Nosso medo

Há dias que tudo o que se quer é uma boa noite de sono. Você deita querendo espantar o cansaço e adentrar o mundo dos sonhos. Mas, no meio da madrugada, o cachorro late insistentemente, late de forma agressiva. E você levanta para ver o que é. Na rua, um rapaz agride, física e psicologicamente, uma moça. Ela chora. Cachorros, vocês sabem, não toleram agressões. Nós também não deveríamos.

Caso você fosse um homem, eu diria que deveria intervir. Homens, diante do olhar dos seus iguais, tendem a recuar – quando sabem que estão errados. No caso, porém, era eu. Fiquei com receio de intervir e, por ser mulher, acabar junto à vítima. Recorri de imediato ao telefone. Na primeira ligação, “qual a sua emergência?”, só deu tempo de dizer que denunciava um homem batendo numa mulher na rua – a ligação ficou muda. Na segunda tentativa consegui fazer a denúncia e “Está registrado, se der enviaremos uma viatura”. Voltei para acompanhar o ocorrido, a moça havia se levantado (ela chegou a ficar no chão) e as agressões e ameaças verbais continuavam. Mais alguns minutos e eles seguiram. A polícia não apareceu.

Não foi a primeira vez que liguei para a polícia denunciando o mesmo tipo de agressão. Num caso era minha vizinha de porta de apartamento. A última vez foi uma menina sendo agredida pela rua, jogada contra o portão de casa. Em nenhum caso a polícia se fez presente. Em todas, me senti tão amedrontada quanto as vítimas. Toda mulher sabe o que é isso. Todos os homens também deveriam saber. Em todos os casos, como nesta madrugada, várias pessoas foram testemunhas. Ninguém fez nada. Ninguém faz nada. Nós não fazemos nada. Nenhum homem parou o carro e defendeu aquela moça. Eu já disse aqui e repito: enquanto os homens não entrarem nesta briga, seremos só feministas, feminazis, mulheres de mimimi. Tem mulheres, inclusive, que pensam assim.

Não somos só estatísticas. Somos mulheres agredidas diariamente. A moça desta madrugada tinha menos de vinte anos, com um vestido lindo, corpete salmão e saia rodada de tule preto. O cara que a agredia era algum amigo ou namorado. Ela chorava e ele a chutava. Acusava-a de não ter noção e decência. Ameaçava “vou ligar pra tua mãe” e chutava aquele corpo bonito e jovem encolhido no chão. Depois, ela chorava mais alto e acusava-o de alguma coisa ao que ele retrucava “foi sem querer” e ela “é sempre sem querer”. Meninas, moças, mulheres: todas somos vítimas de relacionamentos abusivos. Percebam o tamanho da estupidez e segurança deste idiota ao ameaçá-la de telefonar para a mãe, pois ele tem certeza que ela jamais denunciará sequer à mãe a agressão.

Eu nunca consigo saber o que é maior: minha revolta, meu medo, minha empatia, minha insegurança, minha covardia. Eu voltei para a cama. Tive sucessivos sonhos ruins. Os traumas e lembranças não perdoam. Toda mulher vive com eles, escondidos lá num canto, sem querer vê-los, mas jamais serão abandonadas por eles. Era só uma madrugada de sexta para sábado, eu queria dormir até mais tarde, eu queria repor as energias e pensamentos das últimas semanas exaustivas. Aquela moça só queria divertir-se, dançar, aproveitar a vida. Nenhuma de nós teve o que queria porque a realidade de ser mulher nos assombra quando menos esperamos. Eu quero vencer o medo, quero poder fazer mais do que pedir ajuda quando testemunho uma igual sendo agredida. Eu ainda não consigo.

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