Desembarquei logo cedo. O ônibus ao lado vinha de Goiânia. Goiânia tomou conta da minha saudade. Hoje não mataria esta saudade. Hoje correria atrás do que eu já nem sabia mais se seguia o caminho certo. Em tempo, inesperadamente recebi apoio. Que a vida é essa coisa de pessoas cruzarem o nosso caminho, quando a gente menos espera, ou boas palavras virem de quem talvez pudesse simplesmente nos ignorar. E em conversas encontrei mais rumos. Eu gosto disso: encontrar rumos. Caminhos. Traçados para os dias que virão. Eu gosto muito disso. Enche a cabeça de idéias – apesar do sono. Ainda não é sábado. A vida é como a narrativa, depende do foco do narrador. Simples assim. Se você é narrador da própria vida, veja bem como faz isso. Um foco pode mudar tudo. O sono persistiu, o calor me alegra (sempre). Talvez cansaço – prefiro não pensar nisso. As idéias, minhas amigas, fermentam como um bom pão, ou bolo, sei lá, não é minha área. Abri mão de uma torta de trufas e fiquei naquela alegria incomunicável com a balança. As coisas, simplesmente, têm que mudar (de vez em quando). A bolsa pesava. Os problemas me encontravam pelo telefone. Equilibrava o corpo e a espinha cedia imperceptivelmente. As ruas atulhadas de prédios da cidade grande. Pessoas, pessoas, pessoas demais. Por todos os lados. Nem um banco vazio e solitário e silencioso naquela praça. Muitas lojas de calçados. Já repararam? As cidades têm muitas lojas de sapatos. E eu querendo tirar essas sandálias e caminhar descalça pelos teus mais recônditos segredos. Mais uma loja de calçados. Pra que tantos se o melhor é andar sem nada nos pés, só assim para sentir a vida. Foi o vento. Foi, sim. Brincou com a saia, trançou o cabelo. Um vento furioso de todos os lados. Ainda não é sábado. Entre prédios a escuridão se fez. Vinha do Oeste. Uma tempestade, certeza. As pessoas (demais demais demais) apressaram o passo. Correram para aquele terminal de ônibus, de novo eu ali, de novo sem querer na rua errada. Quase atropelada por um ambulante. Escapo de muitos quases todos os dias da minha vida. As pessoas corriam do temporal. Eu só corro se for ao encontro do teu vento. Diminuí o passo, assim indolente. Tinha pressa não. O vento mais forte. Os primeiros pingos exigentes chegaram antes do previsto. Segui meu destino. Ribombou e despencou: o céu. Eu que sentia todo o peso do mundo (e da bolsa) nas costas, senti a água da chuva desnosar todo meu corpo… escorria a água a saciar meus desânimos e complicações e falta (já) de esperança. É possível que exista alguém que nunca tomou um banho de chuva? É. Sempre é. O temporal a passos largos e eu miudinho a acompanhá-lo. Molhou-me a saia de vez, encharcou a blusa, acariciou a alma. E, digo mesmo, ela precisava tanto deste gesto. Amansou as dúvidas, refrescou o ardor da pele, afogou os anseios. Ainda não é sábado. As pessoas (muitas muitas muitas) a correr, um velhinho mesmo parou e me olhou atarantado: eu não correria? E eu lá corro das soluções que a vida me dá? Eu é que não. Eu paro e aprecio. E agradeço. Pingando a roupa, cabelo desgrenhado, devia estar um trapo. Mas a alma ia bem, obrigada. Ainda tirei tempo para conversar com a senhora da limpeza. A violência contra as mulheres, sabe? “Como não tem lei pra impedir esses homens de fazerem essas coisas?” ela queria uma resposta. Pior é que tem, senhora, a moça morre aí e então vão descobrir que tinha vinte boletins de ocorrência contra o babaca do ex. Por isso que eles não se intimidam, ninguém é punido. E ela me olha assustada “Ninguém?!”. Tentei remediar, estrago feito. Bom trabalho pra senhora. Eu gosto disso. Gosto de conversas fortuitas. Fiz até pregação, coisa que não é do meu feitio. Era hora, segui. Sempre sigo. Sempre estou indo – ou vindo. Desembarquei. Ia partir dali um ônibus para Porto Velho. Não tenho saudade de Porto Velho – porque ainda não conheci, senão já sentiria. Na lista, de certeza. Não fossem os problemas me esperando na porta de casa, embarcaria. Embarcaria rumo a Porto Velho. De ônibus. Com a roupa molhada do corpo. Mas os problemas me queriam – quem sou eu para contrariá-los? E, claro, porque hoje ainda não é sábado.
Deixe um comentário