Diante das atrocidades do atual governo, foi incentivada intuitivamente uma campanha para mostrar aos outros (àqueles que acham que “sustentam vagabundo com seu dinheiro”) o que a universidade pública fez por nós. Por nós, porque mesmo que ela tenha feito por mim, eu replico, todos os dias, os efeitos dela na Cultura, no Conhecimento e na Educação. E isso é fundamental para o país. O governo Bolsonaro é inimigo do nosso futuro. Estava conversando com um estrangeiro que mora aqui e ele disse não entender a atual política, chamando-a de “política da destruição”. E é isso mesmo, uma política que visa destruir o Meio Ambiente, a Cultura e a Educação é uma política que aniquila o Futuro. O Brasil sempre foi o “país do futuro”, desde minha infância ouço isso; de um futuro que nunca chegou. Agora, até este sonho querem nos tirar.
Eu que nem gosto de sair por aí falando da minha vida darei o testemunho do que o ensino fez por mim. Porque tem pai e mãe apoiando este imbecil eleito sem saber que, se não fosse a universidade pública, seus filhos não teriam professores de qualidade em sala de aula. É simples assim.
Estudei o Fundamental e o Médio em escola particular, uma opção dos meus pais em busca da melhor educação que eles poderiam nos dar. O Médio só consegui terminar com bolsa. Fiz curso de Inglês dos seis aos dezessete, fiz curso de Espanhol. Minha mãe sempre repetia o que meu avô dizia: a educação é a melhor herança que eu posso deixar pra vocês. E eles deixaram mesmo.
Aos dezoito anos saí de Joinville, sozinha, para ir fazer graduação em Florianópolis. Levei comigo uma mala com roupas e uma pequena caixa com livros. Fui fazer Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina e Cinema e Vídeo na UNISUL, esta particular. Foi a minha escolha. Meus pais haviam cursado ensino superior, meus irmãos também, todos apenas em faculdades particulares devido à dificuldade de acesso, histórica, ao ensino superior público. Meus avós não tiveram esta oportunidade. Não foi fácil, eu garanto. Os gastos, os perrengues, as dificuldades de viver sozinha longe de casa. Mas, me sentia feliz e corajosa, pois vi muitos, inúmeros colegas até bem mais estudiosos que eu, ficarem pelo caminho. Ouvi de colegas do ensino médio, que o pai preferia que ele/a fizesse faculdade em Joinville mesmo, nem tentasse o vestibular da Federal, porque a mensalidade seria o valor dos gastos em outra cidade. Uma idéia péssima, eu garanto.
Em cinco anos eu me formei nas duas. Mera coincidência, a formatura das duas foi exatamente no mesmo dia. Optei pela cerimônia da Federal, porque até nisso uma universidade federal faz diferença – eles não cobram pelo local, etc.. Foram cinco anos intensos, fui bolsista do PET (Programa de Ensino Tutorial), do governo federal, do curso de Letras da UFSC. Uma das melhores experiências da vida, pois vivíamos envolvidos em atividades de pesquisa, ensino e extensão, além de um convívio intelectual enriquecedor. Fui bolsista de iniciação científica, na UNISUL, com verba federal, na área do Cinema. Participei de eventos na universidade, comi no bandeijão pagando R$1,50, paguei passe estudante (em 2004 o valor do passe era R$1,50 e pagávamos metade), conheci gente de todo canto do país e do mundo, tive acesso a uma biblioteca maravilhosa. Vivi intensamente.
Depois eu fiz mestrado em História na Universidade do Estado de Santa Catarina, hoje também ameaçada de cortes. Ampliei ainda mais meus estudos e visão de mundo. No primeiro ano do curso, trabalhei em sala de aula como professora substituta de Filosofia na rede estadual em uma cidade pequena, com menos de 30 mil habitantes, que sempre sofreu com falta de professores. Ia de uma cidade para outra, toda semana. No segundo ano recebi bolsa Capes, até defender minha dissertação de mestrado na data, sem prorrogação nenhuma. Nestes dois anos de mestrado participei de vários eventos científicos da área, apresentei trabalhos, publiquei textos e artigos. Uma vez tive dinheiro de verba para viajar, pela universidade, mas em todos os outros eventos paguei com o valor da bolsa. Bolsa de R$1.500 (o valor hoje continua o mesmo), para pagar tudo (aluguel + transporte + comida + etc. etc.), e dedicar-me exclusivamente à pesquisa, à leitura, ao aprimoramento intelectual. E não foi pouco, eu garanto.
Depois do mestrado fui professora de Filosofia na rede estadual, no Ensino Médio, numa cidade da grande Fpolis. Em todas essas escolas eu vivi o dia a dia de alunos que são abandonados pela sociedade. Eu vivi o dia a dia de profissionais que dão o sangue pela Educação, conheci pessoas maravilhosas, admiráveis em caráter e empenho.
Há alguns anos sou professora da rede particular, professora de Filosofia do sexto ano do Fundamental ao terceiro ano do Ensino Médio. E há dois anos sou professora de graduação em Cinema e Audiovisual. É o trajeto de uma vida toda. É estar em sala de aula, todo dia, defendendo a Educação. Defendendo a formação que eu não pude ter em Joinville, pois aqui faltam professores de Filosofia e só tem, sei lá, eu e mais um graduados em Cinema – em toda uma cidade de seus quinhentos mil habitantes. Porque, acreditem, há um mundo além de ser chão de fábrica e trabalhar em prestação de serviços – sem desmerecê-los, mas não podemos condenar uma juventude inteira de uma cidade a essas ocupações.
Meu sonho era ter uma escola de Cinema em Joinville, com filiais em Lages e Criciúma, por exemplo, para descentralizar o conhecimento e o acesso. Sou defensora da UFSC em Joinville (“em Joinville”, não na BR) com cursos de Licenciaturas de todas as áreas, esta sempre foi a minha bandeira. Eu nunca quis ser professora – achava chato, repetitivo, entediante. Até que descobri como é fazer algo por tanta gente (hoje tenho mais de trezentos alunos) e ver como isso, de fato, muda o mundo. Como é bom deixá-los em dúvida, como é bom vê-los questionarem, como é bom vê-los crescerem intelectualmente. Eu mudo o mundo e construo o futuro, todos os dias, dentro da sala de aula.
Hoje sou orientadora de Iniciação Científica, na graduação, na mesma área do mestrado e da Iniciação Científica que fiz lá na graduação. São anos desenvolvendo trabalhos, estudos e crescendo para poder trabalhar junto com alunos e novos profissionais. E minha formação não foi “paga” por esses aí que desmerecem e achincalham a universidade pública, foi paga com a vida inteira correta e trabalhadora dos meus pais. E, hoje, eu posso dizer com orgulho o quanto devolvo para a sociedade o investimento que fiz na minha formação. Por isso, senti como ofensa pessoal o corte aleatório de bolsas dos programas de pós-graduação. Vi ontem na TV pesquisadores sendo estrevistados, tendo que mostrar a importância dos seus estudos para o país (pré-sal, vacina da zika) e que estão à mercê de parar por questão de não conseguir se manter sem a verba das bolsas. Ninguém fica rico “ganhando” bolsa de pós, ok? E, também, porque sei que o conhecimento não pode ficar parado, quero ver no horizonte do meu futuro a possibilidade de continuar os estudos em universidade pública.
Ouvi de uma educadora de respeito, ontem, “Todos deveriam aderir, pois afetará a todos” se referindo às escolas e universidades particulares, estaduais, etc. diante da greve que começa hoje, dia 15 de maio. Concordo com ela, e digo mais: toda a sociedade deveria aderir à greve da Educação porque esta é uma luta de todo um país. É uma luta de todos nós contra esse disparate inconsequente que estão perpetrando. História como a minha e a de milhares estão em jogo diante da alucinação de cortar verba da Educação.
Mais alucinação ainda foi entender que o governo “contingenciou” a verba da Educação para ameaçar a população a apoiar a reforma da Previdência. Ouvi do ministro que não há corte de verba, mas se houver apoio à reforma, então os valores serão liberados normalmente. É ameaça, é chantagem, estamos reféns de um governo de incompetentes que, diante de uma população que não quer perder mais e mais – enquanto eles não abrem mão de nada – diz “não”. São uns canalhas. É canalhice dizer que não haverá verba para pagar as aposentadorias, dentro de meses – por que não cortar os salários de deputados e senadores, e suas verbas de gabinete, por seis meses? (eles não trabalhariam por amor à pátria?).
A partir de hoje, declaro-me em greve. Mesmo estando em sala de aula, pois trabalho para a iniciativa privada e se eu faltar sofrerei as consequências – até o momento que todos, mesmo estas instituições, seus alunos e funcionários, tomem consciência que a luta é necessária e fundamental ao Brasil -, estarei em situação de greve. Estou em greve pelos valores e atitudes de toda uma vida.
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