Memória e lembrança no Ribeirão

 

Na semana passada, numa aula discutíamos a memória e a lembrança. A professora perguntou qual seria a cristalizada e qual a fluida. A memória é a cristalizada, fixa, dura. A lembrança é a fluida, a intangível. Quando eu havia me deparado com a questão no texto imaginei uma fotografia de alguém: a fotografia é o instante, a memória fixa, cristalizada, palpável da pessoa; as lembranças são aquilo que eu sinto toda vez que olho para a fotografia, os momentos que passei com aquela pessoa, a saudade que eu sinto, a reconstituição do momento no qual a fotografia foi tirada.

 

E eis que a memória e a lembrança pregaram-me uma peça.

 

Participei novamente este ano da Maratona Fotográfica de Florianópolis. Aí já se vão alguns anos participando. Já ganhei por foto, não pelo conjunto, uma ou outra vez. Não participo pela competição. Não sou, de modo algum, competitiva.

 

Participo, enfim, pela maravilha de poder redescobrir a Ilha a cada ano por uns dois dias. As surpresas que se encontram nos meus lugares tão conhecidos é que valem a pena.

 

Este ano não foi diferente. Tive boas e deliciosas surpresas, me senti transportada para o século XVIII, conheci pessoas especiais, etc.. Mas sobre a memória e a lembrança tive um momento singular e até certo ponto indescritível.

 

Digamos que as lembranças não possam ser ditas. Podemos até tentar descrevê-las e quem tomá-las para si poderá transformá-las em memória.

 

Andando pelo Ribeirão passei por uma rua que não conhecia. Eis que surge uma placa sobre o tal picolé da dona Nair Falcão (a lembrança me embota agora e não sei se é Nair mesmo o nome) que há cinquenta anos delicia o Ribeirão, a receita legítima. Fiquei intrigada, obviamente. Havíamos almoçado e um picolé num dia ensolarado pareceu tentador, além da curiosidade (minha) de conhecer mais um personagem da Ilha. Lá fui eu.

 

Uma senhora bem senhorinha atende e diz que tem de coco ou de chocolate. Pedimos dois de cada, eu escolhi coco. Dois reais cada um. No meio tempo de catar dinheiro para a senhorinha não precisar dar troco, pego o picolé e já experimento. Fico calada e parada. Minha irmã também abre o dela (de chocolate) e experimenta. Em seguida ela me olha. Sim, eu estava ali parada, sem palavras. As lembranças podem ser indizíveis. Mas minha irmã sempre consegue dizer tudo e solta “é o da vó!”. Talvez não tanto exclamação mas mais constatação. Era essa a constatação que meu paladar havia enviado para minha lembrança. Eis que aquele picolé, memória cristalizada de uma receita que eu conheço desde que me entendo por gente, revirou o meu mundo das lembranças. E eu não pensava, não dizia, apenas sentia e lembrava. A exatidão do sabor era chocante. Minha avó foi e sempre será única. Tudo o que eu lembro dela também. E aquela senhorinha que, apesar de ser uma velhinha, não lembrava em nada minha avó fazia um picolé que está materializado na minha memória, que é um pedaço da minha lembrança. Não senti regozijo, nem felicidade. Algum tipo de angústia talvez.

 

Fiquei ali, quieta, sem conseguir entender, chupando aquele picolé que pra mim sempre foi o melhor. Eu mesma já fiz esta receita algumas vezes, mas já faz algum tempo que não tenho feito. Era algo que não deveria ser tão desestruturador. Mas me senti perdida. Tentei encontrar uma explicação lógica: se eu perguntasse a idade da senhorinha, poderia comparar com a da minha avó e ver se seria, então, uma receita difundida na época, muito antes do surto de freezers kibon. Aí percebi que essa tentativa de explicar pelo conhecimento, pela razão, não fazia o menor sentido diante do que eu estava sentindo. Parei na sombra e terminei meu picolé ao lado da minha mãe, mais emotiva que eu.

 

A memória prega peças. A lembrança não só prega peças como nos deixa desconcertado diante da memória, daquilo que cristalizou e que mesmo assim talvez não seja passível de ser dita. Uma receita anotada num papel pode constituir-se memória, mas será apenas uma receita num pedaço de papel.

 

Claro que fiquei esperando “entender” (na verdade o termo não cabe aqui porque seria mais um entender sem a lógica) o que tudo isso significava. Estou num momento “sinais” e acredito muito nisso. Acredito mais do que entendo. Isso é fundamental. Não sei se entendi. Só sei que no mesmo momento a aula sobre memória e lembrança fez ainda mais sentido. Eu conseguia, afinal, explicar o fato. Mas foi só.

 

Enfim, e estiver passando pelo Ribeirão, desça a rua da Igreja Nossa Senhora da Lapa à direita. É tudo o que eu posso compartilhar.

 

 

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