Passagem de Volta – o conto

Sentou-se e admitiu em silêncio: estava cansado. Mais uma semana de trabalho naquele ritmo e ele desejaria três meses de férias. Alguma praia tranquila, água transparente, os doloridos pés sem sapatos enterrando os dedos na areia fina. Aí lembrou, a esposa detestava praia. Férias era sinônimo de viajar para a casa dos pais dela no interior. Há sete anos ele não tirava férias, dos dez de casado.

Pediu um café forte e simples e espantou-se com o preço. Além da passagem cara, por ter sido em cima da hora, agora esse assalto no café. Três noites sem dormir para resolver aquele negócio e ainda essa viagem e o irritante atraso no voo. Em algumas horas teria que estar de volta.

Chamada após chamada e nada do voo dele ser anunciado, sequer uma explicação estapafúrdia sobre o atraso. Seu pessimismo sussurrava que o voo seria cancelado. Foi até o balcão apinhado de pessoas indignadas para ser só mais um a reclamar – como se os funcionários já não soubessem que todos ali estavam injuriados, tinham conexão, reuniões, tudo muito importante. Ouviu uma moça da companhia aérea explicar que havia um avião com problemas na pista, o que atrasava todos os outros. Rodou mais um pouco pelo aeroporto, a fome, que seria saciada com o lanche do avião, se fazia sentir. E finalmente chamaram para o embarque.

Foi um rebuliço. Enquanto todos lamentavam o atraso e criticavam a empresa, ele sentou, retirou uns papéis da pasta e começou a fazer anotações. Tão logo deu uma olhada para a cidade vista lá de cima, cochilou. Era uma pena que as viagens de avião encurtassem o trajeto mas não prolongassem o tempo, pois ele dormiu muito bem.

Saiu correndo em direção ao metrô. Tantas vezes estivera ali que agia maquinalmente, era só mais um dia de trabalho com uma infinidade de problemas para resolver. Seguiu a procissão, cartórios, advogados, contadores, registros, documentos e mais documentos. Cinco horas depois deslizou na cadeira de uma lanchonete e pediu o sanduíche de pernil de sempre. Devorou-o enquanto revia os documentos. Só faltava um último registro num cartório imobiliário mais para o centro, perto do hotel. O hotel. Ah, suspirou! Sonhava tirar aquele sapato. Tomou um copo de suco de laranja em um único longo gole, passou o guardanapo nos lábios, pagou e saiu.

O hotel não tinha nada de especial, só era bem localizado. Havia demorado mais do que ele imaginara, pois os trens do metrô estavam em pane. Pegou a chave sem sorrir para a recepcionista, entrou no elevador, escorou-se no espelho da parede interna e subiu.

Abriu a porta do quarto e tirou os sapatos antes mesmo de fechar a porta. Jogou-os para o lado, afrouxou a gravata, tirou toda a roupa e tomou um banho quente. De pijama, sentou na cama com o computador no colo. Precisava ler uns e-mails do escritório para adiantar o trabalho de amanhã e fazer o check-in do voo de volta.

Começou a suar. Não era possível. Estava igual aos seus companheiros de voo, excomungando a companhia aérea e maldizendo “com essa nunca mais”. Tentou, pela milésima vez, fazer o check-in. E nada. Não tinha guardado o comprovante do embarque da ida. E o sistema acusava que ele não tinha embarcado. Revirou sua caixa de entrada do e-mail e lá estava: seu bilhete fora cancelado porque não houve embarque no voo determinado, portanto a volta também não existia. Como voltar de um lugar para onde ele não tinha ido?

Levantou, deu uma dúzia de voltas pelo quarto coçando a cabeça. Tentava encarar a situação com alguma lógica. A companhia não havia registrado seu embarque, o bilhete não existia mais para prová-lo, somente, talvez, as câmeras do aeroporto o vissem entrando no finger. Mas as câmeras do aeroporto do destino talvez também o tivessem registrado. No mais, era uma pessoa desaparecida. E isso cresceu mais nos seus pensamentos do que o fato de que não tinha passagem para voltar para casa – teria que travar uma briga estúpida com o sistema e os funcionários da companhia aérea, pagar taxas e mais taxas ou simplesmente pagar (mais) um absurdo por uma passagem de volta.

Ele sumira, aos olhos do sistema. Se ele não desse as caras amanhã em casa nem no escritório, ele estaria desaparecido. E ao investigar, a polícia se depararia com o registro do sistema: ele não embarcou, senhor. Se ele não havia embarcado, não havia chegado ao destino. Ou seja, teria desaparecido no aeroporto de origem – na cidade onde morava. E as investigações nem chegariam até a cidade onde ele estava. Aliás, nem a ficha do hotel ele tinha preenchido ainda, pois estava muito cansado e pediu para fazer isso depois – e os funcionários do hotel eram muito relapsos e sempre mudavam. Não seria fácil identificá-lo. Ele poderia sumir sem nem pagar, jamais saberiam que ele estivera lá. Isso se a investigação chegasse até o hotel.

Pensou na esposa. Ficaria em choque. Pensaria em assalto, que ele teria reagido e fora assassinado – ela sempre se preocupara com isso. Dias depois ela já teria certeza que ele havia se envolvido em algum esquema grande de corrupção – ela desconfiava dele, sempre, porque não via que o dinheiro vinha dos intermináveis dias de trabalho e não de negócios escusos. Ela o acusaria para a mãe dele. E talvez as duas acabassem concordando que fora, afinal, assassinado por ter se envolvido com a mulher de alguém.

Uma euforia tomou conta dele. Ele não existia mais. O fardo da existência havia sido retirado das suas costas. Sentia vontade de beijar a companhia aérea, abraçar seus aviões, seus pilotos, suas funcionárias simpáticas e prestativas. Ele não era mais ele mesmo – poderia, então, ser quem ele quisesse. Poderia inventar-se a si mesmo. Mas queria aproveitar este momento de não ser, absolutamente, ninguém. Não. Melhor. Ele não era “ninguém”. Ele simplesmente não existia. Mas, para isso, precisava cuidar dos vestígios.

Decidiu destruir o computador e sair do hotel na calada da noite. Arrumou a mochila, colocou a roupa. Estava pronto. Pegou o elevador e ninguém diria que aquele homem alto, peito inflado, sorriso escancarado era o mesmo que aquela coisa murcha que havia subido, horas antes, apoiando-se em tudo para não cair no chão. Desceu do elevador e aguardou atrás do pilar até ter certeza que o porteiro noturno dormia com seu fone de ouvido. Saiu em silêncio e ganhou a rua como se tivesse matado um leão. Era um ato heroico.

Já tinha tudo planejado. Possuía uma conta bancária que ninguém conhecia. Era onde ele guardava o dinheiro do sonho de construir um barco quando se aposentasse. Aquele homem que entrara no hotel estava anos-luz de se aposentar, mas com o dinheiro da conta já era possível construir uns dez barcos. Agora, aquele homem que caminhava lépido não tinha trabalho do qual se aposentar. Levaria alguns dias para retirar todo o dinheiro da conta, mas o faria. Ele nunca fora adepto de cartões, sempre usara dinheiro vivo – mais um dado que impediria que ele fosse rastreado e que faria sua esposa insistir na tese do assalto.

Tinha tudo pela frente: a vida, a madrugada, a escolher um destino. Pensou na praia. Em menos de duas horas chegaria até a mais próxima. Pegou um táxi e falou bem alto, com todas as letras “Vamos à praia, meu senhor”. O motorista temia mais um louco na madrugada. Combinaram o pagamento antes e seguiram.

Ao chegar, tirou os sapatos e as meias e deixou-os junto à mochila na calçada vazia, arrebentou a carcaça do computador e jogou-o numa lixeira. Correu dando saltos desajeitados até enfiar com gosto os pés na água gelada. Imaginou-se dono de um bar em qualquer praia quente do país. Viveria entregue à delícia de ouvir, dia e noite, as ondas quebrando na praia. A decisão estava tomada. Não almejava nada mais. Não queria ser ninguém. Inventaria algum nome fora de suspeita, nunca mais usaria sapatos, nem gravatas, nem no casamento da filha.

Começou a chorar. A filha, ela adoraria estar ali aos seus pés brincando na areia, enchendo o balde com a água do mar. Teria que saber viver sem ela, como, aliás, vivia todos os dias, assoberbado de trabalho – daria no mesmo. Mas não daria o infalível beijo de boa noite. Não contaria histórias mirabolantes sobre animais fantásticos nas noites de sábado insinuando-se para que ela fizesse o convite: pai, vamos dormir no sofá? Era pouco. Muito pouco. E já sentia que este pouco lhe faria muita falta.

Viu o sol nascer. E guardaria para todo o sempre aquele momento. Dele lembraria quando estivesse internado, aos sessenta e quatro anos, sem aposentar-se, trabalhando dezoito horas por dia, com a poupança para o barco com dinheiro para construir uma frota, depois de um infarto fulminante que levaria sua vida após dez agonizantes horas entubado e sobrevivendo por aparelhos.

Caminhou descalço pela orla até encontrar um táxi. Era o mesmo que o trouxera. Seguiram em silêncio até o aeroporto da outra cidade. Ele pagou em dinheiro, o que tinha retirado pra viagem, pois nem havia tocado na poupança do barco. Entrou no aeroporto com seu ar-condicionado gelado. Arcado, parecia ter dez centímetros a menos. Olheiras. A mochila numa mão, os sapatos na outra. Aproximou-se do balcão da companhia aérea, colocou os sapatos no tampo, tirou a carteira. “Oi, eu preciso embarcar. Mas eu não existo pra vocês. Vê aí o que a senhorita pode fazer” e a atendente, tão acostumada às bizarrices dos passageiros aéreos, deu um passo temeroso para trás. “S i i m, senhor”.

Ele não existia, é claro, porque ele não embarcara, o senhor pode ver aqui, temos a lista de passageiros, se o senhor conseguisse provar a sua existência, quer dizer, o seu embarque, tudo estaria resolvido. Tinham um voo para dali uma hora, lotado, é claro, o senhor entende. Não conseguiriam resolver o não-embarque, então, veja, o senhor pode solicitar o estorno posterior desta passagem. E agora só dali seis horas, um voo não direto, veja bem, com escala de duas horas numa outra cidade mais ao norte. Resolveria o seu problema, não é mesmo? O valor era alto, é claro, mas o senhor entende, restam poucos lugares. Mas teria a certeza de embarcar hoje, com menos contratempos, não é mesmo?

Ele ouvia. Só movimentava a cabeça. Tirou o dinheiro do bolso, jogou no balcão. Seis horas naquele aeroporto, mais uma hora e meia de trajeto, mais duas horas de conexão, mais uma hora de trajeto. E aí estaria de volta. Com um último suspiro de quem não existia, tomou a decisão que enfrentaria o que fosse, não importava, desde que sem os sapatos e apreciando a sensação da areia ainda entre os dedos. Ninguém o obrigaria a viajar com sapatos.

Virou as costas, caminhou a esmo. Sentou-se na cadeira e pediu um café. O dobro do preço do café da ida. Pagou e tomou-o bem devagar.

(Conto original que foi adaptado para roteiro e foi produzido, agora disponível online em: https://youtu.be/HDow-fMA5xA)

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