Os amores são ironicamente selvagens. Quanto mais domesticado o amante, menos ele entende de amar. Leia quantos livros você quiser, não aprenderá a amar seguindo as mais belas e certeiras regras. Essas pessoas que sabem respeitar e obedecer jamais amaram ou amarão. Se esse amor que te acalma o peito nunca foi a sensação de pular do precipício, deve ser alguma outra coisa que os psicólogos bem podem explicar, mas não é amor. Em todo amor há guerra, há conflito e por isso o amor rende tão bem à ficção. Não há amor na paz. Não há amor na civilidade. Amores se perdem em construir uma vida inteira juntos quando a realidade selvagem do amor é sobreviver a cada dia. Em caçar a comida, em encontrar um lugar quente pra passar a noite, em matar para viver. Passar a vida inteira se protegendo não é amor, é covardia. Os fracos não amam, eles se reconhecem. Se estabelecem e se reproduzem. O amor em si é estéril, abandona seus frutos ao Destino. Que filhos do amor crescem livres. Amores não existem para serem vividos, mas perdidos. Quem vive de garantias e de certezas não sabe perder – por isso não ama. Domesticam-se e sorrirão quando o outro chega, mas jamais amarão. Há ironia em amar. Há uma intrínseca ironia no ato de amar.
Com seu pêlo loiro alaranjado ela impulsiona o corpo com uma pequena saliência no abdômen e alcança, de uma vez, a mesa. Senta, de frente para a janela, e com desdém lambe a patinha direita.
Pelo sinal dos deuses ou do cupido, ele de imediato surge do outro lado do vidro. Cenho franzido, longas orelhas cinzas de Dumbo e a cabeça um pouco inclinada denunciam o que lhe passa pelo coração.
– Acordou tarde hoje. – ele diz ansioso.
Os olhos amarelos seguem da patinha para a janela sem nenhuma pressa.
– Eles ainda estão dormindo. – a fala arrastada.
A pata grande e forte, com grossas unhas, grava mais arranhões no vidro. Ele chora manhoso para só o cupido ouvir. A estátua de pêlos laranja não tira os olhos da janela. Num impulso, numa nada rara exibição de carinho, ouve-se um longo e exigente miado. Ela levanta e se espreguiça como se a vida fosse um eterno dolce far niente. Dele ouve-se um latido estridente.
– Já vai?! Mas já?!
– Eles estão enchendo meu pote de ração. – e como se voasse, sem olhar para trás, ela alcança o chão em disparada.
Os belos olhos azuis contemplam mudos o corredor vazio. Por longos anos, contrataram adestradores com o intuito de tirar-lhe – de qualquer jeito – este amor do peito.
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