Os dias de escuridão

É na escuridão que os olhos ficam mais abertos. Eles se ajustam ao não ver para enxergar melhor, ainda mais. Não ver é um modo mais delicado de ver. São os sons dessas vidas que suspiram em gozo pelos próximos instantes, que podem sempre ser os últimos. A escuridão só é perturbada por essa janela grande que dá para uma parede externa. Luzes de outros mundos em suave agitação chegam a amarelá-la. Mas os olhos devem chegar até ela e voltar. É aqui dentro que o mundo se justifica e luta por si mesmo.

É na escuridão que lhe dói o conceito de vida. Esse conceito que muda, meu pai, de cabeça para cabeça – e que não deve ser aceito nem combatido. Vidas são vidas: nem todos os olhos têm alcance para percebê-las. Justo seria dizer “senti-las”, mas emoções não são bons argumentos. (por isso tenho evitado-as, sempre) O escuro nos afoga, se dermos bobeira de fechar os olhos. O escuro traga nossa percepção do sensível do mundo para um saco inglório de roupas sujas e infectadas do qual logo quereremos nos livrar. Abra os olhos no escuro, abra ainda mais.

É na escuridão que o tempo desliza. A cada escuridão, um novo dia. Um novo e brilhante e calorento dia. É em meio a escuridão que esquecemos isso. Quem muito vê a escuridão deixa de crer que novos dias amanhecerão. São as vidas que roncam no escuro que velamos de olhos bem abertos. Nós temos a certeza de um novo dia e precisamos garantir os novos dias delas. É sutil deixar-se levar pelo escuro de um tempo que não passa, só se realiza, em poucos minutos, e claridade bruta e pálida.

É na escuridão que os sentidos despertam para a incompreensão. Como pode um mundo tão negro de intenções e ações? Tão negro de sentimentos sinceros e puros? Como podem amantes da escuridão, a ponto de andarem de vendas durante o dia? Por que existem dias tão escuros? Por que dias se transformam em noite em instantes? A escuridão nos aguça a alma para as questões perturbadoras que insistem em não ouvir respostas.

É na escuridão que eu fico todas as noites a pensar que a vida nada mais é, agora, do que fazer o que é preciso. É a força que gera o movimento. Não são imprescindíveis explicações, nem as fadadas emoções. É o mover-se na escuridão de olhos abertos e coração apreensivo enquanto calamos o que nos esvai nas veias ansiosas por chorar em silêncio no ombro amado.

Será escuro pelas próximas horas.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Blog no WordPress.com.

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: