Se eu dissesse que certas pessoas, ou certos encontros, mudam a vida da gente, diriam que estou recorrendo a um clichê. Mas, recorrendo ainda a outro, o que seria da vida sem clichês? O senhor, Napoleão, mudou a minha. Eu acredito em Destino, o senhor também? Talvez o senhor, pelas labutas da vida, pela sua vista mal acesa, já não acredite em tanta coisa. Certo é que o senhor me escolheu ali naquela meia escuridão. Devo lhe chamar de senhor? Se a coisa desse brecha nunca nem saberia seu nome. O senhor chegou, falou, falou, sorriu de prazer com dentes alvíssimos, falou. Contou-me histórias. E já dizia aquele, que não basta termos boas vivências, nem sermos bons personagens, temos que ser bons narradores. E o senhor, Napoleão, é dos narradores que narram vidas, tempos, detalhes que seus olhos já não veem. Quando me disse para olhar para o teto, lá vinha mais uma história cheia de riquezas, de ouro, de detalhes e significados, seu pescoço alquebrado o deixou ali dócil com os olhos ao chão. Eu via o teto, meus vinte e poucos ainda me permitem malabarismos do pescoço e da coluna, e o senhor mal enxergando o chão me dizia mais sobre o teto do que eu conseguia ver.
Seu Napoleão, eu lhe ouvia e aquelas paredes e tetos e entalhes já se enevoavam diante das suas histórias. O senhor, corpo pele e osso, a sacolinha-mochila murcha nas costas, os poucos fios na cabeça, as mãos… as mãos finas e longas com unhas grossas e bem aparadas. As mãos apontavam, retorciam-se. A camisa xadrez já bem usada, os sapatos grosseiros. O senhor nem percebia minha atenção e já me guiava para o próximo santo. Se seus olhos escureciam, suas palavras eram cristalinas.
Eu não mudei nada na sua vida, seu Napoleão. Para o senhor eu era mais uma pessoa das milhares que por ali passam querendo ver e saber mais de tempos idos e de coisas que vão se perdendo. Fiquei matutando sua idade. Mais de oitenta? Não quis perguntar. Mistérios criam bons narradores. Eu poderia ter começado isso aqui dizendo que o senhor era negro. Negro neto de escravos. Agora eu quero lhe contar uma história. Quando eu era criança, seu Napoleão, minha avó tinha uma empregada negra, a Marta. Ela gostava muito de mim. Quando diziam “a negra, aquela negra” eu me doía e gritava já quase entre lágrimas “de cor!”. Ela gostava de mim e eu a via com encanto. Ela era negra. Foi a primeira negra que vi na vida. Ela tombava minha curiosidade. As palmas brancas, seu Napoleão, desafiavam minha compreensão de meninota. E meu avô um dia, seu Napoleão, fez a piada dos negros preguiçosos que quando Deus mandou tomarem banho, só lavaram as palmas e plantas dos pés. Nunca amei menos meu avô por isso. Nós dois, seu Napoleão, ali naquele templo de mais de duzentos ou trezentos anos atrás, com mais ouro que quase todas as outras do país e o que eu via era o senhor, sua cor, sua pele, seu avô. Seu avô que tirava as noites para construir o outro templo onde não podia ter ouro. Seu avô que não podia entrar aqui neste templo, o de pessoas com pele como a minha assim branquela, como a Marta não podia sentar-se à mesa de jantar conosco. Quando a via sentada na mesa da cozinha eu temia levar uma bronca mas sentava com ela. Tentaram, seu Napoleão, me fazer temer o senhor, a Marta, o seu avô. Quanto mais tentaram mais me aproximei de vocês. O senhor e eu ali parados diante do altar e nenhuma das suas histórias dizia que tudo aquilo havia sido construído por vocês. O senhor não se orgulhava do trabalho do seu avô, não ostentava suas obras.
Seu sotaque me impregnou, seu olhar vagava pela semi escuridão do templo. No meio da conversa o senhor se apresentou. Napoleão. Napoleão? Aquilo sim me deixou curiosa como as palmas das mãos. Napoleão. Nome para personagem. Negro, neto de escravos, Napoleão, oropretense de nascimento.
E o senhor ainda veio me perguntar de onde eu era. Tive vergonha. A mesma vergonha que eu sentia sem querer quando desafiava as regras e falava com a Marta. Eu sou do sul, seu Napoleão. O senhor sabia que lá estão brigando porque querem tirar o feriado do dia dos negros? O senhor sabia? Enquanto o senhor me dava copos cheios de vida, histórias e delicadezas, lá eles não querem perder dinheiro com um dia – unzinho só – dedicado a vocês. Lá não temos templos como esses. Não tivemos ouro. Mas tivemos muitos como seu avô e temos muitos como o senhor, seus filhos, netos. Por lá querem, ainda, fazer que vocês não existem. Ainda querem que eu não fale com a Marta. Querem que eu dê gargalhadas da piada sobre lavar as palmas das mãos. E um clichê me cai bem, novamente, ao dizer que não quero ser como eles. O senhor, seu Napoleão, já está impresso na minha história. Como a Marta. E vocês nem têm idéia disso. Quando nos despedimos, seu Napoleão, meio às pressas para ainda dar tempo de ver o outro templo, o de vocês, com quase nada de ouro e pinturas belíssimas, o senhor falou na promessa de um casal do sul de na próxima levar um vinho para o senhor experimentar. O senhor também disse que faria de tudo para dar tempo de ir até uma mina – de ouro, escavada por escravos – comigo, que seria um prazer minha companhia. Prazer, seu Napoleão, é saber que o senhor existe. E desejo que meus conterrâneos aqui do sul possam, da próxima, levar um bom vinho acompanhado de notícias de um mundo menos rancoroso, seu Napoleão.
O mundo precisa de mais Napoleões!
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Sim, Guilherme! O mundo e essas terras aqui do sul ainda mais!
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Sem dúvida, Guilherme!
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