Tenha uma boa memória. Daquelas cinematográficas. Aliás, não. Mais. Porque cinema não tem cheiro. Guarde tudo, imagens, gestos, decore as vozes das pessoas, lembre detalhes daquele natal trágico de 1998, a sensação de andar descalça na areia pela primeira vez, o som dos sinos daquela cidadezinha onde nunca mais você vai passar. Lembre quem mais te fez sorrir na vida. Enquanto estiver na sua maior crise de choro, pense nela, a observe para poder guardar cada segundo. Lembre de tudo. Da lista do supermercado, de onde seu velho pai deixou os óculos, de quanto foi a conta da noitada com as amigas, do prazo para enviar aquele trabalho. Lembre do nome do teu mais novo primo, daquele tio que já casou pela quarta vez, lembre, também, do nome de cada uma das esposas dele. Memorize nomes de ruas, saiba os caminhos mais frequentes do teu dia a dia nessa e naquela, e naquela outra cidade. Saiba todas as datas: quando fulano morreu, o aniversário de todos os amigos e parentes, o ano em que vocês foram viajar, quando ficou desempregado por muito tempo, o ano em que mais choveu na cidade. Ah, saiba também as datas dos feriados. No começo do ano já dê uma olhada no calendário e depois passe o ano sendo consultado “que dia da semana vai cair o dia das crianças?”. Orgulhe-se disso. Esnobe aos quatro ventos a sua excepcional memória. Quando todos falharem ao lembrar qual foi o prato principal do aniversário do irmão caçula ano passado, sorria triunfante e “foi moqueca de peixe, lá na praia”. Faça disso a sua mais marcante característica. Decore fórmulas de química para gabaritar provas, lembre frases de teus autores favoritos sem nunca tê-las anotado. Confronte aqueles que dizem (homens, na maioria) que não lembram muito das coisas com as atitudes e palavras deles. Lembre horários e compromissos sem nem se dar conta. Nunca esqueça nada quando arrumar uma mala para viajar. Nunca esqueça a carteira, nem as chaves, nem o celular, nem o guarda-chuva. Irrite-se toda vez que alguém se enrolar ou te prejudicar porque a memória dele falhou. Lembre qual era a cor da casa da amiga da tua mãe que agora pintou-a de rosa. Lembre nomes, rostos, paisagens.
Passe uma grande parte da tua vida sendo assim. Preze sua memória articulada, superior.
Até que, um dia… tua irmã vai dizer que você está errada, que ela estava na Argentina e não no Chile quando você quebrou o pé. E você vai cismar com aquilo. “Eu não posso estar errada” a memória tem lá no catálogo a imagem certa, as informações, era Chile. E depois dessa, uma outra e outra. Sem perceber você nem vai mais alardear suas capacidades memoriais, as pessoas deixarão de te consultar sobre qualquer dúvida do passado depois de alguns “não sei” e de ruas trocadas.
Você vai insistir, vasculhar seus recônditos, e tentar lembrar. Quando foi minha primeira comunhão? Quantos anos durou aquele namoro? Por que aquele amigo deixou de falar comigo? Em quais bairros eu já morei? Ficará sem respostas. E aí você vai começar a esquecer. E vai começar a ser feliz.
Chegará a dar vivas aos bloqueios da tua mente. Você já não lembra mais de tudo. De certas noitadas já não lembra de quase nada – mas lembra do vinho. Vai se preocupar menos, se importar menos com os outros e com o que eles te fazem. Vai lembrar do vinho, do sorriso e do dia e mês do teu aniversário – o ano pra quê? Quando falarem de um episódio triste da família, você vai sorrir “nem lembro”. É verdade, você vai achar que está doente, passará pelo desespero de pensar que há algo de grave acontecendo. Começará a praticar exercícios para a memória. Voltará a ter aquela memória curta e necessária do dia a dia. E não quererá mais.
Vai abraçar seus bloqueios. Não vai lembrar o diretor daquele filme. Passará dias sem saber onde colocou aquele colar especial. E vai descobrir o prazer de reencontrá-lo no lugar mais óbvio. Redescobrirá novas alegrias, prazeres imensos e sorrirá mais.
Chegará o dia que você nem vai mais lembrar que um dia teve uma memória excepcional e poderá ver e rever os seus filmes favoritos, as fotos das viagens, poderá ler e reler os livros mais apaixonantes e se surpreenderá frequentemente com as pessoas.
(inspirado em Cortázar, Instruções para Chorar)
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