O assunto nosso de cada dia

Tem quem dirá que só falamos disso, sem perceber que a questão é que ainda precisamos falar disso. Eu não tenho mais conseguido assistir a um programa qualquer de TV sem me sentir mal com algumas observações. Não tenho conseguido olhar uma rede social qualquer sem me deter em determinadas notícias.

Ontem foi um ex-companheiro que agrediu uma moça de 19 anos e uma senhora de 59 porque não aceitou o fim do relacionamento. E foi a moça do reality show, que na final o marido ficou criticando-a (ajuda muito) e desmerecendo a forma como ela conduzia as coisas – com calma, equilibrada e muito bem planejada (foi a campeã, inclusive, sem a “ajuda” dele). Um marido que vai na TV mostrar que não conhece a própria esposa e ainda querendo mandar nela – como se ela não tivesse chegado lá (à final) sozinha, por mérito próprio.

Todo o dia é assim. Semana passada teve uma cena da novela da noite, o rapaz, mocinho da história, estava preso injustamente e ao receber a visita da mocinha, ex dele, deu murros contra a parede, gritava e chegava ameaçador bem perto dela – o famoso “se você não fosse mulher…”. Uma cena qualquer de novela, dessas que entram todos os dias nas nossas casas. Não era uma cena engajada que denunciava a violência psicológica que há na agressão verbal e ameaça física. Era uma cena normal, a mocinha chorava, ele fazia o papel de machão a socar a parede (como queria socá-la, não é implícito, sabemos) e ainda permeava a situação o comentário de que a mocinha, na verdade, é má, não presta, não é boa coisa. Porque sabemos que se a mulher não presta, ela merece violência. Aliás, tornou-se argumento até num último caso aí de agressão aluno-professor. Violência, se esquecemos, jamais se justifica. Jamais.

Eu acredito que tomei consciência, há algum tempo, de como é amplo o espectro de violência que nós mulheres sofremos. Mas o exercício cotidiano de identificá-los o tempo todo a nossa volta é mais recente. Porque a gente tenta não ver. A gente não quer ver, porque sofre junto. Eu vivo numa cidade onde, em oito meses, 90 mulheres foram estupradas. 90. Se esse número não é significativo ou assustador, então você só pode ser homem – e dos piores.

Eu via manchetes sobre violência dita doméstica. Eu comecei a acompanhar como isso crescia nos meios de comunicação, como casos com famosas ajudavam a dar visibilidade. Hoje eu leio cada nota que sai, para avaliar o tom do texto e da interpretação dada (porque há sérios problemas com isso, infelizmente), para saber o que está acontecendo ao meu lado, para dar um apoio velado a quem tem sofrido e tem tido a coragem de denunciar.

E, assim, tornou-me repetitiva. Sim, repetitiva. Porque é um processo, um processo pelo qual todos deveríamos passar. Devemos entender o que acontece ao redor. Devemos desenvolver essa capacidade de prestar solidariedade e aprender a nos posicionar. Sobretudo, aprender. Esse “excesso” de notícias não deve, porém, banalizar a mancha da violência contra a mulher. Mas, pelos últimos exemplos como os que eu citei, é fácil perceber que está entranhado nas nossas relações, está tão imersa a submissão da mulher, a violência que não se resume a socos e facadas, que é preciso muitos dedos apontados para as falhas que nossas atitudes denunciam todos os dias.

E, por isso, serei repetitiva. Por isso, voltarei ao assunto inúmeras vezes. Até, quem sabe, uma divertida e descompromissada sentada no sofá não seja mais um incômodo contato com o que há de pior naquilo que reproduzimos na vida real e na ficção, todos os dias. Porque ainda precisamos falar disso. Porque nossas meninas e moças nasceram nesse mundo de merda que oferecemos a elas, e depende de nós tentar mudá-lo e, também, fazê-las perceber que as coisas não devem ser “como são”.

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