Pretensões

Eu aqui nessa pressa e nessa angústia de escrever algo tão inteligente, com aquelas frases bonitas que dão vontade de publicar nas redes sociais porque, a gente sabe, como é pretensioso todo ser que acha que tem algo a contar. Vejam a fila do supermercado: não anda. Aqueles dois a falarem de tudo de ruim, “Sabe o preço da cebola? Então, e o gás, rapaz! A conta de luz tá mais que o dobro do mês passado e o dólar passou de quatro reais!” como se alguém ainda não soubesse, eles tagarelam interminavelmente. E a fila não anda. Agora até eu sei que a filha de um deles vai casar – mas ama outro que não o noivo. Não entendo muito da vida, mas sei que na ficção isso acontece bastante.

E eu aqui, nessa pretensão de contar alguma coisa. Como a recepcionista daquele prédio, disse pra colega que vai comprar quatro peças de roupa – vocês sabem como é, não dá pra ser só recepcionista, tem que fazer uns bicos, já viram quanto que tá o Omo? E a moça pegou uma blusinha rosa que não esconde quase nada por cento e quinze reais. Cento e quinze, meu amigo? Imagino aquele senhor do supermercado, se a visse, certeza que perguntaria “e a crise?”. Mas a colega disse que parcela em até quatro vezes. Chega natal e nada da blusinha estar paga.

E eu aqui vendo uma formiga atravessar o estacionamento, daquele tamaninho e contra o vento forte e frio. Como o senhor da fila do supermercado que cortou a sagrada cerveja com alcatra de domingo – agora só uma macarronada ou, no máximo, um frango assado, sem álcool – e quase chorou quando, baixinho, confessou ao amigo que vai pagar sozinho toda a festa de casamento da filha. Insistiria, quem sabe, na metáfora “as formiguinhas somos nós”. Mas, coitadas das formigas, ou felizes delas, sei lá. O escritor é quem não as deixa em paz.

E eu aqui, pois escritor não deixa ninguém em paz – nem a si mesmo. Fui dormir e as histórias não deixaram, enquanto você não as coloca no papel e põe o bendito ponto final, elas ficam aí nesse ego inflado achando que têm tudo a nos dizer. E eu querendo pensar “deixa a moça comprar a blusa e não deixa a tua filha casar”. Mas o que eu tenho com isso? Quero mais meu sofá com um bom filme de amor do século passado que amanhã eu tento de novo.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Blog no WordPress.com.

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: