorgas onerosas para uma região porque não garante que é capaz do mínimo: investir em infraestrutura.

O Futuro tenebroso

Joinville, com cada uma dessas ações, constrói com esmero a sua destruição. Em menos de dez anos o histerismo de meia dúzia de pessoas que hoje diz que é refém dentro de casa porque há pessoas em situação de rua será real. Joinville em nada se prepara para os desafios de uma cidade grande, que deveria ser cosmopolita (fica para um próximo texto). A cidade não sabe o que é sustentabilidade ambiental e ações que promovam o meio ambiente (logo falaremos mais disso). A cidade promove e investe na desigualdade social. A desigualdade social sempre foi o calcanhar de Aquiles de Joinville que manteve com rédeas curtas o abismo social que nos mantém – e que mantém o patrão no poder. A desigualdade social alimentada pela falta de acesso à educação superior pública, que alimenta a violência nas periferias, que tornou-a atrativa para os golpistas. 

Joinville vai pagar caro. Os guetos já existem. Enquanto a elite nariz empinado da sua sacada no América acha que só ela existe, ignora as ruas abandonadas com o tráfico na porta das escolas do Itaum. Joinville não está preparada nem nunca teve quem pensasse a cidade para ser grande. O preço será alto. Lamentável será ver que vai sobrar para todos pagarem a conta da elite colona que há tempos não tirou seus cadáveres do caminho. 

Mais três anos para vender tudo

Ano passado houve silêncio quando tal projeto passou pela Câmara de Vereadores, que aceitou tudo calada. Aliás, nem o vereador que se diz paladino da zona sul questionou algo, ele mesmo que conseguiu aprovar a Zona Industrial Sul. Sim, para os pobres operários da zona sul tem zona industrial, não terá investimento de outorga onerosa. Como se o joinvilense fosse burro e acreditasse que Zona Industrial é para o trabalhador – é somente isenção e incentivo para os industriais que vão levar suas fábricas pra lá, sem nenhum investimento em infraestrutura. O operário? Ficará menos tempo no ônibus. Assim a cidade evita reclamações.

O tal Conselho Gestor da Quadra Cultural já teve reunião. Numa delas, sem a presença da representante da Secretaria de Cultura, falou-se no desenvolvimento de projeto para o Museu de Arte de Joinville. Quem não lembra das ações policiais nos jardins do MAJ antes da Quadra Cultural? Qual a autonomia para uma incorporadora decidir o que fará com o Museu? Não há interesse dos jornalistas da cidade, até jornalista de economia, acompanhar esses projetos? Qual será a participação da população nos rumos do Museu?

A privatização dos espaços públicos culturais da cidade sempre foi um projeto. Por isso o Conselho Municipal de Políticas Culturais é sistematicamente atacado. Que o digam as testemunhas do que a Secretaria de Cultura tem tentado (e feito)…

Há quem pense, em Joinville, que Cultura é somente para a elite. Sério mesmo. Operário e povão não consome cultura. Vai vendo.

Na Lei Complementar está escrito “atendendo a população diretamente afetada e a coletividade que usufrui do território” e nem na lei isso parece bonito. Não basta ter equipamentos, é preciso garantir o acesso de toda coletividade aos equipamentos públicos culturais e de lazer.

Quanto que tá o passe mesmo? Vai vendo.

Consta lá: Gestão transparente por meio da participação social e do monitoramento das ações pelo Conselho Gestor da OUC. Participação social com reuniões vazias. Pessoal da Cultura sabe bem como é isso.

Assim a boiada vai passando… o objetivo é o mesmo. Pena Joinville ser uma cidade tão silenciosa. Os gritos das atrocidades que se cometem por aqui não são ouvidos. E tem gente que acha que sabe calar as vozes dissonantes.

Olho aberto

Algumas poucas pesquisas trazem luz sobre as questões, principalmente sobre os envolvidos. Recomendo. Insisto: se calarão?

Um capítulo inteiro dedicado à sororidade

Porque somos mulheres e somente nós sabemos o que é ser mulher

Foi uma sucessão de fatos cotidianos. Ouvia o rádio sobre a notícia da expulsão de um treinador de futebol que assediou o time de futebol feminino e pensei: deveria ser sempre assim. Nos casos de violência contra a mulher (das inúmeras formas que os homens nos agridem) a única regra possível seria expulsar, excluir o agressor. Como um pária mesmo. Esse texto foi gestado com acúmulos de fatos cotidianos presos na garganta. E antes que o acusem de ter algum teor vingativo, esclareço desde já, como disse recentemente: não é. O que clamamos é o mínimo de justiça.

O estopim para tudo que estava trancado foi uma amiga publicar nas redes sociais dela que havia feito o boletim de ocorrência e que aguardava a medida protetiva. Uma mulher linda, independente, de quarenta anos, vivida, experiente, feliz. Mais uma vítima. Na hora eu mandei uma mensagem pra ela em solidariedade. Revelei que há pouco tempo eu também havia sido vítima e que era belo ela sair por aí denunciando porque é essa vontade que dá – depois de sentirmos uma vergonha que não deveria existir. Trocamos algumas mensagens e aquilo me rondou por dias. Como ter sido vítima também vai me rondar o resto da minha vida. Bem que fez essa amiga em romper a esfera privada e levar a público a violência que ela sofreu. Eu não havia feito isso.

Em 2023, quando sofri ataques públicos, também violência de gênero, de pessoas públicas, tanto políticos quanto nobres cidadãos de Santa Catarina, e pelos quais até hoje sou vítima (será um capítulo a parte que será divulgado em outro momento), eu também vivi um relacionamento abusivo. De alguma forma, ter sido vítima da violência da extrema-direita e ser vítima de um homem comunista me fez ver o pior lado de tudo o que as pessoas discutem hoje. Mas, sou mulher, e sou mais forte que todos eles juntos. Vivi duas experiências inéditas, mas que de certa forma já haviam se anunciado antes.

Sofri perseguição política em ambiente de trabalho anteriormente. Vivi perseguição e violência de outros homens com quem me relacionei. Porém, nada com as proporções do que aquele ano me trouxe. Por isso, também, minhas ações foram outras. Pela primeira vez eu fiz um boletim de ocorrência contra os abusadores.

Vivo numa sociedade machista e Joinville é uma cidade que se orgulha de práticas ainda piores.

Eu não fui a primeira mulher vítima dos políticos que me atacaram – nem a última. Eu não fui a primeira mulher vítima do homem com quem eu me relacionei – temo que não sou a última. 

E é muito sobre não ser a última que carrego a determinação de escrever este texto, mais de um ano depois. 

As peças que se encaixam no quebra-cabeça criam imagens aterrorizantes

No último dia 8 de março, “Dia da Mulher”, me enviaram um post perguntando se eu sabia que uma conhecida colega professora de cinema da cidade estava no projeto de exibição de filmes do homem de quem fui vítima. Eu não sabia. Lamentei muito que uma mulher, que trabalha com jovens mulheres, esteja junto a ele neste projeto. O projeto, cabe dizer, na sua primeira versão, foi majoritariamente desenvolvido por mim, eu mesma fiz a inscrição por ele, no meu computador onde ele deixou salvo os dados de login. Sim, o abuso dele foi no campo pessoal e profissional. De perfil extremamente manipulador, com uma frustração muito grande por não se ver realizado na atuação na área do cinema, ele se aproximou de mim por isso, por também tirar vantagem do meu conhecimento e trabalho. Pelo menos fico feliz que hoje o espaço cultural no Aventureiro tem uma tela de projeção de cinema, item que eu havia colocado originalmente no projeto, para ser doado ao espaço.

Quando haviam, anteriormente, me procurado sobre este projeto que exibe filmes catarinenses eu fui objetiva e contei sobre quem se tratava. Recebi apoio e solidariedade de algumas pessoas que preencheram essas lacunas que a violência nos deixa. Inclusive estudantes de cinema, que em outras situações haviam sofrido violência, souberam do caso e me apoiaram. Eu sentia, e ainda sinto, uma necessidade muito grande de alertá-las para manterem distância daquele homem. Eu sei que não serei a última vítima. 

Dizer que anos depois do Me Too, de todas as denúncias e processos do Weinstein, estaríamos nós, aqui em Joinville, tratando de um abusador na área do cinema. De vez em quando me pego pensando nisso. Mas, tudo aquilo serviu para que possamos denunciar, possamos ter solidariedade umas com as outras, possamos apontar os agressores, possamos identificar o perfil do “predador”. Em alguns anos de atuação no cinema de Joinville eu posso elencar casos de assédio que soube que outras mulheres sofreram e posso contar alguns para vocês.

Trabalhei com um ex-aluno que também foi um abusador. Do perfil incel, afastava todas as pessoas que tentavam manter contato comigo, também se beneficiou do trabalho que eu desenvolvia, do meu conhecimento, e inclusive aprovou um projeto baseado em um conto meu, o Açúcar (na sua primeira versão). Após a série de violências que eu sofri e quando tentei me libertar da situação abusiva na qual me encontrava, cortei totalmente as relações e ele teve que cancelar a produção. Eu disse que eu não podia deixar a Elisângela (protagonista do Açúcar) nas mãos dele e foi uma das coisas mais acertadas que fiz na vida. Açúcar veio à vida por insistência do outro abusador, que sabia o que havia acontecido com esse ex-aluno. E, apesar das violências de ambos, eu e o Açúcar sobrevivemos a eles.

Teve um outro ex-aluno, que protagonizou violências dentro de sala de aula, repudiado por colegas e professoras, que fez questão de dizer que ninguém queria trabalhar comigo. Ele mesmo se contradisse tempos depois. Teve também um outro homem, interesseiro, o tipo amigão progressista, sabe? Mas assim que entrou num projeto como assistente de uma mulher, não se conformou. Enfim, não são poucos os casos.

Violência doméstica não é estatística

Eu não sou estatística. Minha amiga não é estatística. As mulheres que apoiam e tentam fazer que não vêem nossos algozes nos dizem com todas as letras que nossa dor não significa nada. 

Eu tive motivos, em outras oportunidades, de fazer boletim de ocorrência contra quem me perseguiu após o fim de um relacionamento (mudei de endereço, mudei de número de telefone, e só depois de muito tempo ele “sumiu”, mas até hoje a experiência da perseguição convive comigo). E ouvi tantos relatos, vi tantas notícias, que “naturalizei” homens perseguirem mulheres que terminaram relacionamentos! Não faz tempo esse mesmo solicitou me seguir no Instagram, pela milésima vez. Depois de vinte anos! Eu não fiz boletim de ocorrência quando um outro ex tentou “retomar” contato dois anos depois, quando eu descobri que ele estava mantendo contato com uma pessoa da minha família manipulando a situação como se um “nós” ainda existisse e compareceu a um evento atrás de mim.

Mas, eu fiz quando este homem, após meses de tortura, manipulação, violência verbal e psicológica, simulou um suicídio para me fazer ir atrás dele, mandando fotos, mensagens, fazendo ligações com ameaças, chantagens e manipulações psicológicas e emocionais. Nós não estávamos mais juntos havia meses. O relacionamento só existia na cabeça dele. Até aquele dia que eu disse isso, com todas as letras, e ele começou uma nova etapa no seu jogo de violências. Eu sabia que ele faria aquilo, havia compartilhado esse sentimento com pessoas próximas. Eu não sabia como terminar sem que ele não fizesse isso, visto que já havia ameaçado e deixado bem claro que ele era capaz. Mas, também isso era parte da manipulação.

Sim, ele simulou. A frieza com a qual ele manteve as mensagens manipuladoras, às quais eu só respondi quando decidi pôr um fim naquilo: entrei em contato com a família dele para avisar. Respondi às mensagens dele simulando que eu faria o que ele queria, para conseguir o endereço onde ele estava e passar a informação para a família dele. Eles que resolvessem. Contudo, após eu conseguir o endereço e enviar para a família, eles resolveram que não era nada grave e não iriam naquela mesma noite. Eu bloqueei todas as contas e contato com ele. No dia seguinte, um hospital de Curitiba (para onde ele havia fugido) me liga, pois ele tinha dado entrada lá e o único contato salvo no telefone (que não estava com tela de bloqueio!) era o meu. Sabe como ele foi parar no hospital? Quando eu disse que iria até ele, para ele me passar o endereço onde ele estava, ele saiu do hotel para comprar bebida! Essa foi a mensagem dele, “coloca o carro na garagem, ap XX, que eu vou sair pra comprar bebida pra gente”. 

Ainda tive a decência de enviar o contato do hospital para a família dele, e mantiveram contato até que, ainda no hospital, ele continuou com ameaças, enviou e-mails, invadiu o perfil da Cinemateca de Joinville no Instagram para me ameaçar e agredir. Quando insisti com a família que eles precisavam afastá-lo de mim, senão eu faria o boletim de ocorrência, recebi com ironia um “então faça!”. E eu fiz. Em poucos dias saiu a medida protetiva, e mesmo neste período ele continuou com a perseguição e ameaças. Felizmente, durante os seis meses da medida protetiva, ele não fez mais nada diretamente. Contudo, tentou usar o projeto de exibição de filmes para me atingir de alguma forma – sem sucesso. Todos que me procuraram e souberam dos fatos foram muito compreensivos.

Quão baixo um homem pode chegar para simular uma tentativa de sucídio para manipular uma mulher a “voltar para ele”? Mal saiu do hospital, publicou um textão no Facebook relatando a experiência colocando-se como vítima. Ninguém brinca com suicídio. Ninguém.

Ao contrário do que se pensa, a medida protetiva não é nenhum alívio. Pra mim, como contei à amiga e às pessoas ao meu redor, era um peso. Vivi seis meses tensa, com aquele papel na bolsa, celular sempre carregado para caso precisasse apertar o botão do pânico. Você vive dias atrozes.

Depois de conversar com a minha amiga, eu revisitei a conversa que tive com ele pelo Whatsapp. Fui com o coração aberto e fiquei feliz de ver que a Fahya nunca deixou de ser a Fahya naquelas semanas infernais. Enquanto atacada publicamente pela extrema-direita, na vida íntima lidava com uma pessoa asquerosa. Ele sentia algum tipo de prazer em me cutucar onde mais doía, inclusive com os ataques públicos. Ele também invejava tudo que eu tinha e quem eu era, na mesma época me candidatei ao Conselho Estadual de Cultura e foi mais um momento dele fazer arruaça. Inconformado por não me ver ceder aos ataques, inventou que sairia candidato ao Conselho Municipal de Cultura. 

Todas as características do manipulador. Do agressor mais vil, que usa tudo que conhece da pessoa para atacá-la e tentar subjugá-la. Ele não conseguiu.

Um covarde, como todos esses que dentro das casas e nas tribunas das câmaras que atacam violentamente as mulheres. Eles não suportam nos ver vivas.

Eles estão soltos e praticando seus crimes

E foi ontem, ao ver os vídeos da denúncia da nossa vereadora aos ataques que as mulheres na Câmara de Vereadores têm sistematicamente sofrido (há anos!), que eu entendi a emergência de publicar este texto. Os abusadores devem ser expostos. Quem dera houvesse uma lei que banisse um abusador de qualquer espaço público, de qualquer setor, de qualquer instituição. Nós viveríamos menos acuadas.

Se eu espero que o agressor da Câmara de Vereadores seja punido? Há algum tempo eu espero por isso, mas a hipocrisia e covardia de muitos vão protegê-lo.

Se eu espero que mais e mais pessoas saibam quem é o agressor que faz projetos culturais no cinema da cidade? Claro. 

Relembro sempre o apoio que recebi quando falei mais abertamente sobre o ocorrido. Lembro, também, de quem viu o story e em seguida veio perguntar quem era. Eu considerava muito essa pessoa, no pessoal e no profissional, mas tudo caiu por terra: ela não veio se solidarizar, era só buscava a fofoca. E era uma mulher. Por isso que esse relato não é sobre vingança. É sobre justiça e sororidade.

Pra colega professora que trabalha com ele, ou pra qualquer um de vocês que sabe de quem eu estou falando e convive com ele, peça para que ele devolva o meu livro que ele pegou “emprestado” e não me devolveu. O livro tem anotações de afeto, por isso é a única coisa que não resolvi de tudo que aconteceu. O livro é meu. Sim, ele também usou o livro para tentar me forçar a “encontrá-lo”, ao que eu não cedi. Então, se alguém encontrar com ele, pode dizer pra me devolver, pode pegar e me devolver ou dizer pra ele mandar pelo correio. Sem cartas, nem bilhetes, nem nada. Confio em vocês.

Por fim, trago esse relato como mais um alerta: nem sempre você sabe de qual lado político o agressor está. Violência contra as mulheres não é prerrogativa da extrema-direita. Então, para as pessoas de Joinville do campo progressista, vejam bem suas atitudes, repensem quem está ao lado de vocês na luta. O homem de quem estou falando frequenta esses ambientes, participa dos eventos, arregimentou pessoas da esquerda (inclusive mulheres!) para o projeto. Até quando vocês vão fazer que não veem?

Lembro bem de um comentário dele, quando eu me declarava feminista. Ele veio com aquele papinho do homem misógino da esquerda que a “causa” está se perdendo com essas lutas minoritárias, de gênero, de raça e tal, que devemos focar somente na “luta de classes”. Eu já conhecia o discurso, é claro, e mais uma vez ele não conseguiu me subjugar nem dizer como eu deveria agir ou pensar. Homens progressistas, revejam suas atitudes. Revejam como vocês passam pano para os seus colegas abusadores. Não esperem que eu fique ao lado de vocês na luta.

Para todas as mulheres que leram até aqui: que sirva de alerta, de força, de reflexão. Por mais mulheres que tragam à tona suas feridas, suas experiências, que relatem quais violências sofreram e como foram identificando os agressores, quais atitudes nos deram caminhos a seguir. A Fahya de vinte anos atrás precisava muito disso e não teve. As mulheres sempre foram silenciadas. Não podemos mais.

Para as vereadoras da cidade que continuam a sofrer, pela vereadora que sofreu violências (e ninguém saiu em defesa dela!) no mandato anterior e que foi solidária comigo, eu e ela fomos atacadas naquele plenário: estamos do mesmo lado, contra todos os agressores. Por mais mulheres na política, e enquanto isso ainda veremos muito macho tendo ataque de pelanca vomitando agressões, ignorância, mentiras e ódio. Ódio. Eles nos odeiam porque somos mulheres.

Sejamos, todos os dias, cada vez mais mulheres. Mulheres que se mantém firmes, felizes e seguem em frente. Que sejamos exemplos umas para as outras. Enquanto eles espumam o mal que trazem no coração. Porque algumas de nós não viveram para ser exemplo.

Dois parágrafos

Último parágrafo

Caminhei com uma atípica tranquilidade pelas últimas horas do último dia do último mês do ano entre pessoas em demasia que invadiam o espaço que durante meses fora somente meu. Por ali passei muitos dias daquele ano, entre nevoeiros e dias de sol, com chuva e céus enfarruscados. Nada me atingiria, lixo sobre a areia, gritos estridentes, músicas saindo de caixas de som gigantes, nada me abalaria. Eu pertenço a este lugar. Fui até meu observatório da vida e senti-me como as tartarugas, o mundo se perturba e minha certeza é que elas estarão lá nadando e comendo seus peixes, sem olhar o trânsito parado, sem se importar com a roupa branca nem se o espumante gelou. Era isso, eu e minhas companheiras nadamos entre águas turvas e perturbadas. No santuário, fiz minhas últimas preces e carreguei o corpo salgado de mais fé. Como qualquer outro dia daquele calendário, era eu e o mar e a paz. Nada me atingiria. Nunca foi sorte.

Primeiro parágrafo

Se fosse possível descrever o quanto de histórias e força vivem nestas paredes e neste chão de areia, eu pararia de escrever. Por isso acordo nas primeiras horas do primeiro dia do primeiro mês do ano com essa gana de viver. É preciso contar histórias e vivê-las. Imperturbável atravesso as marolas e as tormentas, cochilo na rede da varanda como se não viesse uma rancheira chata da rádio do vizinho nem me provocassem os desafetos. É bonito o vai e vem das nuvens do céu assim como esteve lindo o céu estrelado de fogos coloridos nas boas-vindas de mais uma longa e desafiante caminhada. Encontro sorrisos em mim mesma. Faço meu percurso, que Deus me dê chance de ainda fazê-lo muitas vezes este ano, até o observatório onde alinho os pensamentos, sonhos e desejos. Parece até que vou abrir as portas para estes últimos, em breve. Eles estiveram esquecidos. O exército precisa ser montado, os alimentos e estratégias serão preparados, insiste a alma em lançar-se sôfrega e eu a acalmo. Hoje, ainda não.

Resolvo outro dia



Em um dia eu vi nevoeiro e sol de rachar, percorri (numa sequência de dias) vários quilômetros, ouvi coisas abomináveis de pessoas que mal conheço (e fiquei quieta), me senti subvalorizada profissionalmente, quase parei na estrada por falta de gasolina porque nem percebi que tinha acabado, desliguei a música (amo dirigir ouvindo música) porque meus pensamentos estavam gritando, eu chorei ao volante em alguma altura da estrada. Eu comi por compulsão para desabafar emoções (o pior dos meus maus hábitos). Elaborei mentalmente listas e listas do que há por fazer. Me atrasei para compromissos e tive que cancelar outro porque o trânsito estava o caos. Minha cabeça e sentimentos também. Culpei a lua vazia da manhã toda, é claro, e ao consultar meu horóscopo ele dizia que era hora de aceitar a quantidade de conflitos instalados na minha vida e bater de frente com as pessoas sem esperar o Destino resolver tudo (quase chorei de novo). Eu ri de mim mesma por criar expectativas e querer tudo, sempre, pra ontem. Pensei 400 vezes no futuro. Lembrei de me dizer: o que pintar, eu assino, poeta, e dou tudo de mim em todos os desafios que cruzam o meu caminho – eu jamais diria as coisas abomináveis que ouvi mais cedo. Diriam que nem sempre vale a pena, mas se me proponho fazer, faço bem feito, com criatividade e sem comodismo – senão, não seria eu. Me espantei com minha maturidade em prever problemas e tive trocas intensas de áudio para que o pior não aconteça. Conversei com o moço sobre o cafezinho da máquina ser viciante e que gosto também das mensagens nos copos, pois, é claro, sou supersticiosa e Destino sempre me manda recados. Fiquei encucada com a forma como uma pessoa está me tratando. Fiquei triste porque há quem não perceba o mal que faz com poucas palavras. Tive instantes de tensão achando que uma desgraça tinha acontecido (o dia parecia caminhar pra isso), ufa! não (aí chorei de novo). Eu sei o motivo de eu estar vivendo esses dias tensos e intensos, não paro nem pra chorar. Eu sempre pago o preço. Por um segundo eu quis ir para o meu esconderijo e fugir de tudo – eu quis mesmo, mas eu decepcionaria muita gente e não saberia viver com esse peso. Fui gentil com quem foi gentil comigo e percebi que minha pressa não adiantaria de nada, não mudaria o dia, o trânsito, nem os astros, não resolveria, à distância, os problemas. Resolvi caminhar para lembrar do que mais falta colocar nas listas, quem sabe encontrar alguma boa nova história para criar e para lembrar de quem preciso esquecer (para tirar do coração não basta uma caminhada). Fui nadar pra colocar a cabeça no lugar. Impávida, encarei a piscina cheia, a raia da parede e a instrutora chata. Anotei para não esquecer que nunca – nunquinha – sabemos o que passa cada pessoa – num dia, num ano, numa vida. Quem sabe os astros tivessem esgotado suas artimanhas e pude voltar pra casa com fome de jantar pipoca e vinho e assistir aos capítulos finais das primeiras temporadas das duas séries que estou assistindo. Os sentimentos? Resolvo outro dia. Amanhã eu sempre tento de novo.

Nevoeiro

Hoje os barcos não saíram para pescar. O temerário, só um, é verdade, navegava próximo à praia. Na cidade o sol cegava. Lá nem se teve notícias do nevoeiro. A angústia do olhar de mar que não via o horizonte, nada além de umas braçadas. O dia acordara mesmo sem escolhas: ou se ama, ou se ama. Quem conhece os humores do mar sabe que ele não estava para brincadeira, hoje era dia de discussão profunda. Poucas ondas, maré de ressacas do frio, uma superfície calma, diriam os ignorantes. Não é bom ignorar os humores do mar. O mar não é traiçoeiro nem engana, essas acusações são dos que preferem culpar os outros pelos seus erros. No amor, não há espaço para culpas. O mar dizia bem claro como ele estava, cada um na sua. Os pescadores à janela testemunhavam o nevoeiro adensar e adentrar as ruas e casas, fazia tempo que algo assim não se via. Era temporada boa de pesca, noites seguidas de muitas luzes no horizonte, redes espalhadas pelos dias de sol e seca. Você nunca pode contra o amor, tal qual o nevoeiro ele chega e muda a vida das pessoas. Assim como não é possível obrigar ninguém a amar o mar. Tarde da noite o nevoeiro foi se transformando em gotas que umedeciam os telhados, as redes da varanda, os carros fora da garagem, o mato do quintal. Gatos contrariados procuravam abrigo nas casas desabitadas. Em algum lugar está escrito que não se ama em vão – mesmo quando o desejo por alguém não é correspondido. Parece que há uma lei no universo abençoada pelos astros que confirma que ninguém pode ser forçado a retribuir o amor. Quase não havia faixa de areia na praia dos pescadores. Na praia ao lado havia areia e os caixotes (alguns chamam de lar) que o motor destruidor do ser humano constrói nem eram avistados. Bonita paisagem. Recorda aquele livro no qual eles partem num barco e ao naufragar vão parar numa ilha deserta e lá criam uma nova sociedade. Uma ilha deserta, o sonho dos amantes. Viver numa ilha, só apaixonados entenderiam. A cidade tem o poder de destruir sonhos e poluir os pulmões, não é recomendável. O nevoeiro trouxe apreensão, as aves voavam baixo, as tartarugas não apareceram. Os mais antigos se recolheram cedo, diziam ser mau agouro um nevoeiro assim, que boa coisa não viria, ou do mar, ou do céu, ou do coração. E as famílias já acuadas pelas tragédias da natureza fecharam as portas e janelas mais cedo. O amor se embrenha pelas frestas, encontra um canto quentinho do coração, busca um espaço confortável nos pensamentos. Quem planejava banhos de mar ou nadar até as pedras teve que se contentar com mirar a água límpida. O mar estava mais gelado que a alma de quem ama sem esperança. O amor aprende a esperar. O nevoeiro levou as crianças ao choro, ao leite quente e a irem para a cama mais cedo. Crianças antecipam as desgraças, seus corações são puros porque não conhecem o amor – só a necessidade. Crianças não são fruto do amor. Há quem olhe e não veja o mar. Há quem não veja poesia no nevoeiro. Há quem diga que ama, sem amar a si mesmo. Amar é um exercício cotidiano. Amor é uma vida, precisa ser alimentado e cuidado. O mar, hoje, casou-se com o nevoeiro numa ironia do destino. Passaram o dia e a noite a discorrer em falatório sobre as incertezas e inseguranças de nós que habitamos a Terra. Concluíram que são todos muito tolos. Tão tolos que não sabemos se amanhã amanhecerá com sol ou nuvens ou chuva ou se o encontro deles ainda não terá terminado. Nem o casamento do mar com o nevoeiro dura para sempre. Amor nenhum dura. O nevoeiro, porém, teve que concordar que o mar é o melhor amante. Amar é saber dar-se. Apaixonar-se pelo mar é inevitável para as almas solitárias e donas de si, é um amor que baliza o amor ao próximo. Amar nunca é errado. Já dizia o livro sagrado que fomos feitos para o amor. O mar é o templo. O nevoeiro, hoje, fechou as portas do mar porque precisavam, juntos, dizer algumas palavras aos corações apaixonados. Amar é só para os corajosos.

Fazer cinema é um ato de coragem

Fazer cinema é um ato de coragem. De fato, para produzir cinema, ainda mais no Brasil, é preciso coragem. Em 2023 eu ouvi várias vezes sobre como fui corajosa, ao relatar e enfrentar os ataques que sofri. Ao acompanhar o Congresso Brasileiro de Cinema, pela internet, ouvi alguém (não me recordo quem) dizer que é preciso coragem para fazer cinema no Brasil. E esta é minha última reflexão do ano.

Não é só preciso coragem no momento de decidir pela profissão de trabalhar no audiovisual. É preciso coragem em cada momento, em todas as demais etapas que se seguirão. Porém, ressalto que é preciso coragem para fazer cinema com o coração. O cinema brasileiro independente não tem final feliz – isso é lá para Hollywood e sua indústria. 

Quando vejo esses projetos e filmes com tanto final feliz, ignorando deliberadamente que somos um país racista, misógino, LGBTfóbico, machista, elitista, eu percebo o quanto de coragem faltou aos seus realizadores. Encher as nossas telas de finais felizes e adocicar a realidade é um golpe nas nossas vidas. Enquanto o cinema produzido por quem quer alavancar sua própria carreira, por quem (muitas vezes) só quer acesso às verbas, por quem quer fazer um filme para “ganhar prêmio em festival” for dominante, a coragem passou longe. Ainda mais de pessoas e sobre histórias com personagens que, na vida real, são as grandes vítimas de um sistema que oprime, violenta e mata. Para ser fiel aos sentimentos e às vítimas, não existe a possibilidade de final feliz.

Produzir o Gritos do Sul foi, sim, um ato de coragem. Denunciar tudo o que aconteceu (e ainda acontece) é um ato de coragem. Porque eu sei que não fui nem serei a única a passar por essa perseguição. Toda a perseguição política e misógina deve ser denunciada para que os demais saibam se defender também.

Atualmente, é preciso muita coragem para trabalhar com cultura, para não ser aquele ou aquela que produz brilho e purpurina, que respalda as narrativas dominantes, que põe sorriso na cara de personagem que está estraçalhado por dentro. Porque temos uma situação na qual o acesso às políticas públicas passa por tantos obstáculos que o valor artístico do projeto importa quase nada diante das mil etapas burocráticas e sociais que ele precisa cumprir. Você é trabalhador da cultura, vai produzir um filme, você não pode ser co-responsabilizado pela falta de acesso aos bens culturais, culpa de décadas de descaso do poder público. Os projetos culturais tornam-se peças legítimas de ficção, em outro sentido, pois disseminam ilusões – como dizem, o papel aceita tudo. Mas, o objetivo é conquistar a verba – não importa quantas mentiras sejam ditas nas inscrições.

Sabemos que em outubro do ano passado uma batalha foi conquistada, e isso trouxe o início da reconstrução. Porém, nada está ganho. Não só a nível federal, mas estadual e municipal, em Santa Catarina principalmente, a batalha é diária. Como eu disse em audiência pública na Câmara de Vereadores esse ano, não há como evitar: Joinville e Santa Catarina pertencem ao Brasil e devem respeitar o que se faz e legisla a nível federal. Prefeitos, vereadores, deputados e governadores podem mirar a Cultura como inimiga: seus gritos não podem ser ouvidos nem perpetrados em ações que vão de encontro ao que está instituído nacionalmente.

Ressalto que dentro do próprio setor da Cultura, e em especial do Audiovisual, há a reprodução da nossa sociedade: machismo, misoginia, racismo, LGBTfobia, elitismo. O que eu passei esse ano foi agravado por isso, pela misoginia e pelo machismo que alguns que se dizem profissionais do Audiovisual perpetuaram. Desde que comecei a atuar no Audiovisual em Joinville o machismo e a misoginia é flagrante, além da presença de homens que têm histórico de violência contra a mulher no nosso meio, em Joinville e em Santa Catarina, no Setor Audiovisual. 

Para quem disse que eu fui corajosa: vocês não sabem da missa a metade! Tive, tenho e continuarei tendo coragem para lutar contra essa gente, dentro e fora do setor. Vou continuar realizando filmes que, sem finais felizes, coloquem o dedo na ferida de uma sociedade doente e criminosa. Pra quem achou que eu estava derrotada, fica o recado. É preciso coragem para produzir cinema, cinema com o coração, com vontade, com tesão e com voz. Para os covardes eu deixo os finais felizes, o que é “esteticamente bonito”, a tentativa de roubar o lugar de fala das minorias (o que teve de homem fazendo filme sobre violência contra a mulher nos últimos anos na região!), a purpurina e as cenas coreografadas. Ah, para os covardes resta o fascismo também, que eles admiram (secretamente ou não) e que reproduzem nos seus discursos.

Além de realizar filmes, permaneço atuante publicamente. Foi uma decisão muito difícil de tomar, mas que conta com o apoio de muitas pessoas. Eu não estou sozinha. Como dizem, é nas horas difíceis que a gente reconhece quem é quem. Eu sei muito bem quem esteve ao meu lado na trincheira e quem jogou bombas, inclusive enquanto dizia que estava ao meu lado. Sei cada pessoa que se omitiu. Sei bem quem só se aproxima de mim quando acha que vai ter lucro. Sei bem quem tentou me usar e ao meu conhecimento. A cada um, o que lhe cabe. 2023 não acabará em 31 de dezembro de 2023, porque os nossos atos têm consequências.

Por tudo isso e mais um pouco, não me admira que a Prefeitura de Joinville não tenha sequer lançado os editais do SIMDEC 2023. Falta menos de 15 dias para encerrarmos o ano! Vejam se tem alguém cobrando, se o setor cultura está unido fazendo pressão nas redes sociais, se o Conselho Municipal de Políticas Culturais se manifestou! NADA. Nem na última década vimos um descaso e falta total de compromisso com o setor cultural como em 2023, quando os editais de 2022 não foram pagos e os de 2023 sequer foram lançados.

Semanas atrás fui convidada da rádio CBN Diário de Joinville para falar sobre o atraso no pagamento do Edital SIMDEC 2022. Relatei que 4 milhões para o Natal a Secretaria de Cultura e Turismo tinha, mas para pagar o resultado homologado em setembro, nada. Aí uma repórter do jornal O Município me procurou e começou um levantamento sobre os projetos. Na reunião do Conselho o secretário me respondeu dizendo que seriam pagos até a outra semana. A repórter do O Município não respondeu mais se a reportagem seria publicada. Um outro repórter perguntou à prefeitura e me repassou que, dos 57 projetos aprovados, 46 haviam sido pagos (dados de 11/12/2023) e seis estavam em tramitação. Os projetos que têm a minha participação sequer receberam o Termo de Compromisso Cultural para assinar. Agora, deixo para vocês julgarem se ser corajosa e expor toda essa podridão tem alguma vantagem. Assim entendemos bem todos os meus colegas do setor cultural que se mantém em silêncio: pelo menos estão com o dinheiro em conta para realizar os projetos, não?

A luta é coletiva. Se não fosse eu dar a cara a tapa e correr atrás da publicização do atraso no pagamento do edital, ninguém teria recebido. Podem me agradecer, colegas. Agora, sou eu que, exposta, pago por isso. Cada pessoa que eu contratar para os projetos, lembre bem da luta que é realizá-los. Do quanto a gente precisa dar a cara, cobrar, lutar, contratar advogado, denunciar na imprensa (quando o poder não consegue calá-la). Vejo tanta gente que é só ativista de rede social, mas nessas horas nem esses lutam! Poxa, às vezes é só compartilhar um post, né? Se fosse sobre algo acontecendo lá do outro lado do mundo, vocês correriam compartilhar, eu sei.

É preciso muita coragem e, por vezes, é sozinha mesmo que a gente precisa lutar. Quando a gente ganha a batalha, as pessoas se aproximam. Agora, se vocês acham que essa luta não é de vocês… quando a água bater na bunda, podem me procurar.

Não me falta coragem para ter minha voz ouvida. E faço isso muito para que outros se sintam incentivados a ter coragem. Não sou a diva da discórdia, não sou puxa saco, não sou diplomática nem covarde. Há algo no senso de Justiça que me atrai profundamente. Se mais perseguição e retaliação vier, é a Justiça que vai se encarregar.

Por um 2024 de muita coragem para produzir cinema, mais e melhor.

O silêncio – Missão Fotográfica Joinville

Este ano eu me inscrevi, e fui artista selecionada, para a Missão Fotográfica Joinville. A Missão é uma residência fotográfica para desenvolver propostas fotográficas autorais sobre a cidade, pensando o tema das cartografias, orientados por Lucila Horn e Daniel Machado, numa iniciativa vinculada ao NEFA – Núcleo de Estudos em Fotografia e Arte. Entre março e agosto, fomos desafiados a fotografar Joinville, para apresentar uma narrativa autoral sobre a cidade, a ser publicada num livro de fotografia.

Quando vi a divulgação para os inscritos, pensei que era justamente o que eu precisava. Vivo imersa em reflexões (o que é muito bom e eu super recomendo) e uma delas é o motivo de eu ter tanta dificuldade em fotografar a cidade onde vivo, a qual eu conheço minha vida inteira. 

Fotografo por paixão desde criança, minha mãe sempre fotografou a família, viagens. Minha primeira câmera comprei aos nove anos e desde então tive breves períodos da vida afastada dos cliques. Contudo, Joinville nunca foi meu objeto principal de desejo fotográfico. Sempre levo a câmera e fotografo bastante as viagens, mesmo que sejam para as cidades que eu costumo frequentar, sempre fotografei muito Fpolis (e ainda fotografo).

Por vezes, levo a câmera ao sair por Joinville, desde que retornei à cidade. Em outras vezes, quando não estava morando aqui, uma vez ou outra saía e fotografava, mas é como se sempre faltasse algo. A Missão Fotográfica Joinville era exatamente o que eu precisava, obrigar-me a olhar para a cidade e fotografá-la.

Para a inscrição, que acabei fazendo no último dia já como forma de resistência à idéia de fotografar a cidade, era necessário enviar uma proposta e um portfólio. Na proposta, escrevi essa minha dificuldade e uma relação de “amor e ódio” (não são os termos corretos, mas é para que as pessoas entendam), o amor ao observar os contornos da cidade, o mar que a abraça e que ela ignora, os morros, o rio Cachoeira (que faz parte do meu jardim), as casas históricas.

O projeto da Missão é algo que sinto muita falta na cidade, projetos culturais interessantes, diversificados, diferentes – lembrando que feirinha fim de semana cansa. Como caminhar é a única forma de viver e sentir um lugar, assimilei a parte de caminhar e pedalar para olhar Joinville com outros olhos – que não aqueles sempre tão críticos sobre a mentalidade, os apadrinhamentos, as dores de cotovelo, e essa mesquinharia toda que vemos todos os dias. Então, propus fotografá-la nos seus limites, a partir da crítica e contradições. Argumentei que amar e odiar a cidade é uma contradição que muitos de nós vivemos (por favor, digam que sim, senão me sentirei muito solitária – mentira, não tem problema se só eu passo por isso).

Mal sabia eu que viveria um processo de aprofundamento incrível em olhar as contradições da cidade e que o desafio de traduzir isso em fotos transformaria algumas coisas em mim – como pessoa e como artista. Ao longo dos encontros, fui compreendendo melhor como pensar uma narrativa fotográfica (eu sou da narrativa escrita e audiovisual, na fotografia eu ainda não havia experimentado) e dialogando comigo mesma. Descartei parte das fotografias que me levaram à inscrição, desisti de fotografar certos locais da cidade (até porque um deles um colega de Missão fotografa com muito mais propriedade), entrei num período de bloqueio e os prazos para apresentar as fotografias estava chegando ao fim. 

Em meio a isso, que artista é artista 24 horas por dia, mas também gente, aconteceram outras coisas. Uma delas foi o ataque que o curta-metragem Gritos do Sul (2022), sofreu de políticos e pessoas muito mal intencionadas (da cidade, dos meios de comunicação e, vejam só, até da própria cultura!). Foram dias tensos, porque o fascista, quando se olha no espelho, não gosta do que vê – e o modus operandi deles é bem organizado e ataca com violência esperando que a gente esmoreça. Mas, querer usar o curta para atacar o prefeito, o secretário, tentar desvencilhar os laços que unem fascistas em maior ou menor grau, e querer atacar a Lei do SIMDEC e o direito à Cultura não deu certo. Não era um ataque ao Gritos do Sul (2022) nem a mim, e o tempo todo minha consciência esteve tranquila.

Ninguém disse que seria fácil ser mulher que produz e ensina arte em Joinville – bem pelo contrário. Minha vida nunca foi fácil, a vida de nenhuma mulher é fácil. (mesmo que a gente saiba que fazer certas escolhas, em Joinville, dificultam ainda mais a vida) Sem baixar a cabeça em nenhum momento, o olhar crítico para as enormes e aterradoras contradições dessa cidade foram aguçados. A gana de lutar e trabalhar só cresceu – e tem dado ótimos frutos. O que não mata, fortalece, né? 

Imersa em conflitos, saí para fotografar. Cometi o erro de tentar criar a narrativa antes, e depois buscar as fotografias que a comporiam. Foi um erro que me atrasou alguns dias. Mas, peguei a mochila e saí caminhando. Novamente, encontrei comigo mesma e com a cidade que eu enxergo e fomos felizes em muitas fotografias. Agora sim, eu tinha material para apresentar.

Acredito que a experiência foi profunda para todos os participantes da Missão que se deixaram transformar pelos encontros. Gosto muito da experiência do fazer, do processo criativo, como já disse aqui recentemente. Essa experiência, quando compartilhada pode ter várias consequências, nem sempre boas. Li um artigo esses tempos que me ajudou muito a não fazer comentários irresponsáveis sobre os processos dos demais colegas, mas gostei de muita coisa que vi, como cada um conduz o nosso olhar por Joinville.

No dia do encontro, reconstruí essa ideia da relação de “amor e ódio”, pois havia compreendido (como uma epifania mesmo) que meu “amor” é minha origem, as raízes que me prendem à cidade, e o “ódio” é tudo isso que está aí fazendo mal para a cidade – mas que fazemos de conta que não existe. E então eu descobri: o silêncio. O incômodo atroz que me dá o silêncio que paira nessa cidade, a melhor do país e onde mais morre gente de dengue! A cidade que tem canteiros floridos na frente da prefeitura e não tem álcool em gel em nenhum dispenser no PA Sul. Não se preocupem, não ficarei três dias aqui escrevendo sobre as contradições de Joinville e como é sufocante viver nesse silêncio.

O silêncio. Como é difícil e impossível escrever sobre ele. Como fotografar o silêncio? E os coordenadores ainda pediam um texto que fosse enviado junto às fotos escolhidas! Não consegui escrever sobre o silêncio e, por incrível que pareça, consegui fotografá-lo. Ao analisar e analisar as fotografias, fiz uma seleção e era aquilo ali, era o que eu queria dizer. A Lucila Horn disse que meu projeto é o mais conceitual e crítico, espero que com conceitual não seja algo inacessível às pessoas, mas sobre ser “crítico”, bem, sou eu, né, não tinha como ser diferente.

E esse texto de hoje era para falar sobre o silêncio que reina em Joinville. É um silêncio imposto de cima pra baixo, como disse um amigo esses dias – é como somos criados aqui. É o silêncio exigido para que você não seja banido dos círculos, para que você consiga sobreviver, porque se você começar a falar, a apontar as contradições, a questionar, você não vai mais conseguir viver em paz nesta cidade. Eu sei. Também sei que não sou a única que se incomoda com o silêncio – mas não vejo os outros reclamando dele. É tipo o silêncio sobre silêncio, sabe? Aqui e ali, ao pé do ouvido, às vezes os cochichos…

Esses dias conversei com uma produtora cultural de outra cidade e ela contou como a classe artística de lá era “barulhenta”, conseguia no grito as mudanças necessárias e tal. Criticamos e avaliamos como as coisas são nas políticas públicas da Cultura de Joinville e lá fui eu falar sobre o imenso silêncio que domina os artistas da cidade – eu disse pra ela que aqui isso não acontecia. No meio artístico de Joinville é tudo perfeito, por que eles fariam barulho, não é mesmo?

Talvez eu tenha a audição muito aguçada, mas o silêncio me é muito mais incômodo do que o “barulho”. Aliás, esses dias a ciência comprovou que conseguimos ouvir o silêncio, não? 

Hoje era para escrever sobre o silêncio. Não poderia deixar de contar a experiência com a Missão Fotográfica que me trouxe tantas coisas excepcionais, verdadeiro crescimento enquanto artista e pessoa (é disso que trata a autoria, ser quem somos no que fazemos). Não sei, acho que falei pouco sobre o silêncio, mas certeza que não fiquei em silêncio. Voltarei a escrever sobre ele – e a fotografá-lo. Aliás, é um dos meus temas favoritos para conversar também.

Sobre a Missão, está quase terminando a residência e logo iremos para a edição do livro. Confesso estar contentíssima com os resultados e com os frutos que virão desta experiência. Numa das orientações que tivemos, o fotógrafo disse que eu precisava “vomitar”, que minha narrativa era sobre isso. E é. Quanto mais tentam me calar, mais eu planejo e executo colocar para fora. Ninguém disse que seria fácil e, enfim, o fácil não tem graça.

Enquanto eu não volto a escrever sobre o silêncio (este texto mesmo foi gestado em silêncio), ouçam-no: ele está por todos os lados.

Escritora com livro publicado retorna à ativa

Volto ao site para escrever com regularidade depois de um período muito profícuo. O tempo, como meus bons leitores sabem, é um grande amigo. Volto com o melhor que eu poderia dar de mim: falar sobre livros.

Dizem que fui privilegiada, e devo ter sido mesmo, por mais que ser “privilegiada” hoje em dia seja quase um xingamento. Eu tive o privilégio de ter à disposição, em casa, livros. Além disso, o ato de ler, ao qual me filiei muito cedo, não era condenado no convívio da minha família.

A este privilégio sou eternamente grata e devedora de coisas muito importantes e boas da minha vida (outras um pouco mais complicadas, é verdade – né, personagens maravilhosos?). Já faz tempo que também sou consciente de que este meu acesso ao mundo dos livros nunca deveria ser um “privilégio”.

Além dos livros em casa, além de ter sido uma leitora voraz (a vontade de saber, descobrir o mundo, enfim), além do armário de livros que minha mãe mantinha em casa, além dos livros que eu encontrava na casa da minha avó, além das Barsas e Enciclopédias onde fiz minhas primeiras pesquisas na vida, eu tive acesso às bibliotecas. Eu sei que já falaram muito, poeticamente, sobre o paraíso que é uma biblioteca para os leitores, mas não só para pessoas como eu, que quando criança e adolescente ia todo dia na biblioteca da escola ou municipal, mas também para quem precisa, como as bibliotecas universitárias.

Farei esse parênteses, meus leitores mais assíduos sabem que falo bastante de mim: minha mãe tinha armários com livros em casa, antes numa salinha nos fundos da casa onde estudávamos e onde fui alfabetizada pela minha irmã, depois ela colocou estes armários na sala de TV. A passagem dos armários de livros da sala de estudos para a sala de TV fez muita diferença na minha vida. Eu lia desde antes de entrar na primeira série, lia os livros obrigatórios das aulas, lia enciclopédias para fazer trabalhos da escola. Mas, ter os livros ali na sala, à mão num espaço de “entretenimento e diversão” fez uma mudança radical na minha percepção. Com a TV ligada eu sentava no chão e começava a folhear, via os nomes conhecidos de reportagens em revistas e jornais (também sempre gostei muito de lê-los). Minha mãe nos levava todos os domingos à revistaria para comprar os jornais do dia e coleções de livros e revistas, conforme o gosto de cada filho. Mudar o entendimento do espaço que a leitura poderia ocupar na minha vida mudou a minha vida e o meu caráter.

Eu frequentei todas as bibliotecas das escolas e colégios e universidades onde estudei. No Fundamental e Médio era todo dia, inclusive no final do Médio a unidade onde eu estudava não tinha biblioteca (precisava “solicitar” da outra unidade, afe), mas era perto da biblioteca municipal. Eu ia lá todo dia. Na universidade, elas eram fascinantes, para aquela menina, se deparar com a biblioteca da UFSC foi um sonho. Também pela questão financeira, pegava a bibliografia das disciplinas e corria pegar os livros, cópias custavam muito. 

Foi com o tempo que construí minha modesta biblioteca. Esses dias me deu saudade do Zola, fui até ela e peguei um que ainda não li. Já não frequento mais bibliotecas como antes, é verdade, e esse é um erro.

As bibliotecas devem ser abertas, públicas, devem estar à mão de todos, devem proporcionar encontros por curiosidade e necessidade. Os livros mudam a gente. Livro nunca deveria ser objeto de decoração ou pretensão. Foi assim que tive o impulso a voltar ao site e escrever aos meus fiéis leitores. 

Ontem vi no Twitter o Lula contando que todos os empreendimentos do programa Minha Casa, Minha Vida terão bibliotecas. Confesso que há tempos algo não me emocionava tanto (me emocionar é difícil). Sei que o atual governo federal foi uma virada de chave que demos após um período tão obscuro (do qual não desejo falar) e que coisas boas já surgiram, investimento aqui e ali, baixa do dólar, IBAMA fiscalizando e tal. Mas, exigir bibliotecas no programa de habitação mais importante do país é uma linha que foi ultrapassada, é entendermos qual país queremos, é saber que acesso ao livro não é privilégio. Hoje, ouvi na rádio o evento sobre o programa habitacional e soube que firmaram uma parceria com a Academia Brasileira de Letras para a disponibilização dos livros nestas bibliotecas. É entender que há um projeto de país, que não é matar.

Ano passado eu publiquei e lancei meu primeiro livro, não é de ficção, mas também não foi escrito em linguagem academicista, fruto da minha dissertação de mestrado em História, na UDESC, e publicado por meio do Edital SIMDEC Apoio, de Joinville. Eu estudei em universidade pública e isso também mudou a minha vida e construiu o meu caráter, publicar a dissertação em formato de livro por edital público foi mais uma conquista na vida. Mais um sonho realizado. Meus leitores sabem que vivo de realizá-los.

Este livro está sendo doado à bibliotecas. Isso não constava no projeto inicial, é uma vontade minha, que surgiu ao vê-lo publicado. Já estão disponíveis unidades dele na Biblioteca Estadual do Paraná (onde tive uma relação incrível em formação), na UFPR, PUC-PR, Universidade Tuiuti, FAP – Faculdade de Artes do Paraná, UNIVILLE, UNIVALI (Itajaí), Biblioteca Darcy Ribeiro (Curitiba) e na Biblioteca Comunitária Lutador Dito, na AMORABI (Associação dos Amigos e Moradores do Itinga), onde fizemos o lançamento do livro. Este local foi escolhido pelas parcerias que tivemos em vários projetos e atividades, além de ter sido uma resposta às livrarias que viam o lançamento de outro ponto de vista, que não o que eu tenho para este projeto.

Inclusive, fiquei muito feliz de vê-lo como indicação da Biblioteca da UNIVILLE, no dia do Cinema Brasileiro. Sim, o livro fala de cinema, afinal, por que não juntar duas paixões, não é mesmo? 

Continuo a doação dos livros, aceito sugestões de bibliotecas e pedidos de doações (é só escrever pra mim ou aqui no “Contato” do site). Tenho já uma lista de bibliotecas às quais doarei, algumas das quais foram muito importantes na minha formação. Porque ler não pode ser um privilégio e agora não posso mais me descrever como uma escritora sem livros publicados (prometo que este não será o único).

Fazer cultura e arte neste país, ser uma trabalhadora da cultura, é o caminho que escolhi para a minha vida, sem nunca deixar o compromisso com a formação. E esse compromisso se traduz de várias formas, fomentar bibliotecas é um sentimento que eleva minha felicidade e demonstra que minhas escolhas têm um caminho do qual tenho profundo orgulho. 

Ah, para encerrar por hoje: frequentem bibliotecas. Valorizem as bibliotecas.  

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