O som – os romancistas diriam metálico – dos tipos a baterem contra o papel ecoou pela primeira vez depois de tantos – e muitos – anos aqui pelas paredes do Oficina, de onde vos escrevo. Tirei a capa protetora da minha Olympia e testei com dedos desacostumados. Ela, como uma amiga encantada pela lembrança, se não fosse tão pesada saltitaria na mesa. Respondeu-me como de costume, a ranhurar o sensível papel-jornal. Queria agradar-me, por certo. Tive que acertar-me com ela, pois o prelúdio fora de fato muito extenso. Lembrei-me dela, que jaz aqui ao meu lado todos os dias, como algo útil e belo – não apenas como um monumento. O monumento que refaz um trajeto da minha vida, que insinua a origem de todas as coisas. É sempre bom lembrar disso.
Era o Typewriter Day, 23 de junho. É curioso que sejamos instados a tirá-las do ostracismo para rememorar o que o seu som provoca interiormente. Não é curioso que exista um dia dedicado a elas. Alguns sites relembram que muitos dos grandes clássicos da literatura foram escritos nelas. Poucos dias antes eu comentava como é impossível o surgimento de um novo Machado de Assis. Vejam, ninguém mais tem tempo para dedicar-se à pena (literalmente). Nos formamos esses escritores mimados e incertos, artistas capengas da letra que mal pensada corre nessas telas digitais e em segundos são apagadas e reescritas. Vivemos do erro. Escrever, hoje, é um erro. Mais erramos do que acertamos. Há escritores que catam milho – expressão digníssima da Era das máquinas de escrever. “Máquinas de escrever”, que nome gordo de responsabilidade: uma máquina que comete o ato de escrever. Não é o ser humano que escreve, é a máquina diante dele que o faz. Hoje, aqui sentada diante do computador, com as idéias a correrem mais rápidas do que minha capacidade de digitar (que veio depois do aprendizado com a datilografia), a máquina apaga, corrige, colore, insere parágrafos, aumenta ou diminui letra. Faz-tudo.
O escritor, hoje, é uma farsa. Há uma máquina que faz tudo por ele. Há escritores que mal sabem escrever. A máquina, por sinal, inclui buscadores na internet, ao qual, não digam que eu contei para vocês, muitos escritores recorrem para escreverem seus livros (Deus há de perdoá-los). O escritor não imprime seus erros, escondidos num rápido ou lento ou reescritos em arquivos salvos sucessivas vezes ou deletados. Nós somos uma farsa. Jamais teremos um outro Machadão. A arte da escrita exige a entrega corajosa do esforço (quem já datilografou ou escreveu bastante a caneta sabe a que me refiro) contíguo ao corpo do escritor. Somos frívolos massageadores de leves teclados suaves e ergonômicos. Escrever não vem só da alma, as criaturas de hoje não entendem isso.
Ficamos mansos e amaciados. Somos vermes a mendigar temas cruciais à nossa época para escrever a próxima nulidade literária. Vejam que li esses dias sobre um romance qualquer que “retratava o vazio do nosso tempo” (imaginei um livro de páginas em branco, mas pelo tamanho da resenha duvido que seja). Outro se passava nas manifestações populares de 2013 (e nem era História do Tempo Presente). Outro, ainda, obviamente, falava de escritores nos dias de hoje e, obviamente, fazia uma crítica às críticas e ao consumo literário e aos escritores performáticos atrás de sucesso e incluía, antes que me esqueça, hashtags e a popularidade das redes sociais. Talvez não tenhamos nenhum Bruxo, em uma nova edição, pois esses assuntos da pauta da contemporaneidade são fugazes e reles diante de um olhar – aquele, famosíssimo (aliás, sempre que escrevo um superlativo também me recordo dele), que nos deixará com a eterna dúvida.
A culpa, talvez, não seja nossa. Talvez. A culpa talvez seja, justamente, da contemporaneidade. Deste mundo atroz que não nos sensibiliza nem nos torna seus amantes. O mundo nos repulsa, nos expele, nos atira de precipícios. Talvez, deste ponto de vista, não sejamos assim tão fracos e covardes, nós, os escritores. Talvez sejamos múmias a soltarmos a poeira da eternidade num caminhos pavimentado de word e pdf. E é o caminho que nos impede a fruição e um lugar aos pés dos grandes.
Faz um tempo eu dizia, quando as coisas do mundo pareciam tão fora de propósito, que chegaria o dia no qual eu abandonaria tudo e iria plantar batatas no alto do Maciço da Costeira. O lugar é desabitado (mas, obviamente surgiu alguém com a brilhante idéia de lá construir casas populares) e tem uma das vistas mais belas que já vi. Lembro de quando lá estive, os sons da humanidade no eco da distância, era como estar a parte dela. E foi esse o motivo que me fez recorrer à fuga imaginária de, um dia, fincar minhas idéias por lá, plantando batatas. Poderia, é claro, plantar tantas outras coisas, pois muito me agrada.
O mundo parece algo muito fora de propósito. Ele exige de nós consequências de escolhas que não fizemos. Nos cobra tanta coisa inútil. E mal temos tempo de remodelar nossa existência. Não existe, pois, depois da máquina de escrever, como existir um verdadeiro escritor. Ele está sujeito às condições da sua existência, do seu tempo, das distâncias e da falta de assunto que nos una – e não dure apenas um dia num trending topics.
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