Porque somos mulheres e somente nós sabemos o que é ser mulher
Foi uma sucessão de fatos cotidianos. Ouvia o rádio sobre a notícia da expulsão de um treinador de futebol que assediou o time de futebol feminino e pensei: deveria ser sempre assim. Nos casos de violência contra a mulher (das inúmeras formas que os homens nos agridem) a única regra possível seria expulsar, excluir o agressor. Como um pária mesmo. Esse texto foi gestado com acúmulos de fatos cotidianos presos na garganta. E antes que o acusem de ter algum teor vingativo, esclareço desde já, como disse recentemente: não é. O que clamamos é o mínimo de justiça.
O estopim para tudo que estava trancado foi uma amiga publicar nas redes sociais dela que havia feito o boletim de ocorrência e que aguardava a medida protetiva. Uma mulher linda, independente, de quarenta anos, vivida, experiente, feliz. Mais uma vítima. Na hora eu mandei uma mensagem pra ela em solidariedade. Revelei que há pouco tempo eu também havia sido vítima e que era belo ela sair por aí denunciando porque é essa vontade que dá – depois de sentirmos uma vergonha que não deveria existir. Trocamos algumas mensagens e aquilo me rondou por dias. Como ter sido vítima também vai me rondar o resto da minha vida. Bem que fez essa amiga em romper a esfera privada e levar a público a violência que ela sofreu. Eu não havia feito isso.
Em 2023, quando sofri ataques públicos, também violência de gênero, de pessoas públicas, tanto políticos quanto nobres cidadãos de Santa Catarina, e pelos quais até hoje sou vítima (será um capítulo a parte que será divulgado em outro momento), eu também vivi um relacionamento abusivo. De alguma forma, ter sido vítima da violência da extrema-direita e ser vítima de um homem comunista me fez ver o pior lado de tudo o que as pessoas discutem hoje. Mas, sou mulher, e sou mais forte que todos eles juntos. Vivi duas experiências inéditas, mas que de certa forma já haviam se anunciado antes.
Sofri perseguição política em ambiente de trabalho anteriormente. Vivi perseguição e violência de outros homens com quem me relacionei. Porém, nada com as proporções do que aquele ano me trouxe. Por isso, também, minhas ações foram outras. Pela primeira vez eu fiz um boletim de ocorrência contra os abusadores.
Vivo numa sociedade machista e Joinville é uma cidade que se orgulha de práticas ainda piores.
Eu não fui a primeira mulher vítima dos políticos que me atacaram – nem a última. Eu não fui a primeira mulher vítima do homem com quem eu me relacionei – temo que não sou a última.
E é muito sobre não ser a última que carrego a determinação de escrever este texto, mais de um ano depois.
As peças que se encaixam no quebra-cabeça criam imagens aterrorizantes
No último dia 8 de março, “Dia da Mulher”, me enviaram um post perguntando se eu sabia que uma conhecida colega professora de cinema da cidade estava no projeto de exibição de filmes do homem de quem fui vítima. Eu não sabia. Lamentei muito que uma mulher, que trabalha com jovens mulheres, esteja junto a ele neste projeto. O projeto, cabe dizer, na sua primeira versão, foi majoritariamente desenvolvido por mim, eu mesma fiz a inscrição por ele, no meu computador onde ele deixou salvo os dados de login. Sim, o abuso dele foi no campo pessoal e profissional. De perfil extremamente manipulador, com uma frustração muito grande por não se ver realizado na atuação na área do cinema, ele se aproximou de mim por isso, por também tirar vantagem do meu conhecimento e trabalho. Pelo menos fico feliz que hoje o espaço cultural no Aventureiro tem uma tela de projeção de cinema, item que eu havia colocado originalmente no projeto, para ser doado ao espaço.
Quando haviam, anteriormente, me procurado sobre este projeto que exibe filmes catarinenses eu fui objetiva e contei sobre quem se tratava. Recebi apoio e solidariedade de algumas pessoas que preencheram essas lacunas que a violência nos deixa. Inclusive estudantes de cinema, que em outras situações haviam sofrido violência, souberam do caso e me apoiaram. Eu sentia, e ainda sinto, uma necessidade muito grande de alertá-las para manterem distância daquele homem. Eu sei que não serei a última vítima.
Dizer que anos depois do Me Too, de todas as denúncias e processos do Weinstein, estaríamos nós, aqui em Joinville, tratando de um abusador na área do cinema. De vez em quando me pego pensando nisso. Mas, tudo aquilo serviu para que possamos denunciar, possamos ter solidariedade umas com as outras, possamos apontar os agressores, possamos identificar o perfil do “predador”. Em alguns anos de atuação no cinema de Joinville eu posso elencar casos de assédio que soube que outras mulheres sofreram e posso contar alguns para vocês.
Trabalhei com um ex-aluno que também foi um abusador. Do perfil incel, afastava todas as pessoas que tentavam manter contato comigo, também se beneficiou do trabalho que eu desenvolvia, do meu conhecimento, e inclusive aprovou um projeto baseado em um conto meu, o Açúcar (na sua primeira versão). Após a série de violências que eu sofri e quando tentei me libertar da situação abusiva na qual me encontrava, cortei totalmente as relações e ele teve que cancelar a produção. Eu disse que eu não podia deixar a Elisângela (protagonista do Açúcar) nas mãos dele e foi uma das coisas mais acertadas que fiz na vida. Açúcar veio à vida por insistência do outro abusador, que sabia o que havia acontecido com esse ex-aluno. E, apesar das violências de ambos, eu e o Açúcar sobrevivemos a eles.
Teve um outro ex-aluno, que protagonizou violências dentro de sala de aula, repudiado por colegas e professoras, que fez questão de dizer que ninguém queria trabalhar comigo. Ele mesmo se contradisse tempos depois. Teve também um outro homem, interesseiro, o tipo amigão progressista, sabe? Mas assim que entrou num projeto como assistente de uma mulher, não se conformou. Enfim, não são poucos os casos.
Violência doméstica não é estatística
Eu não sou estatística. Minha amiga não é estatística. As mulheres que apoiam e tentam fazer que não vêem nossos algozes nos dizem com todas as letras que nossa dor não significa nada.
Eu tive motivos, em outras oportunidades, de fazer boletim de ocorrência contra quem me perseguiu após o fim de um relacionamento (mudei de endereço, mudei de número de telefone, e só depois de muito tempo ele “sumiu”, mas até hoje a experiência da perseguição convive comigo). E ouvi tantos relatos, vi tantas notícias, que “naturalizei” homens perseguirem mulheres que terminaram relacionamentos! Não faz tempo esse mesmo solicitou me seguir no Instagram, pela milésima vez. Depois de vinte anos! Eu não fiz boletim de ocorrência quando um outro ex tentou “retomar” contato dois anos depois, quando eu descobri que ele estava mantendo contato com uma pessoa da minha família manipulando a situação como se um “nós” ainda existisse e compareceu a um evento atrás de mim.
Mas, eu fiz quando este homem, após meses de tortura, manipulação, violência verbal e psicológica, simulou um suicídio para me fazer ir atrás dele, mandando fotos, mensagens, fazendo ligações com ameaças, chantagens e manipulações psicológicas e emocionais. Nós não estávamos mais juntos havia meses. O relacionamento só existia na cabeça dele. Até aquele dia que eu disse isso, com todas as letras, e ele começou uma nova etapa no seu jogo de violências. Eu sabia que ele faria aquilo, havia compartilhado esse sentimento com pessoas próximas. Eu não sabia como terminar sem que ele não fizesse isso, visto que já havia ameaçado e deixado bem claro que ele era capaz. Mas, também isso era parte da manipulação.
Sim, ele simulou. A frieza com a qual ele manteve as mensagens manipuladoras, às quais eu só respondi quando decidi pôr um fim naquilo: entrei em contato com a família dele para avisar. Respondi às mensagens dele simulando que eu faria o que ele queria, para conseguir o endereço onde ele estava e passar a informação para a família dele. Eles que resolvessem. Contudo, após eu conseguir o endereço e enviar para a família, eles resolveram que não era nada grave e não iriam naquela mesma noite. Eu bloqueei todas as contas e contato com ele. No dia seguinte, um hospital de Curitiba (para onde ele havia fugido) me liga, pois ele tinha dado entrada lá e o único contato salvo no telefone (que não estava com tela de bloqueio!) era o meu. Sabe como ele foi parar no hospital? Quando eu disse que iria até ele, para ele me passar o endereço onde ele estava, ele saiu do hotel para comprar bebida! Essa foi a mensagem dele, “coloca o carro na garagem, ap XX, que eu vou sair pra comprar bebida pra gente”.
Ainda tive a decência de enviar o contato do hospital para a família dele, e mantiveram contato até que, ainda no hospital, ele continuou com ameaças, enviou e-mails, invadiu o perfil da Cinemateca de Joinville no Instagram para me ameaçar e agredir. Quando insisti com a família que eles precisavam afastá-lo de mim, senão eu faria o boletim de ocorrência, recebi com ironia um “então faça!”. E eu fiz. Em poucos dias saiu a medida protetiva, e mesmo neste período ele continuou com a perseguição e ameaças. Felizmente, durante os seis meses da medida protetiva, ele não fez mais nada diretamente. Contudo, tentou usar o projeto de exibição de filmes para me atingir de alguma forma – sem sucesso. Todos que me procuraram e souberam dos fatos foram muito compreensivos.
Quão baixo um homem pode chegar para simular uma tentativa de sucídio para manipular uma mulher a “voltar para ele”? Mal saiu do hospital, publicou um textão no Facebook relatando a experiência colocando-se como vítima. Ninguém brinca com suicídio. Ninguém.
Ao contrário do que se pensa, a medida protetiva não é nenhum alívio. Pra mim, como contei à amiga e às pessoas ao meu redor, era um peso. Vivi seis meses tensa, com aquele papel na bolsa, celular sempre carregado para caso precisasse apertar o botão do pânico. Você vive dias atrozes.
Depois de conversar com a minha amiga, eu revisitei a conversa que tive com ele pelo Whatsapp. Fui com o coração aberto e fiquei feliz de ver que a Fahya nunca deixou de ser a Fahya naquelas semanas infernais. Enquanto atacada publicamente pela extrema-direita, na vida íntima lidava com uma pessoa asquerosa. Ele sentia algum tipo de prazer em me cutucar onde mais doía, inclusive com os ataques públicos. Ele também invejava tudo que eu tinha e quem eu era, na mesma época me candidatei ao Conselho Estadual de Cultura e foi mais um momento dele fazer arruaça. Inconformado por não me ver ceder aos ataques, inventou que sairia candidato ao Conselho Municipal de Cultura.
Todas as características do manipulador. Do agressor mais vil, que usa tudo que conhece da pessoa para atacá-la e tentar subjugá-la. Ele não conseguiu.
Um covarde, como todos esses que dentro das casas e nas tribunas das câmaras que atacam violentamente as mulheres. Eles não suportam nos ver vivas.
Eles estão soltos e praticando seus crimes
E foi ontem, ao ver os vídeos da denúncia da nossa vereadora aos ataques que as mulheres na Câmara de Vereadores têm sistematicamente sofrido (há anos!), que eu entendi a emergência de publicar este texto. Os abusadores devem ser expostos. Quem dera houvesse uma lei que banisse um abusador de qualquer espaço público, de qualquer setor, de qualquer instituição. Nós viveríamos menos acuadas.
Se eu espero que o agressor da Câmara de Vereadores seja punido? Há algum tempo eu espero por isso, mas a hipocrisia e covardia de muitos vão protegê-lo.
Se eu espero que mais e mais pessoas saibam quem é o agressor que faz projetos culturais no cinema da cidade? Claro.
Relembro sempre o apoio que recebi quando falei mais abertamente sobre o ocorrido. Lembro, também, de quem viu o story e em seguida veio perguntar quem era. Eu considerava muito essa pessoa, no pessoal e no profissional, mas tudo caiu por terra: ela não veio se solidarizar, era só buscava a fofoca. E era uma mulher. Por isso que esse relato não é sobre vingança. É sobre justiça e sororidade.
Pra colega professora que trabalha com ele, ou pra qualquer um de vocês que sabe de quem eu estou falando e convive com ele, peça para que ele devolva o meu livro que ele pegou “emprestado” e não me devolveu. O livro tem anotações de afeto, por isso é a única coisa que não resolvi de tudo que aconteceu. O livro é meu. Sim, ele também usou o livro para tentar me forçar a “encontrá-lo”, ao que eu não cedi. Então, se alguém encontrar com ele, pode dizer pra me devolver, pode pegar e me devolver ou dizer pra ele mandar pelo correio. Sem cartas, nem bilhetes, nem nada. Confio em vocês.
Por fim, trago esse relato como mais um alerta: nem sempre você sabe de qual lado político o agressor está. Violência contra as mulheres não é prerrogativa da extrema-direita. Então, para as pessoas de Joinville do campo progressista, vejam bem suas atitudes, repensem quem está ao lado de vocês na luta. O homem de quem estou falando frequenta esses ambientes, participa dos eventos, arregimentou pessoas da esquerda (inclusive mulheres!) para o projeto. Até quando vocês vão fazer que não veem?
Lembro bem de um comentário dele, quando eu me declarava feminista. Ele veio com aquele papinho do homem misógino da esquerda que a “causa” está se perdendo com essas lutas minoritárias, de gênero, de raça e tal, que devemos focar somente na “luta de classes”. Eu já conhecia o discurso, é claro, e mais uma vez ele não conseguiu me subjugar nem dizer como eu deveria agir ou pensar. Homens progressistas, revejam suas atitudes. Revejam como vocês passam pano para os seus colegas abusadores. Não esperem que eu fique ao lado de vocês na luta.
Para todas as mulheres que leram até aqui: que sirva de alerta, de força, de reflexão. Por mais mulheres que tragam à tona suas feridas, suas experiências, que relatem quais violências sofreram e como foram identificando os agressores, quais atitudes nos deram caminhos a seguir. A Fahya de vinte anos atrás precisava muito disso e não teve. As mulheres sempre foram silenciadas. Não podemos mais.
Para as vereadoras da cidade que continuam a sofrer, pela vereadora que sofreu violências (e ninguém saiu em defesa dela!) no mandato anterior e que foi solidária comigo, eu e ela fomos atacadas naquele plenário: estamos do mesmo lado, contra todos os agressores. Por mais mulheres na política, e enquanto isso ainda veremos muito macho tendo ataque de pelanca vomitando agressões, ignorância, mentiras e ódio. Ódio. Eles nos odeiam porque somos mulheres.
Sejamos, todos os dias, cada vez mais mulheres. Mulheres que se mantém firmes, felizes e seguem em frente. Que sejamos exemplos umas para as outras. Enquanto eles espumam o mal que trazem no coração. Porque algumas de nós não viveram para ser exemplo.