Pobre humilhado nas novelas. E pra ele ser feliz precisa ser rico!

 

 

Esses dias sentei no sofá e assisti algumas partes das novelas que passam atualmente.

 

Fiquei particularmente assustada com a das 21h quando uma personagem maltratava ferozmente uma empregada doméstica e ainda somava o comentário “vou colocar no tronco pra ver se aprende”, citando literalmente o castigo físico que era dado aos escravos negros.

 

A tal personagem era rica, dessas ricas riquíssimas que proliferam nas novelas brasileiras. Já fui noveleira. Mas confesso que perdi o interesse. Fui fã de novelas “fantásticas” como Fera Ferida, Que Rei sou eu?, Pedra sobre Pedra, e algumas outras.

 

Hoje, por exemplo, uma que escapou um pouco a esse excesso “ricosXpobres-num-mundo-urbano-contemporâneo-porque-daí-pode-fazer-um-monte-de-merchan” foi a Cordel Encantado. Eu gostava muito daquelas novelas que eram em cidades fictícias do nordeste. Cordel Encantado soube levar a fantasia, o popular, para uma novela que primou pela qualidade da fotografia e da direção de arte. Fora isso, algumas atuações foram muito boas do elenco jovem da Globo, coisa rara de se ver (mas algum dia a Regina Duarte não vai mais estar aí para ser protagonista, nem o Antônio Fagundes).

 

Assisti um capítulo aqui, outro ali, acompanhei alguns da Cordel Encantado com a minha mãe e me peguei pensando duas coisas: a primeira foi sobre as novelas sempre mostrarem que só a riqueza permite a felicidade (e como o povo “vê” isso?); a segunda foi justamente sobre o tratamento dado aos “empregados” nas novelas.

 

Reparem bem nas atuais novelas e lembrem daquelas que vocês mais gostaram. Vou dar exemplos: Na novela das 19h, Morde e Assopra, Guilherme, personagem de Klebber Machado (acho que é isso), filho da personagem da Cássia Kiss, sempre renegou a mãe e a sua miséria (enganou a mãe dizendo que estudava medicina na capital só para manter-se com o dinheiro suado dela em festas e farras); ao final da novela ressurge seu pai e ele é rico, assim Guilherme fica rico – casa com a menina rica (que no meio da novela descobriu que era filha adotiva e os pais biológicos eram pobres) e vive feliz para sempre. Em Cordel Encantado, Jesuíno, para poder ficar com Açucena, teve que descobrir que, na verdade, apesar de filho de cangaceiro, era descendente do rei de Seráfia – assim, sendo princípe (leia-se rico), pôde, enfim, casar-se com a princesa. Na atual das 21h, a Griselda é pobre, feia, largada, trabalhadora. Qual será sua reviravolta na qual encontrará o amor, a felicidade? Ganhará o prêmio da mega-sena.

 

Essa teoria não é “nova” nas novelas, mas confesso que me incomoda. Porque sabemos, afinal, que o povo assiste, eu assisto, você assiste, e que isso mexe com o imaginário popular. Estão me vendendo que só posso ser feliz e encontrar o amor se minha conta bancária estiver em alta? É isso? Voltamos, então, àquele tempo que o povo pobre, sofrido, miserável não podia se ver nas telas? Me pergunto isso pensando já no cinema também, afinal, colocar a miséria, a pobreza, nas telas – nas pequenas e nas grandes – não foi fácil! É um retrocesso?

 

Em contrapartida, sempre há e haverá o ricos X pobres. Há algum tempo o núcleo pobre não se contenta mais em ser só os empregados e afins, mas dialogam entre protagonistas e antagonistas. Contudo, percebe-se sempre a mocinha pobre que se apaixona pelo moço rico – ou ao contrário – e que a felicidade é a família rica aceitar o núcleo pobre da novela. Quantas moças pobres andam por aí acreditando nisso? Eu mesma conheço algumas. Você também deve conhecer. E no meio desse caminho, muito sofrimento, muitas barrigas grávidas em tentativas de golpes e até coisas piores.

 

Então não são mais núcleos ricos entre os protagonistas e antagonistas, mas há um núcleo que às vezes é a ligação de um núcleo com o outro que é o dos secundários do elenco e que fazem secretárias, diaristas, balconistas, empregados, babás e etc.. Aí é que entra o segundo ponto. Não foi só naquele momento de uma megera podre de rica destratar de forma vil uma empregada ameaçando com o “tronco”. Há vários momentos em todas elas nos quais homens e mulheres são humilhados, destratados e desrespeitados pela sua condição de pobre e trabalhador.

 

Não penso que isso é apenas de mal gosto. Essa humilhação presente nas cenas entre ricos e seus empregados é o dia a dia de muitos (muitos mesmo) trabalhadores do Brasil afora, esses que são ainda a maior parte da audiência das novelas. É ultrajante e um desaforo cenas assim serem mostradas sem nenhum remorso, sem nenhuma aparente expiação. Pois, não vi discussão nenhuma por aí sobre essa cena e suas semelhantes, nem vejo que o “patrão” que humilha tem alguma punição severa dentro do universo da novela. Não vejo algum desses empregados ir à delegacia prestar queixa do seu patrão. Ah! Mas isso não acontece na vida real também, porque eles têm medo de perder o emprego. Seria, então, a novela uma imitação da vida real? (porém, na primeira questão que eu comentei, a novela não imita a vida)

 

Como ficamos? Assistindo sentados a uma agressão ao próprio público fiel das novelas? Eu me senti ultrajada. Não tenho empregada. Minha mãe tem e a trata muito bem, como trata a todos.

Eu pensei nesse segundo ponto porque vi nas últimas semanas frases desrespeitosas sobre empregadas domésticas no Twitter e em comentários no meio de conversas. Um deles foi a respeito do “uni-neurônio” que uma delas teria. Uau… sério, pensei em denunciar a criatura por dizer uma coisa dessas. Fazer comentários sobre o trabalho da pessoa é uma coisa. Agora, sobre qualquer outra questão é perigoso. E sabe o que eu pensei? Se a pessoa que faz um comentário desrespeitoso e ofensivo da sua empregada é tão boa, tão inteligente, tão superior, por que ela não tem capacidade de limpar a própria sujeira? Essa é minha opinião sobre pessoas que têm empregadas, não têm capacidade de limpar a própria sujeira. Uma pessoa assim, a meu ver, está alguns níveis abaixo de muitos seres humanos. Inclusive daqueles que “ganham a vida honestamente”. Há exceções para pessoas que possuem empregados por questões de saúde e etc..

 

Tenho repulsa por personagens como a da Cristiane Torloni nessa atual novela. É tão falso, tão superficial, tão nojento e tão infeliz que não me motiva nada assistir.

 

Infelizmente não vejo mais novelas como quando era pequena e ficava as tardes em frente à TV com minha avó. E hoje é tão grande a necessidade em fazer novelas que se vendam e que vendam (carros, produtos de beleza, roupas, esmaltes, sapatos, etc.) que aquelas novelas fantásticas não têm mais tanto espaço. (repararam na calça jeans de vanguarda que o Jesuíno usava em Cordel Encantado? então, é preciso muita criatividade ou licença poética para tal)

 

Conhecemos o poder da TV sobre o comportamento das pessoas. E é esse ponto que me preocupa e assusta quando vendem essa agressão, essa fissura entre ricos e pobres, essa humilhação que compramos como comum, correta, cotidiana. Não pode ser assim. Mas quem é humilhado todo dia no trabalho aceita e percebe uma novela “realista” na humilhação da perua rica.

 

Não deveria ser assim.

 

 

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