O bem, o mal e dois gatinhos no bueiro

Hoje o dia começou com o seguinte diálogo:

“Ele seria feliz comigo.” (disse eu) “E você, seria feliz com ele?” (a resposta-pergunta veio de sopetão) “Eu sofreria. Mas, eu gosto de sofrer.” (finalizei)

 

E foi o dia para pensar o quão incomensurável são o bem e o mal. Seja na proibição instituída por um governo, seja no caráter de uma pessoa, seja no meu amor passional.

 

Pensando nisso, nessa dificuldade, segui meu caminho. Ia para um lado, acabei, por circunstâncias da vida, indo para outro. Nem tive tempo de me irritar porque não iria para o meu canto favorito da Ilha. Estou pondo fé no Destino.

 

E eis que entre fotografias, pensamentos, longas caminhadas, estava eu ali em algum ponto entre a Caicanga e a Caeira da Barra do Sul. Do nada quatro olhinhos me chamam a atenção.

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Vejo, fotografo, paro e penso. Não, de novo não. Não, não posso deixá-los aqui. O risco deles serem atropelados era gritante. Estavam na beira do trecho onde é mangue. Ninguém por perto. Penso. Começo a chamá-los, tento atraí-los e o laranja já estica a pata com as unhas e abre o bocão. Não, gatos não gostam de mim. O cinza ensaia sair e o laranja parece o protetor, não deixa e ainda quer defendê-lo de mim. Chamo, tento atraí-los, penso. Eles se enfiam mais no buraco, estão muito assustados. Dou uns passos adiante e olho para trás: os dois estão com metade do corpo pra fora me espiando. Impossível ir embora e deixá-los ali.

 

Volto e continuo minha saga. Carros passam e buzinam reclamando de eu estar ali na rua tentando tirar os dois teimosos. Aí aparecem três meninos de bicicleta. Perguntas. Eu mostro os gatinhos e a operação de resgate começa.

 

Um deles, um pouco mais velho, com um cabelo laranja lindíssimo e sardas, assume a liderança. Eu pergunto se algum mora perto, nem que seja para ficar por uns dias, eu daria um jeito de encontrar quem pudesse adotá-los. Eu, antes deles aparecerem, já havia resolvido colocá-los na mochila e trazer pra casa. Ia dar um jeito. Não poderia ficar com eles, mas encontraria quem pudesse. O menino ruivo, Eli, diz que vai ficar com eles, que já tem uns e pronto. Os bichinhos é que não queriam sair por nada. Nós quatro em volta da tampa do bueiro, o cinza, mais amigável, sai mais fácil. O outro se joga mais para baixo. Aí aparece uma mulher e resolve ajudar. Eu digo que o melhor – talvez único – jeito é tirar a tampa. Você já ergueu uma tampa dessas? Pois é.

 

Enquanto isso, passa um casal. Sabe aquele tipo de pessoa que sempre tem palpite pra tudo? Pois é. A mulher começa o discurso “ah, acharam um ninho de gato?” (gato faz ninho, vai ver) O laranja, quando ouvia o outro, ensaiava sair. Mas não esquecia das unhas. Aí o cara deita na tampa e começa a enfiar o braço no buraco “ah, não adianta, agora ele caiu lá, já foi”. Confesso que meu auto-controle é um lindo. A mulher insistia “Larga esse aí, deixa ele ir lá com o irmão, ele não quer sair”. Eli levanta a voz naquela confusão e diz “Não, eu vou levar pra casa. Não vou deixar aqui, podem ser atropelados, qualquer coisa.”, a mulher faz careta e solta “Ah, que bom, que coisa boa, né?” e, felizmente, vão embora. Sabe o tipo de pessoa que não ajuda, que tem uma mentalidade infeliz? Pois é.

 

Não dava pra deixar de perceber o bem e o mal dançando…

 

Nos juntamos e depois de umas tentativas eis que conseguimos levantar a tampa. O gatinho se assustou e se jogou na água, sumiu. Momento mais desesperador. Resolvemos então jogar a tampa para o lado. Erguemos de novo e felizmente lá estava ele, tinha conseguido nadar de volta. Confesso que meu coração, apesar das vozes até negativas na nossa tentativa de salvamento, deu um nó quando ele se assustou e sumiu na água. Não poderia causar mal a ele enquanto tentava salvá-lo.

 

Um deles pegou-o e ele abriu o berreiro e pulou. Fui eu pegá-lo. Fui arranhada e abocanhada. Sim, duas mordidas daquela boquinha minúscula e meu dedo começou a sangrar. (Seguiu latejando e agora está inchado com as marcas dos dentes – se não der febre nas próximas horas, beleza, sem infecção. Não se preocupem, a UPA é aqui do lado.)

 

Agora a dúvida era como levá-los, tirei o casaco e a bolsa da câmera da mochila e colocamos os dois ali. Havíamos decidido, ele não morava muito longe, eles me acompanhariam de bicicleta e eu iria à pé com os bichinhos na mochila.

 

Devo abrir um parênteses para contar minha relação com os gatos. Nunca gostei deles. Ou eles nunca gostaram de mim. Sempre tivemos cachorros, então gatos eram os chatos que passavam nos muros fazendo com que eles latissem muito. A primeira vez que peguei um foi quando caminhava à beira de uma estrada do interior debaixo de uma chuva torrencial. Era um laranja também, minúsculo, que pulou na minha frente. É claro que peguei-o (com toda a dificuldade do mundo e muitas unhadas) e não poderia deixá-lo ali. Caminhei alguns quilômetros com ele e deixei-o seguro no banheiro de um restaurante na estrada. Não tinha como levá-lo. Ele, em agradecimento, fez xixi em mim. Coisas da vida. Eu tinha uns vinte anos. Depois eu adotei uma gatinha para dar de presente. Atravessei a Lagoa com ela na mão, até o Canto da Lagoa. Ela também queria me enfiar as unhas. Enfim, depois eu peguei-a de volta de quem eu havia presenteado. Um dia, voltei pra casa e tinha uma laranja deitada nos degraus da porta. Essa me adotou. Entrou em casa e ficou. Nada arisca, uma loira-louca. E, enfim, as amo. Mas gatos, no geral, ainda não gostam de mim. E se você me encontrar andando com um gatinho na mão por aí, não estranhe.

 

Não sei o que há nisso de encontrar gatos em beiras de estrada. Enquanto caminhava (a casa do Eli nem era tão perto assim), pensava na discrepância entre as pessoas. Eli, além de lindo, é um menino inteligente, voluntarioso, decidido. Olhava pra ele e pensava que quero ter um filho assim – ruivo e tudo. Eles criticaram um babaca que fez um racha com ultrapassagem perigosa na nossa frente. Eu pensava “então a humanidade não está perdida”! Eles me acharam uma louca por estar lá caminhando. Quando eu disse que morava no Campeche ainda perguntaram “mas você vai à pé até lá?!” com olhos esbugalhados. Não, não iria. Só ia caminhando até a casa da senhorinha que faz picolés iguais aos que a minha avó fazia, ali no Ribeirão, perto dos restaurantes.

 

O bem e o mal são mesmo incomensuráveis. Enquanto existem pessoas tão más a ponto de abandonar dois gatinhos à beira de uma estrada, existem pessoas de coração tão bom como o Eli, para levá-los para casa. O bem e o mal podem ser incomensuráveis, mas as pessoas não. Pessoas são boas, ou são más. Eu achava que fazer o bem era normal, obrigação até. Fiquei pensando que não sou o tipo de pessoa que anda por aí arrotando suas boas ações, mas as pratico. Não vou elencá-las aqui. Mas é um hábito, realmente. Quando criança eu achava que doar roupas, remédios, comida e utensílios, várias vezes ao ano era normal. Eu realmente achava que todo mundo fazia. Sim, foi um choque descobrir que não. Minha mãe me mostrou, talvez até sem querer, a importância de fazer o bem.

Também minha mãe me fez amar animais. Que tipo de pessoa faz mal a um animal indefeso? Ainda o tipo de covarde que não matou os gatinhos, deixou-os ali para serem atropelados. Sim, porque a idéia de que alguém os encontraria era só para acalentar sua consciência putrefata ao deitar no travesseiro.

 

Não sou daquelas que vive publicando fotos de animais para adotar, nem que faz campanha contra venda de filhotes, nem nada. Porque acredito em atitudes. Se certas pessoas tivessem salvado tantos animais quanto fotos deles que compartilham no Facebook, não existiriam animais nas ruas.

 

Eu estava precisando disso. Foi o complemento perfeito para as últimas reflexões. Ando cercada por pessoas egoístas, pessoas ruins, pessoas oportunistas. E comecei a pensar o pior (mais do que normalmente faço) de todas. Nem levei a sério o flerte do taxista para virarmos a madrugada passeando porque pensei que ele só queria o meu dinheiro. Não tenho visto ninguém com bons olhos, sempre espero (más) intenções, interesses. Do nada vejo Eli, minha esperança na humanidade, sendo aquilo que, sim, muitas pessoas ainda são. Eu não sou uma pessoa (completamente) ruim, mas a maldade que já me fizeram criaram essa casca grossa de auto-defesa. Só sou ruim porque a vida me ensinou a ser. Mas nem sou tanto assim, vai. Tenho esse lado passional-sofredora, mas é por esporte. Não é bom perder o hábito de se machucar com a vida. Quando você acha que ela não vai te dar mais nenhuma rasteira é que a coisa dói mais. Tento ver esse lado bom da vida, mas sempre com os olhos atentos. Olhos atentos (tanto me perguntaram como eu tinha visto os gatinhos no bueiro) que andam por aí observando… é um hábito.

 

Os gatinhos conheceram seus irmãos, estavam mortos de fome, o laranja continuou arisco (nem quis sair da mochila) e chegaram na casa do Eli dormindo agarradinhos. Só quem já viu dois gatinhos dormindo juntos sabe quão lindo é isso. A maldade das pessoas é que não permite que vejam. Eli tem mais três filhotes, um foi atropelado na frente dele e ele tratou e adotou e os outros dois foram abandonados na estrada perto da casa dele. Só muito coração para isso. Enquanto há pelo menos três pessoas ruins o bastante para abandonar cinco gatinhos, há um Eli para adotá-los. Estou ou não estou certa em admitir que há, ainda, bondade e pessoas boas no mundo, mas sempre com uma pitada de desconfiança? Um Eli para cada três criaturas que nem chamo de “ser humano”.

 

Depois fui caminhando até a senhorinha do picolé. Já estava fechado. Quase chorei. Depois de tudo, eu só queria um picolé. A lojinha onde eu queria ir também estava fechando. Lá se iam muitos quilômetros…

 

Nada é por acaso. E, sim, tenho essa mania de refletir, pensar e repensar em tudo. Andava tão desconfiada das pessoas e das suas intenções, tão blasé para os sentimentos sinceros dos outros, que não percebia certas delicadezas da vida. Eli, espero que o mundo não destrua essas coisas boas que você tem na cabeça e no coração. E, se destruir, espero que você tenha a mesma capacidade que eu de sempre conseguir revê-las. O bem e o mal são incomensuráveis, mas as pessoas não. Independente da proporção, ainda há pessoas boas e ruins por aí… só resta estar atento para saber decifrá-las. Eu diria que nem é tão difícil, mas tem que estar disposto.

 

 

3 comentários em “O bem, o mal e dois gatinhos no bueiro

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  1. rsrs eu sou louca pra ter, só não me jogo ainda por causa do trabalho e da instabilidade. Mas, não sou do tipo que acha que tem que ter tudo perfeito pra ter filho não… rs Planejo pra depois dos 33, ainda tenho 5 anos! hahaha

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  2. o seu texto me fez pensar em muitas coisas… Mas, acho que o que mais marcou foi o que falou da sua mãe. Quero ter muitos filhos, na realidade penso em parir uma vez só, mas quero adotar, quero família grande, muita gente… sempre quis… E a minha maior preocupação e meta como mãe é que meus filhos sejam boas pessoas. Com um bom coração! E acredito muito que o exemplo é o maior meio de educar.

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    1. Essa preocupação com os filhos, além do receio da perda e de que eles vão, fatalmente, sofrer, foi o que me impediu de querer ter filhos por um bom tempo. Mas, não adianta, quero. E em breve. Fiquei até revoltada quando vi as regras para adotar. Enfim, eu quero um Eli! 🙂 Ruivo, lindo, inteligente e com um coração maravilhoso. Sempre fui fascinada pelos meninos ruivos, meu passado que o diga! hahahaha Exemplo é tudo, sempre penso nisso quando vejo um pai dirigindo e falando ao celular com o filho ao lado, essas coisas. Devo dizer que minha mãe e minha avó são as culpadas pelas melhores coisas em mim. E tenho certeza que serás uma excelente mãe! (aliás, como diz uma prima da minha mãe “Vocês ficam aí ensaiando e não têm filhos! Chega de ensaiar!”.

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