Poderia ter ficado com peso na consciência – de fato não fiquei porque este tipo de lamúria não me atrai. Mas troquei voluntariamente e sem muita frescura um filme brasileiro por um argentino. Fato, também, é que tenho ao longo dos anos tido mais alegrias com os argentinos. Dos fatos não há como fugir, apesar de tanto dizerem por aí os historiadores obscuros que não há “fato”.
Qual brasileiro foi preterido? “À Beira do Caminho”, cuja atração foi tão somente o fato de ter músicas do Roberto Carlos. Para me ganhar é preciso me atrair em tudo, não só nisso ou naquilo. Então fui de drama argentino.
Todo drama argentino tem pitada cômica ou é impressão minha? O cinema argentino conta com excelentes roteiristas, o que não é nem de longe o caso brasileiro. Se a direção argentina tem um excesso aqui outro ali, é perdoada porque arrisca e as produções, em geral, cometem seus pecados porque não fazem cinema estrondoso – o que é excelente.
Eis que depois de ter duas aulas bem boas mas uma das mais desanimadoras de todos os tempos, antes de recomeçar os trabalhos, passei no Burguer King e comprei uma torta de chocolate (daquelas de derreter na boca, como eu adoro). Já tinha dado uma olhada nos filmes em cartaz, minha curiosidade se deteve em “O Dedo”. Porém, o horário dele não era conveniente. Restava o brasileiro. Mas, ao chegar lá (com um pouco de dificuldade, sim, eu me perco em shoppings) eis que havia um argentino em cartaz. Pergunto pra moça “e aí, o argentino é drama?” (“O Dedo” era comédia, mas as comédias argentinas nem sempre ganham meu coração). Ela lê e relê um papel e diz que sim. Então, beleza, esse aí mesmo.
Era sexta-feira, mas não havia nem dez pessoas na sala, aí já amei.
Eu não sabia nada da “história” do filme. O que, aliás, eu também adoro. Já de cara percebi que era mais um filme argentino da época da ditadura (da deles, bem entendido). Aí pensei: pô, mais um.
Sim, mais um. Um filme com direito a flashback, a protagonista ser a mesma em três ou quatro épocas diferentes e só mudar o corte e a cor do cabelo, sem cenas de conflito, dramalhão assumido.
E é aqui que eu me detenho. Assumir. Você só consegue assumir aquilo que é (sejam pessoas ou obras) quando você sabe o que você (ou aquilo) realmente é. Este é o princípio. Filmes que nem sabem “o que” são, não conseguem se assumir.
“Verdades Verdadeiras, A Vida de Estela” é daqueles filmes que sabem o que são, dizem a que vieram e não precisam de mais nada. Se eu tivesse lido a sinopse antes, provavelmente não teria ido assistir. Parece o tipo de filme para malas acadêmicos. Não me preocupei com o aspecto “histórico” do filme (nem seria daqueles a sair dali fazendo referência à abertura dos arquivos da ditadura e blábláblá), nem com a relação com a história do Brasil, nem com a questão política. Aliás, nem o filme se preocupa com isso. Ele se detém no drama de uma mãe/avó, esta, aliás, se esquiva da política desde o começo. Os jovens bobos, inocentes e protótipos de heróis é que discutem política, escrevem jornaizinhos e acham que estão “lutando”. A dor, ah! a dor, resta aos pais. Pode ser uma visão mortificadora de toda uma resistência aos regimes totalitários, à violência, à perda de direitos. Porém, esta é a essência do drama. Ninguém lê os livros de Jane Austen (ou assiste aos filmes) e se detém nas questões morais da época que ditam atitudes, isso passa longe, o que resiste é o drama.
O drama não exige análises mais profundas sobre contexto, conjunturas (palavra cara aos historiadores), política, filosofia, nem nada.
E é aí que eu quase cheguei às lágrimas (é difícil me fazer chorar, mas mais fácil chorar com um filme do que na vida real) ao ver o reencontro do filho com o pai.
Há um elemento agoniante no filme: a reconstrução da memória, empreendida pelos familiares e pessoas próximas, os depoimentos e objetos coletados para o filho/neto que é buscado. Em vários momentos do filme vemos a gravação de depoimentos de pessoas que contam como era o pai/mãe desaparecido (morto, provavelmente), narram momentos de alegria passados, contam os últimos momentos de uma relação que acabou logo no início. Este é o trabalho do escritório criado pelas avós, cada criança (nascida nas prisões argentinas durante a ditadura) cujo desaparecimento é acusado, recebe uma caixa com seu nome e onde estas fitas e objetos são depositados. A caixa fica ali, guardada, crescendo, até que a pessoa seja encontrada. O único caso que vemos uma caixa desta ser entregue ao seu “dono” é o do filho do gordo. Há uma supressão do sentido daquilo quando o rapaz (um homem, praticamente) abre a caixa e encontra uma roupa de bebê e uma chupeta. Sua mãe foi levada quando estava grávida. Aquela caixa constitui-se em valor e cheia de sentido para os que a fizeram – o pai e os outros que ali se encontram – mas parece distante do filho encontrado.
Assim são as nossas lembranças. Sejam aquelas que guardamos em caixas pelos nossos “escritórios das avós” ou nas nossas cabeças. Elas só fazem sentido para nós. É a mesma sensação quando, numa conversa, citamos uma lembrança de um fato ou de alguém e a outra pessoa nos olha como se dissesse “é?”. A lembrança dela nunca será a mesma que a nossa. Ou ainda quando alguém encontra esta nossa caixa de lembranças – comum acontecer quando o dono da caixa falece e as pessoas próximas são obrigadas a mexer nas coisas dela – e vê cartões, bilhetes, flores secas, um isso, um aquilo e não vê, ali, uma vida inteira.
E talvez, também, assim seja o filme. Um caixa de lembranças vívidas da Argentina, que para muitos (argentinos inclusive) não faz sentido.
Ousaria dizer que é a história de uma família, como a minha, a sua. As atuações podem claudicar de vez em quando, o texto não é nenhuma obra prima, o roteiro pode ser um pouco piegas ali ou aqui (como na metáfora do pior flashback da mãe procurando a filha quando criança). Mas é um drama que se assume.
Ele deixa a maior lição (inclusive para o cinema, ou principalmente para este) para o final: o verdadeiro final feliz é a esperança. Porque a esperança não é concreta. Estela não encontra seu neto, dos 500 desaparecidos apenas 107 encontraram. “Por enquanto”, palavras do filme.
Não vou me deter demais, mas obviamente lembrei dos russos. Este é um final russo por excelência. Finais felizes com beijinho dos protagonistas num cenário lindo é só para a ficção que nem sabe a que veio.
O filme, ao que parece, está em cartaz no Floripa Shopping. Só procurar.
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