As autovitimizações on line

A cena: uma mulher com o braço roxo no atendimento de plantão de uma clínica de ortopedia. Chega a filha esbaforida perguntando o que aconteceu, surpresa ao ver a mãe em pé aguardando um raio-X. Em seguida a mãe relata o ocorrido e outra filha aparece, também assustada. Depois surge o marido. Telefones apitam sem parar. O fato: a mulher estava andando numa rua em obras, passou um cara que tentou pegar o celular dela do bolso, ela reagiu e caiu na calçada esburacada. O relato: a primeira coisa que a mulher fez foi avisar a todos do Facebook e Whatsapp, falando em assalto, emergência, hospital.

Os celulares apitavam, ao que as filhas atendiam e contavam a história toda novamente, tentando acalmá-los, enfim, a mãe não tinha ido parar no hospital e estava bem (saiu com uma tipoia).

E bem nesses dias eu me perguntava sobre algo que foi ao encontro do que o escritor Miguel Sanches Neto materializou numa frase (nas redes sociais): Vivemos a era da autovitimização midiática? Uma espécie de performance on line dos constrangimentos sofridos?

Foi, também, por esses dias o fato do estupro de uma escritora por um motorista de Uber. Mas poderia ter sido qualquer caso. Não li, aliás, sobre o caso. Não sei porque, mas evito. Ou, também, não tenho tempo para me manter a par de todos os últimos mais novos escândalos do mundo virtual.

É simples: se eu fosse estuprada, qual seria meu primeiro movimento? Ligar a câmera do celular, relatar tudo e correr publicar nas redes sociais? Será? Por que tudo o que nos ocorre precisa ir imediatamente para o mundo on line? Para que tenham pena de mim? Para que me “solidarizem” (visto a falsidade absurda inerente a um “fica bem”)? Foi aquilo que nunca entendi sobre as selfies cotidianamente postadas: é para ler “que linda!” todo dia?

Talvez, é claro, eu que ainda não entendi alguma coisa. Ou quem sabe nos faltem pensadores para refletir sobre este novíssimo mundo. Eu realmente sinto falta de pensadores sobre o nosso tempo. Diante deste problema da autovitimização midiática e da performance on line eu lembrei do Benjamin, o Walter. Porque na mesma semana assisti a um filme no qual o protagonista era um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial vítima daquilo que foi identificado à época como uma dificuldade narrativa. Para resumir, os horrores da guerra eram tais que quem voltava não conseguia narrá-los, verbalizá-los, e tornaram-se pessoas de fato traumatizadas.

Quando eu vejo as pessoas correrem publicar seus eventos traumáticos e suas perdas eu concluo que não existem mais nem o trauma nem o luto. Porque são os dois momentos humanos mais íntimos que existem. Quando você passa por uma situação de violência, você tem toda uma experiência traumática nova, sua consciência e pensamentos precisam aprender a lidar com aquilo, o sistema nervoso desenvolve escapes e descontroles. Existe um tempo ali, e este tempo não é mais respeitado. Quando alguém próximo falece a primeira coisa que a pessoa faz é escrever uma publicação enorme e colocar dúzias de fotos. E a dor real da perda? Por que querer a comiseração alheia? E o silêncio inerente ao luto? Vejo muita foto de perfil em preto e branco escrito “luto” de pessoas que não fazem a menor idéia do que isso significa. Por que relatar as dores em tempo real?

É óbvio que cada um trata dos seus traumas e dores como bem entender. Mas, relatá-las em tempo real on line não é uma forma de lidar com elas. Isso é evidente. Acima de tentar narrá-las, que era o que faltava aos soldados da Primeira Guerra, vivemos nessa necessidade de exposição. Vivemos achando, agora, que precisamos contar a todos sobre o que nos acontece. Antes, ao menos, eram só as alegrias e a vida maravilhosa que (nem todos) tínhamos. Aos poucos isso se estendeu a tudo – até as maiores desgraças. Se esta constatação não te incomoda, sugiro parar a leitura.

Tudo começou com não vivenciarmos mais as nossas experiências. Lembram da piada antiga sobre os japoneses? Que eles viajavam e tiravam fotos, que só “viam” os lugares quando as revelavam ao voltar pra casa? Então, nós não casamos mais, não parimos mais, não cantamos mais parabéns, nem pegamos o canudo ou viajamos de férias. Nós só gravamos stories, ou publicamos posts e fotos. “Compartilhar” é a palavra maldita da década. Já paramos pra pensar por que compartilhamos todos os nossos momentos on line? Sim, porque há o outro lado, compartilhar a vida com as pessoas reais a nossa volta, aqueles a quem amamos e tal.

Por que todas as nossas ações precisam (tornou-se um caso de necessidade) ser publicadas? Daí foi um pulo para também publicarmos nossos desesperos, eventos traumáticos, acidentes, problemas e dores. Eu cairia no clichê dizer que não vivemos mais. O ponto não é este. A questão é não termos o nosso tempo para experenciar tudo o que acontece conosco. E assim, talvez, perder o que os fatos podem nos dizer no mais íntimo.

Gosta de praia? Foi à praia no feriadão? Senta lá com o pé na areia e aproveita o solzão, o mar lindo. Não fará diferença para ninguém saber onde você está (só para ladrões, por exemplo). Teu filho nasceu? Aproveita, dizem que é uma experiência única na vida. Preserva a imagem dele de fotos que caem no mundo obscuro da internet (nem todos teus “amigos” são amigos) e, sério, o que interessa aos outros saber com quantos quilos ele veio ao mundo?

Teu pai morreu? É duro. Fica ao lado da tua mãe, irmãos, aproveita os últimos minutos do velório (que são cada vez mais breves) para pensar nele. Esquece de rede social, pede pra alguém pegar a agenda do telefone e avisar aos mais próximos. Era assim que a gente fazia no século passado, sabia? Teu companheiro fiel morreu depois de mais de dez anos ao teu lado? Ô, dói. Chora em silêncio no quarto. Tudo isso leva tempo e silêncio pra gente aprender a conviver. Textão nenhum vai resolver – nem ajudar. Ah, e, claro, ainda não temos certeza que falecidos leem redes sociais. Pode ser inútil escrever para eles por este meio.

Casou? Aproveita a festa. Aproveita a lua de mel (que é a dois, por favor). Ninguém mesmo tem nada com isso. Agora, a gente desconfia das pessoas que não suportam viver a própria vida sem estar o tempo todo a publicar o que faz, sofre, ganha ou perde. E a desconfiança parece-me legítima.

E eu não poderia deixar de acrescentar uma crítica: as pessoas que usam essa autovitimização alheia para se promover. É uma crítica que eu tenho entalada aqui faz um tempo. Sabemos que a internet tornou-se a escada para muitas pessoas alcançarem o “sucesso”, dizem que um espaço mais democrático que dá visibilidade para artistas e afins que, numa outra época, ficariam sempre restritos aos produtores e interesses. Porém, utilizar a dor e o sofrimento do outro para ganhar cliques e compartilhamentos é demonstração de falta de caráter.

É complicado falar em exemplos porque alguns casos foram próximos. É como usar a preocupação dos pais com um jogo de adolescentes para promover o seu trabalho com campanha contra o bullying nas escolas. Ou usar casos de estupro, seja de funcionária da Globo, de anônimas no ônibus ou da tal escritora para promover a sua música que fala sobre a condição de ser mulher. Mas é geral, muitos perfis engraçadinhos e tal se utilizam dos “casos do momento” para autopromoção, nem aí para a situação trágica ou para a dor alheia.

A internet não veio com manual de instrução, eu sei. Por isso que na última década surgiram novos crimes e novas leis para tentar pôr ordem nesse território vasto e ainda nebuloso. O nosso comportamento deveria ser analisado minuciosamente – senão pelos pensadores contemporâneos que nos faltam, por nós mesmos. Porque parece-me que nem todos os casos são de pessoas carentes de atenção. O problema, como eu sempre digo, não é a coisa/objeto/meio, mas o uso que fazemos deles.

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