Historietas

Dez anos atrás. Não sei ao certo como eu e Elaine – aquela a quem eu chamo de Loira, pois ela era assim de corpo e alma quando a conheci – ficamos amigas. Santo bateu forte. Primeira fase do curso de Filosofia e éramos tão – mas tão – diferentes. Lembrei disso hoje.

Amiga pra toda a vida que viria a partir daqueles dias. Ela me emprestava o caderno dos dias que eu faltava, eu passava cola, vendia trabalhos, ela me convidava pra balada, eu nunca fui, eu chamava pro bar e pra praia, ela ia. Ela me contou a história mais triste – e, pô, é triste pacas – da vida dela. Com ela fiz a minha primeira trilha na Ilha. Com ela passei meu primeiro fim de semana na Ilha. E não havia porre que me derrubasse – bem descobriu o primo dela.

Antes disso tudo, um dia ela apareceu com um baralho cigano. Eu tive que ler as instruções, ela já sabia tirar as cartas. Aí ela tirou pra mim. Uma, duas, três, quatro… em todas as vezes – todinhas – saiu uma conjunção de cartas que provavam meu futuro: união forte (casamento no vocabulário chulo), amor, sentimento avassalador (o adjetivo é perdão de trocadilho, não resisti). Na primeira vez fiquei chocada (já lá, e antes, meu horror ao casamento era estável). Aí pedi uma segunda vez, e pedi a terceira, a quarta. O resultado não mudava.

Sou uma amiga que não se encontra por aí – pode perguntar pra Elaine e para uma dúzia de gente, até para aqueles que decidiram não ser mais meus amigos. Nos relacionamentos que existem entre as pessoas só sou realmente excepcional como amiga. O problema é que sou chata, é o único preço a pagar. E Elaine, com toda classe de uma loira e paciência de uma leonina para com uma pisciana, pagou.

Fomos para a biblioteca do CED e mais de hora passou enquanto ela tirava repetidas vezes as cartas daquele baralho tão querido. O resultado sempre o mesmo. Ela só pediu pra parar quando uma dor de cabeça fulminante a atacou.

Quase não vejo mais Elaine. Ela me abandonou. Mudou-se. Um dia uma prima dela queimou nosso tão estimado baralho e nunca poderei perdoá-la por isso.

Ela quase não usa internet. De vez em quando eu telefono pra ela quando tenho um babado forte ou quando é o ilustre aniversário dela, no nosso querido dia dos solteiros. Até fundamos um clube.

Sobre o resultado das cartas daquela época? Confirmou-se (por um tempo, é claro). Tempos depois as cartas me pregaram mais umas peças que também se realizaram. Diriam os capricornianos que fui influenciada. Talvez. E, ainda bem, pois sou um tanto indecisa e tapada de vez em quando.

Lembrei disso tudo porque encontrei um baralho igualzinho àquele nosso, porém virtual. Aí, quando a lua entra em alguma conjunção que me deixa à beira dos penhascos fazendo rimas ricas e pobres enquanto rio das minhas desgraças, recorro a ele.

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Era janeiro. Não sei, talvez início de fevereiro. Frisantes na geladeira, eu sozinha na casa de praia. Havia começado a ler Os Sofrimentos do Jovem Werther dias antes. Tinha uma dissertação para terminar mas saber dosar prazeres e deveres é um dom que eu possuo. A rede do Piauí na varanda. As gatas dormindo no sofá. Um pôr-do-sol lindão se anunciava. Fábio Jr na vitrola.

Tinha certeza que jamais leria Werther. Certeza. Ainda mais que Elaine, a personagem da historieta acima, nos seus dias de busca para as razões e obstáculos do amor havia devorado todos os livros sobre o tema, inclusive ele – e, lembrem, ela tinha aquela história triste. Eu não leria Werther, havia escapado dele na época de minha adolescência quando li muitos e muitos clássicos e, sério, ele suicidava-se no final. Só gosto de saber o final quando eu mesma, lá pelo meio do livro atolada na ansiedade, corro para as últimas páginas.

Eu não leria Werther. Poderia passar a vida sem lê-lo. Tipo, sei lá, Romeu e Julieta. Muito amor e morte no final pro meu gosto. E nunca superei o trauma – aterrador – d´O Sorriso do Lagarto. Nunquinha. Ubaldo que tenha pesadelos de vez em quando por ter escrito aquilo.

aí… ah, aí…

A vida, sabe? Essa graça que começa e termina todos os dias. E eu e essa mania de me desafiar, de gostar de mudanças, de gostar de me desdizer. Me desdigo e seja lá o que for. E às vezes é cada coisa…

Um punhado de coincidências e de atração infernal deram uma rebolada na minha vida. Eu vi. Eu dei um passo. Aí eu chamei desesperada por uma amiga, contei tudo o que (não) havia. Pensei, pensei, pensei… já nem sei direito se paguei pra ver ou se… bem, a vida, apesar de tão bela, tem lá suas regras.

Regras. E não era o momento de eu querer fazer coisas erradas de novo.

Narrei (quase) tudo aqui. Sobre o Werther: juro que não entendi. Me perguntei centenas de vezes se alguém em sã consciência passaria uma espécie de cantada falando dos sofrimentos do Werther. E aí, ah, aí… eu teria que ler para descobrir.

Feira de praia, lá estava o livro bem baratinho. Muito contrariada, comprei. A saudade, a distância, o calor, tudo me atormentava. Era claro que eu não havia entendido algo. Comprei-o. Ou minha burrice é tamanha que eu havia entendido de forma clara e dolorosa demais, só não queria aceitar tanto azar.

Azar no amor, azar no jogo, sorte na vida. Meu lema.

Comprei. Comecei a ler. E foi naquele final de tarde, naquela rede, naquela varanda, com aquela trilha musical e aquele frisante que eu li o Werther.

Como já disse num outro post aqui, eu e Werther temos muito em comum. Engasgava em muitos parágrafos. Foi difícil. Fui aceitando. Fui entendendo. Saí da rede porque os pernilongos haviam me devorado e eu nem tinha percebido. Garrafa vazia era uma nova que era aberta. Da rede pro sofá. Não via nada. Não pensava em nada. Só lia e sentia. Não lembro nem quantas garrafas foram – mas tenho certeza que foi meu recorde. Fábio jr ainda cantava e eu terminei de ler e fui com a última garrafa para debaixo do chuveiro. Sentada no chão do box falei sozinha por mais de hora.

Enrolada na toalha caí no sofá e apaguei. Acho até que chorei.

Finalmente, pela primeira vez na vida, havia tomado um porre homérico. O que ficaria em segundo lugar também fora histórico: não fiz a pior besteira que poderia ter feito (mas por muitas vezes me perguntei o que teria acontecido se eu tivesse apenas esticado o braço naquele determinado momento). O terceiroo foi divertido. Este foi devastador. Fiquei sem beber até semana passada. Já temia meus pensamentos e sentimentos. E eis que voltei ao vinho.

Não me perguntem se foram as cartas que tirei no baralho cigano virtual, ou se as malditas e doces coincidências ou, ainda… o Werther e nossos sofrimentos.

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