Cena 1: Garrafa de vinho na pia. Pedaços de cortiça da rolha espalhados. Um saca rolha ao lado. Olhos fechados, mãos apoiadas na beirada da pia. Toca Nelson Gonçalves. A vela acesa.
E eu ali pensava nas questões de gênero: nunca senti tanto o machismo quanto naquela hora. Garrafas feitas para só serem abertas por homens. E eu não encontrava de jeito nenhum o meu saca rolha velho de guerra. Talvez tenha se perdido em alguma mudança. Talvez não. Ele era meu companheiro, sempre bebi sozinha e conseguia abrir as garrafas. E ali era a imagem do fracaso; mas fracasso só diante da garrafa. Enfim, eu não preciso do álcool. Enfim, eu não preciso de nada, nem de ninguém. E as coisas se esclarecem. Não há mais o “mudanças vão acontecer”; elas já aconteceram. Sim, já. E eu sou corajosa o suficiente, como sempre fui, para aceitá-las, acatá-las e colocá-las em prática. Prisões, censuras, cobranças só de quem não me conhece; e, enfim, ninguém realmente me conhece. Fácil compreender. No entanto, não há tempo pra perder com isso. E resolvi ouvir um CD para lembrar conquistas inéditas do passado. Pensei até em escrever sobre o passado, um passado bom, doce, vívido, vivido. O que me interessa e importa, hoje, é a loucura. E no amor não há loucura, é sanidade; só há certeza, segurança, exatidão. Perdi a exatidão numa curva do Canto da Lagoa. A segurança na trilha do Saquinho. E todas as certezas à beira-mar. Eu quero a loucura. E ela me quer, me chama. Eu não quero ninguém nem nada que me chame à sanidade, que me tira dos filmes do Buñuel. Que desligue meu aparelho de som. Não quero ninguém ao lado de quem eu não possa dançar. Eu assumi os desafios e só me vejo neles sozinha. Não cometerei o mesmo erro da última vez, eu aprendo com eles. Sou esperta o suficiente pra muita coisa. E a garrafa ficou ali despedaçada. E as músicas se sucederam. Fiz a trilha para os outros. Fiz a minha trilha que estava lá empoeirada, travada, esquecida. Eu quero a loucura de viver. Se já deixei de tê-la? Sim, talvez brevemente. Mas meu alarme andou disparado desde então. E eu não ouvia mais nada direito, até entender que era ele. Mas eu sou uma boa ouvinte. Eu quero a loucura, eu quero amigos – sim, meus bons amigos e novos amigos. Eu quero chegar em casa e não ter certeza se o que aconteceu realmente aconteceu, se eu vi o que eu vi, quero não saber o que eu sinto. Quem não quer nada disso, já é infeliz por opção. Eu escolho a loucura. Sim, eu faço coisas demais, eu corro demais, eu viajo (literalmente e não, segundo meus alunso inclusive) demais, eu durmo de menos – “balanceada” é uma coisa que não entra na minha vida. Nada depende de nada e relativismo de ser civilizado no mundo moderno são balelas. Delas também não preciso. Passagem comprada. Mala para arrumar amanhã. Ter certeza de onde acordará não serve pra mim. Também não me servem as grosserias, as cabeças duras, as ignorâncias. Não me serve a arrogância, que fique claro. Construo personagens, escrevo histórias e ainda tenho que escrevê-las quando amadurecem na minha cabeça. O vinho não foi bebido hoje, amanhã tomarei outro. Quem sabe eu compre um saca-rolha decente, quem sabe eu esqueça. Quem sabe eu consiga resolver meia dúzia de coisas pendentes esta semana, talvez não. Quem sabe eu dê conta de ler tudo o que tenho para ler, ou não. Quem sabe eu esteja sentindo falta das minhas meninas. Quem sabe eu ame ficar sozinha – e sempre tenha amado, e que o meu retiro de surpresa reeditado numa versão “ano inteiro” tenha me revivido isso de forma monumental. E vai que por tudo isso, ou quase tudo, eu não entenda crianças de dezesseis anos sofrendo por amor. E já dizia o Renato Russo, se dói não é amor. E se não dói, nem tira do sério, nem é loucura, então também não é amor. A dor é sempre opcional. A burrice também. E eu tenho que parar com a mania de ter pena das pessoas – vou anotar no meu quadro de recados. E muita coisa só existe na minha cabeça – e eu liguei pra minha Loira e disse pra ela me dizer isso, cara a cara, porque eu simplesmente precisava e só ela poderia fazer isso por mim. Não ganho nem perco, só me livro de problemas. Problemas não tenho, nem quero, muito menos os dos outros. E eu quero mesmo é só a loucura. Se não for pra isso, nem falem comigo.
Deixe um comentário