Fazer cinema é um ato de coragem

Fazer cinema é um ato de coragem. De fato, para produzir cinema, ainda mais no Brasil, é preciso coragem. Em 2023 eu ouvi várias vezes sobre como fui corajosa, ao relatar e enfrentar os ataques que sofri. Ao acompanhar o Congresso Brasileiro de Cinema, pela internet, ouvi alguém (não me recordo quem) dizer que é preciso coragem para fazer cinema no Brasil. E esta é minha última reflexão do ano.

Não é só preciso coragem no momento de decidir pela profissão de trabalhar no audiovisual. É preciso coragem em cada momento, em todas as demais etapas que se seguirão. Porém, ressalto que é preciso coragem para fazer cinema com o coração. O cinema brasileiro independente não tem final feliz – isso é lá para Hollywood e sua indústria. 

Quando vejo esses projetos e filmes com tanto final feliz, ignorando deliberadamente que somos um país racista, misógino, LGBTfóbico, machista, elitista, eu percebo o quanto de coragem faltou aos seus realizadores. Encher as nossas telas de finais felizes e adocicar a realidade é um golpe nas nossas vidas. Enquanto o cinema produzido por quem quer alavancar sua própria carreira, por quem (muitas vezes) só quer acesso às verbas, por quem quer fazer um filme para “ganhar prêmio em festival” for dominante, a coragem passou longe. Ainda mais de pessoas e sobre histórias com personagens que, na vida real, são as grandes vítimas de um sistema que oprime, violenta e mata. Para ser fiel aos sentimentos e às vítimas, não existe a possibilidade de final feliz.

Produzir o Gritos do Sul foi, sim, um ato de coragem. Denunciar tudo o que aconteceu (e ainda acontece) é um ato de coragem. Porque eu sei que não fui nem serei a única a passar por essa perseguição. Toda a perseguição política e misógina deve ser denunciada para que os demais saibam se defender também.

Atualmente, é preciso muita coragem para trabalhar com cultura, para não ser aquele ou aquela que produz brilho e purpurina, que respalda as narrativas dominantes, que põe sorriso na cara de personagem que está estraçalhado por dentro. Porque temos uma situação na qual o acesso às políticas públicas passa por tantos obstáculos que o valor artístico do projeto importa quase nada diante das mil etapas burocráticas e sociais que ele precisa cumprir. Você é trabalhador da cultura, vai produzir um filme, você não pode ser co-responsabilizado pela falta de acesso aos bens culturais, culpa de décadas de descaso do poder público. Os projetos culturais tornam-se peças legítimas de ficção, em outro sentido, pois disseminam ilusões – como dizem, o papel aceita tudo. Mas, o objetivo é conquistar a verba – não importa quantas mentiras sejam ditas nas inscrições.

Sabemos que em outubro do ano passado uma batalha foi conquistada, e isso trouxe o início da reconstrução. Porém, nada está ganho. Não só a nível federal, mas estadual e municipal, em Santa Catarina principalmente, a batalha é diária. Como eu disse em audiência pública na Câmara de Vereadores esse ano, não há como evitar: Joinville e Santa Catarina pertencem ao Brasil e devem respeitar o que se faz e legisla a nível federal. Prefeitos, vereadores, deputados e governadores podem mirar a Cultura como inimiga: seus gritos não podem ser ouvidos nem perpetrados em ações que vão de encontro ao que está instituído nacionalmente.

Ressalto que dentro do próprio setor da Cultura, e em especial do Audiovisual, há a reprodução da nossa sociedade: machismo, misoginia, racismo, LGBTfobia, elitismo. O que eu passei esse ano foi agravado por isso, pela misoginia e pelo machismo que alguns que se dizem profissionais do Audiovisual perpetuaram. Desde que comecei a atuar no Audiovisual em Joinville o machismo e a misoginia é flagrante, além da presença de homens que têm histórico de violência contra a mulher no nosso meio, em Joinville e em Santa Catarina, no Setor Audiovisual. 

Para quem disse que eu fui corajosa: vocês não sabem da missa a metade! Tive, tenho e continuarei tendo coragem para lutar contra essa gente, dentro e fora do setor. Vou continuar realizando filmes que, sem finais felizes, coloquem o dedo na ferida de uma sociedade doente e criminosa. Pra quem achou que eu estava derrotada, fica o recado. É preciso coragem para produzir cinema, cinema com o coração, com vontade, com tesão e com voz. Para os covardes eu deixo os finais felizes, o que é “esteticamente bonito”, a tentativa de roubar o lugar de fala das minorias (o que teve de homem fazendo filme sobre violência contra a mulher nos últimos anos na região!), a purpurina e as cenas coreografadas. Ah, para os covardes resta o fascismo também, que eles admiram (secretamente ou não) e que reproduzem nos seus discursos.

Além de realizar filmes, permaneço atuante publicamente. Foi uma decisão muito difícil de tomar, mas que conta com o apoio de muitas pessoas. Eu não estou sozinha. Como dizem, é nas horas difíceis que a gente reconhece quem é quem. Eu sei muito bem quem esteve ao meu lado na trincheira e quem jogou bombas, inclusive enquanto dizia que estava ao meu lado. Sei cada pessoa que se omitiu. Sei bem quem só se aproxima de mim quando acha que vai ter lucro. Sei bem quem tentou me usar e ao meu conhecimento. A cada um, o que lhe cabe. 2023 não acabará em 31 de dezembro de 2023, porque os nossos atos têm consequências.

Por tudo isso e mais um pouco, não me admira que a Prefeitura de Joinville não tenha sequer lançado os editais do SIMDEC 2023. Falta menos de 15 dias para encerrarmos o ano! Vejam se tem alguém cobrando, se o setor cultura está unido fazendo pressão nas redes sociais, se o Conselho Municipal de Políticas Culturais se manifestou! NADA. Nem na última década vimos um descaso e falta total de compromisso com o setor cultural como em 2023, quando os editais de 2022 não foram pagos e os de 2023 sequer foram lançados.

Semanas atrás fui convidada da rádio CBN Diário de Joinville para falar sobre o atraso no pagamento do Edital SIMDEC 2022. Relatei que 4 milhões para o Natal a Secretaria de Cultura e Turismo tinha, mas para pagar o resultado homologado em setembro, nada. Aí uma repórter do jornal O Município me procurou e começou um levantamento sobre os projetos. Na reunião do Conselho o secretário me respondeu dizendo que seriam pagos até a outra semana. A repórter do O Município não respondeu mais se a reportagem seria publicada. Um outro repórter perguntou à prefeitura e me repassou que, dos 57 projetos aprovados, 46 haviam sido pagos (dados de 11/12/2023) e seis estavam em tramitação. Os projetos que têm a minha participação sequer receberam o Termo de Compromisso Cultural para assinar. Agora, deixo para vocês julgarem se ser corajosa e expor toda essa podridão tem alguma vantagem. Assim entendemos bem todos os meus colegas do setor cultural que se mantém em silêncio: pelo menos estão com o dinheiro em conta para realizar os projetos, não?

A luta é coletiva. Se não fosse eu dar a cara a tapa e correr atrás da publicização do atraso no pagamento do edital, ninguém teria recebido. Podem me agradecer, colegas. Agora, sou eu que, exposta, pago por isso. Cada pessoa que eu contratar para os projetos, lembre bem da luta que é realizá-los. Do quanto a gente precisa dar a cara, cobrar, lutar, contratar advogado, denunciar na imprensa (quando o poder não consegue calá-la). Vejo tanta gente que é só ativista de rede social, mas nessas horas nem esses lutam! Poxa, às vezes é só compartilhar um post, né? Se fosse sobre algo acontecendo lá do outro lado do mundo, vocês correriam compartilhar, eu sei.

É preciso muita coragem e, por vezes, é sozinha mesmo que a gente precisa lutar. Quando a gente ganha a batalha, as pessoas se aproximam. Agora, se vocês acham que essa luta não é de vocês… quando a água bater na bunda, podem me procurar.

Não me falta coragem para ter minha voz ouvida. E faço isso muito para que outros se sintam incentivados a ter coragem. Não sou a diva da discórdia, não sou puxa saco, não sou diplomática nem covarde. Há algo no senso de Justiça que me atrai profundamente. Se mais perseguição e retaliação vier, é a Justiça que vai se encarregar.

Por um 2024 de muita coragem para produzir cinema, mais e melhor.

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