A mesa estava finamente decorada. Era o primeiro ano, em décadas, que não seria dona Lourdes a fazer a ceia do Natal. Ela preparava cada detalhe, durante uma semana, desde a louça que seria usada, os guardanapos decorados, até o peruzão recheado e assado durante horas para satisfazer todos os familiares, entre filhos, filhas, netos, genros, noras e agora até bisneto. A família era grande e, por isso, palpite não faltava. Mas dona Lourdes mantivera o poder em suas mãos: a ceia era sempre na casa dela, feita por ela.
Naquele ano ela esquecera o fogão ligado duas vezes, à noite. Também batera o carro pela primeira vez, porque não viu um pilar na garagem do prédio da filha mais velha. Aos burburinhos os parentes decretaram: ela estava velha. Um Alzheimer, talvez, em fase inicial. “Mãe, você já não pode fazer isso”, “Vó, não quero que a senhora fique sozinha” e todas aquelas preocupações. Desde a viuvez, há mais de vinte anos, ela tomara as rédeas da própria vida. E agora a consideravam gagá. Imprestável, inútil, incapaz.
Por isso, naquele dia 24 ela havia orientado a arrumação da mesa – tinham medo até que ela quebrasse a porcelana italiana, que algumas noras cobiçavam – e ficara sentada na sua poltrona. Fizera apenas duas exigências: a ceia teria que ser na sua casa e feita por alguém da família. Como ninguém tinha tempo, a nora, esposa do filho mais velho, se dispôs. Dona Lourdes, sentada ali, observava o vai e vem. Da cozinha vinha um cheiro indefinido. A nora estava com olheiras e gritava com os filhos.
– Oi, vó! Já está aí? – era sua neta mais nova, acabara de chegar de férias, pois estudava em outra cidade.
– Oi, minha querida! Estou só de olho. – cochichou a avó com um sorriso matreiro.
– Nem vou querer jantar, viu. Se não é a sua comida, nem quero! – disse a neta ao pé do ouvido da avó.
– Não se preocupe. Faremos jejum! – e dona Lourdes caiu numa gargalhada.
Todos sabiam do apreço da avó pela neta mais nova. Eram opostos, porém. Dona Lourdes fora criada como antigamente, o trabalho da mulher era cuidar da casa, do marido, dos filhos, aprendera a bordar, costurar, cozinhar, limpar e a artrose espalhada pelo corpo testemunhava quantas vezes ficara de joelhos a esfregar o chão – da loja de relógios do marido, inclusive – e quanta roupa lavara no tanque para que os filhos fossem impecáveis à escola. Laura tinha nem vinte anos, dez tatuagens, uma lista de ex-namorados que nem ela sabia de cor, o cabelo roxo, era feminista de ir às ruas, não sabia fritar um ovo e, somente nisso deixava sua avó horrorizada, usava roupas rasgadas. Nem preciso mencionar que Laura era o patinho feio, a ovelha negra, e o pai se alegrou quando ela decidiu estudar História na capital – ele não sabia conviver com a filha.
A família foi chegando, a nora se estressando, os presentes engordavam o chão da sala aos pés da árvore de Natal. A noite prometia. E dona Lourdes, impaciente, sentada na poltrona. Nunca ficara sem fazer nada na vida.
Anoiteceu. Risadas e presentes.
Foi quando o neto do meio, entre tantas netas, veio do banheiro.
– Vó, tá um cheiro ruim lá na cozinha. A vó não quer dar uma olhada?
Dona Lourdes, depois de abrir uns pacotes com toalhas e meias, levantou-se prontamente. Ela era necessária, então. Correu a passos firmes para a cozinha. O desastre era completo. O peru tivera perda total. Torrado por fora e cru por dentro. O risoto grudara na panela. A salada estava puro sal. A farofa queimara. A nora, que estivera cochilando sobre os braços na mesa da sala, ergueu a cabeça e chorou. “Tanto trabalho, meu Deus, mas, também, ninguém pra me ajudar…” e as lamúrias não foram poucas.
– Vou anunciar que não teremos jantar. – disse dona Lourdes seriamente.
– Mas, mãe, como não teremos jantar? As crianças estão mortas de fome. Eu também, claro. Como que alguém não consegue assar um peru?! – o filho demonstrava toda sua compreensão.
– Alguém? Por que, você consegue, Maurício? – a mãe repreendeu-o enquanto se dirigia à sala.
– Vó, espera aí. Te digo, eu resolvo, tá? – era Laura – Deixa comigo, nem fala nada com ninguém, eu já volto. – Amore, vem cá. – o namorado da vez, que ninguém ainda havia decorado o nome, veio e ambos saíram.
Dona Lourdes olhou e olhou. Não sabia como pegar aquilo direito. O silêncio de todos diante da mesa arruamda fora quebrado pela algazarra das crianças, contentes diante de tanta batata frita e hamburguer. Laura fizera as honras e dava mordidas satisfeitas no seu lanche.
– Bisa, tá delícia! – era o bisneto mais novo, dois aninhos.
Orgulhosa pelos créditos, porém lambuzada de ketchup e maionese e um hamburguer fugindo pelo canto do pão, dona Lourdes arrematou:
– Então é isso que vocês comem quando não estão na minha casa, é? – e sorriu para Laura.
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