Existe um processo. E processos são sempre fraturas (Deus meu, como detesto esta palavra). Parece contraditório, agora assim escrito. Vê, um processo deve ser algo contínuo, um trecho da vida. E como é, ao mesmo tempo, fratura? Fratura é o que quebra, rompe uma linha, um osso, uma confiança. Quero explicar isso pra mim mesma, dificuldade maior do que para quem quer que seja. O processo é a fratura em meio ao contínuo. As coisas deveriam seguir sempre, o eterno rio, os ponteiros do relógio. Mas você pára ali no meio (ou perto do fim, ou em qualquer ponto) e fica. E é aí que irrompe o processo. O processo fratura o teu seguir, porque precisas deste processo para continuar – melhor ou pior, mais ou menos feliz, com novos olhares ou não. Certeza que já fui mais clara na vida. O processo é a fratura que rompe o devir – que, talvez, por algum motivo, tenha parado (de vir – não é hora pra trocadilhos, Fahya, o assunto é sério).
O processo fratura a tua leve caminhada pela vida. Você está aí, seguro, confiante, cheio de dúvidas, talvez, algumas más decisões, dois ou três arrependimentos, já aprendeu muito na vida, sabe o que faz, com quem caminha, quais os destinos que se te oferecem pela frente. E aí, ah, aí, meu amigo… você se depara com o inesperado. Ou o esperado que você não preveria mais na tua vida, ou que não era tua prioridade, sei lá. É o inesperado (não sei se foi a melhor escolha de palavra). Os que reclamam que sou muito abstrata devem estar exultantes até este segundo parágrafo. Querem exemplos concretos?
Uma gravidez inesperada (foi o melhor que me ocorreu, vejamos se ele se encaixa). Gravidezes não são, em nada, inesperadas para pessoas que praticam sexo (Fahya sendo Fahya). Mas, uma gravidez inesperada. Construirei a situação, namorados há seis meses, um estuda o outro só trabalha, lá pelos vinte. E surge a gravidez. Cada um tinha a sua linha da vida, seus sonhos, seus objetivos a serem cumpridos, um vestibular talvez, uma promoção no trabalho, comprar um carro ou um patins. Nunca se sabe. E ali no meio deste caminho “previsto”, surge a gravidez. Ser pai, ser mãe, ser, talvez, um casal (é, ainda hoje gravidez parece requerer obrigatoriedade para juntar as trouxas – fica quieta, Fahya, o assunto é sério). Ambos terão que passar por processos. Romperão a linha que seguiam para entrar em processo diante das mudanças que virão (e que, neste caso, serão enormes). As famílias de ambos, talvez, também passarão pelo processo – o filho que sairá de casa, quem ficará com o bebê, onde vão morar, sei lá. Eis um exemplo de processo.
O processo é íntimo. Muito íntimo. Por isso minha abstração e dificuldade em vir escrever sobre. Não ficou claro o exemplo? Vejamos outro. Apaixonar-se. É um processo. Até para esses que vivem aí nas pistas da vida (imagino eu), para os que correm atrás do “alguém” (y los hay) a vida inteira. Você está aí de boa na vida, vai pra escola todo dia, dorme a tarde toda, joga videogame e, pronto. Num dia a menininha tímida que senta na carteira ao lado puxa conversa, te dá um bombom de presente, convida para ir ao aniversário dela. E vocês gostam disso. Mas, sei lá (meus exemplos estão adoráveis, acho que sou boa com isso), você vai precisar lembrar da data do primeiro beijinho debaixo da árvore nos fundos da casa dos pais dela. Ela vai querer conversar a tarde toda, no teu tempo dedicado ao sono. E agora? Agora é o processo, mocinho. Tens aí, sei lá, seus doze anos. Você passará por isso algumas vezes pela vida. Esta experiência servirá de base para todas as outras, se fores galã (credo, Fahya, palavra velha, só tu usa) chegará a usá-la e aperfeiçoá-la demais. Você vai saber a diferença de um “não” para um “não sei”, e essas coisas todas. (cuidado para não se confundir diante das repetições, fica o conselho) Você estava preocupado com lembrar de salvar o jogo para recomeçar amanhã do mesmo ponto, não com se apaixonar. E aí é a fratura, rompe teus dias, te empurra para o processo.
E no processo de apaixonar-se há perigos (em todos, não?). Você precisa n e c e s s a r i a m e n t e sair de si mesmo. É horrível, eu sei. Porém, aviso aos incautos, não pode abandonar a si mesmo. Ah, divinas dificuldades. Vejamos o primeiro ponto: precisa, sim, sair do teu casulo, dos teus hobbies, do teu dia a dia, da tua rotina, das tuas visões, das tuas expectativas. Sempre tive problema com este assunto (sempre não, só depois dos 25 HAHAHA), e ano passado numa conversa animada uma pessoa disse algo que eu nunca tinha pensado (posto que burra) e é a resposta. Cada um tem a sua educação, sua experiência familiar, a direção das pequenas coisas: a orientação religiosa, as exigências ou não com limpeza, higiene, organização, as minúcias pavorosas do cotidiano. Também têm, isso lá pra bem depois dos amores dos doze anos, as orientações políticas, os ódios e amores, as experiências traumáticas da vida, os vícios e os prazeres (ambos muito perigosos nesse “processo”). Você tem o que você é – e a outra pessoa, mesmo que creias “alma gêmea”, também. E vai juntar esses dois mundos pra você ver. Uma confusão. Então pessoas que têm mais “coisas em comum” terão mais facilidade no processo? Não necessariamente.
Nem precisa ir para os contos de fada e novelas de TV, quando a mocinha é pobre e o mocinho é rico. Não me ateria à classe social. Mas, claro, questões sociais, raciais, religiosas interferem muito. São muito grandes pra discutir aqui. Quero me ater à personalidade, aos gostos, aos hábitos, talvez. É horrível. Pior do que a mocinha pobre ter que se acostumar a comer lagosta (reparem, cena repetidíssima na ficção para mostrar o processo). Ah, Fahya, mas o amor, a paixão, os sentimentos. Pera, gente, nem chegamos lá. Essas coisas nublam o entendimento. Estou tentando ser prática, objetiva, lógica (se encontrarem esta Fahya por aí, mandem sinal). Apaixonar-se pode vir antes, durante ou depois. Nunca se sabe.
E é aí que o processo pode pôr tudo a perder – até os grandes amores imortais. Você começa a sair com o garoto e toda vez que ele chega na tua casa liga a TV. E a TV fica ligada o tempo t o d o. Você começa a namorar a mocinha, mas na casa dela tem que tirar os sapatos na porta (diz lá a sabedoria milenar asiática) e você é daqueles machos que se sentem menos machos sem sapatos fechados e ela passa aspirador de pó no chão a cada refeição que faz. Você pode ser a garota que detesta TV ligada o tempo todo. E o mocinho que além da segurança masculina ferida, se irrita com barulho de aspirador. Fui para questões muito práticas. Mas, vão por mim, essenciais.
É o processo. O processo de sair de si. De deixar tuas manias e desgostos, pelo outro. Ah, vendo assim, apaixonar-se é sublime esforço humano. Ou você pode optar por ficar na tua bolha – quentinha, ou fresca, confortável, calculada, segura e certa. É certo, para você, ter a pia sempre limpa e seca. É a tua segurança. Pro outro, talvez não. Talvez ele seja meio preguiçoso, ou meio nem aí para isso, ou meio sujinho. E sair da bolha nos leva para o segundo ponto (para alguns, assustadoramente mais difícil do que este), não abandonar a si mesmo. Amigo, você precisa ajustar os ponteiros com o outro, mas teu relógio (de novo?) não pode correr os ponteiros para seguir os dele. Talvez uma das questões femininas mais pesadas de todos os séculos (e pouco abordada), quando as mulheres ainda (como hoje) largavam seus sonhos e desejos para seguir os maridos, cuidar dos filhos. Tivemos sucessivas gerações de mulheres aos quarenta desiludidas, decepcionadas, infelizes com o que haviam “deixado para trás”. Citei só pela questão social, mas não se refere só às mulheres. Abandonar a si mesmo acomete a ambos. Quantos homens deixam de ser caras divertidos, animados, brincalhões quando começam a namorar porque ela (provavelmente ariana – Fahya, pára) vê traição e suspeita em tudo? Quanto deixamos de nós, pelo outro? É o processo.
Ao ajustar os ponteiros acontecerá isso, fatalmente. Você deixará de ser um pouco do que era. Depois de sair de si para encarar o outro, você verá que algumas partes do teu eu não conviverão bem (de jeito nenhum) com o eu dele. Ninguém escapa disso. É o processo que fratura a tua vida estabelecida, dentro dos eixos, que seguia na boa. Sair de si é escolha, normalmente. Você pode ser a gata aí na pista, aberta às possibilidades e opções – está praticamente fora de si (sem trocadilhos), disposta a “conhecer novas pessoas” (eu morro com algumas expressões). Abandonar a si mesmo é menos escolha, parece que a gente vai perdendo aos poucos, vai se deixando levar (pelos sentimentos, e tal, aquelas coisas), mesmo quando toma certas decisões (ele não quer que você trabalhe e deixe o recém-nascido com um estranho, “não tem problema, amor, em uns dois anos você volta pra tua carreira”, e na hora você acha isso também).
Somos melhores juízes na hora de sair de si. Você pode ser um solteirão convicto (existe algum depois que o George Clooney casou?), nunca ter se interessado pelos descaminhos do amor. Ou você pode ter tido tua dose dessas coisas na vida e preferiu ficar quieta na tua. Sair de si em direção ao outro, repito, é horrível. (tem que estar muito cego de paixão louca pra não pensar assim – e depois que a cegueira passar hão de concordar comigo) Somos péssimos juízes entorpecidos quando se trata de abandonar a si mesmos. Dependendo da personalidade ou do caráter da pessoa a coisa pode ficar bem crítica (e perigosa). Tomem cuidado. É o processo.
Como deixamos os sentimentos de lado, na hora de escolher sair ou não de si mesmo é mais fácil pensar “ah, esse aí tem coisas que me agradam, bons costumes e tal, vale tentar”. Mas aí, minha amiga, esse aí pode não te satisfazer em quase nada. Nem te dar tesão, sei lá. Coisas a se levar em conta, sabe? A teoria está incompleta, obviamente. Ou você pode toda felizinha escolher sair de si mesma na direção de um cara que você já sabe que não vai ajustar ponteiro nenhum. Os sentimentos que te ajudem! Porque, o que eu sei, é que em todos os casos, se não pensar nisso antes, a vida te obrigará a dar de cara com os fatos. E os fatos são dolorosos em todos os amores. Eles não nos deixam passar incólumes.
Se você estiver disposto a apaixonar-se, pronto para esticar o braço para fora da bolha do teu mundinho, boa sorte. Não deixe, porém, a cabeça por último na bolha. Às vezes vale mesmo a pena, sou testemunha (o texto não prometeu ser imparcial). Se algo começar a puxar tua mão para fora da bolha e você “mas eu quero ficar aqui, escolhi isso”, o dilema é maior. Serão duas escolhas numa só. Quando eu descobrir mais sobre isso, prometo contar-lhes. Mas, por último, eu diria que nunca, jamais, em hipótese alguma, abandone a si mesmo. Por nada. Não tem amor digno que valha isso – por pior que você seja, inclusive.
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