Prefiro sofrer em Florianópolis

Estava conversando sobre a próxima tatuagem (voltei de viagem com uma especial para fazer e ainda falta a anterior) com a amiga e ela disse que sempre estranhou eu não querer nenhuma relacionada ao mar, pelo tanto que gosto dele. Fiquei surpresa, nunca tinha pensado nisso. Matutei a idéia… mas tatuagem relacionada ao mar? Mais algum verso, quem sabe. Golfinhos nem pensar, tenho horror a tatuagens de golfinhos (quando fizer um post sobre tatuagens prometo que explicarei). Aí vinha pedalando lá da Lagoa (a da Conceição) no fim de semana e entre sorrisos e canções sem fim tive a idéia. Farei uma com o traçado do mapa da Ilha. Porque todas as tatuagens que tenho são por motivos de amores especialíssimos e não há como negar meu amor por este pedacinho de terra encontrado no mar. No mesmo dia, no intervalo do trabalho fui procurar um livro para ler… lembrei que tinha passado na UFSC algumas semanas atrás e comprado alguns do Flávio José Cardozo, achei que era uma boa pedida. Fui me deliciar com linhas leves e divertidas sobre esta Ilha que também adotei. Nada mais perfeito. Já tenho na manga um livro que estou escrevendo sobre a Ilha, as palavras são, de algum modo, a forma pela qual expresso meus amores (além das tatuagens, das fotografias, do prazer). Ler o Flávio, no qual me encontro tanto e que foi quem me deu um “ar” da Ilha antes de eu vir morar aqui, fez muita coisa retomar seu sentido.

Desde criança quis morar numa Ilha (eu dizia muito isso, mas acrescentava um “deserta”). Vim pra Ilha com uma mala de roupa e uma caixa com alguns poucos livros e meu aparelho de som. Mal a conhecia, estive umas duas ou três vezes alguns anos antes, a famosa beira-mar norte, as dunas da Lagoa da Conceição e da Joaquina, um lugarzinho rural ali pelo Sul, o centrão do shopping e da praça em frente ao Hippo (quando ainda era Santa Mônica), o mirante da Lagoa. E mesmo com tão pouco e praticamente nenhuma foto, eu lembrava muito bem de tudo. Foi onde andei a cavalo pela primeira vez. Anos depois, com dezoito anos na cara, sozinha, muita coragem, boa vontade e independência eu vim. Eu havia decidido e pronto. Cá estava eu, na Ilha, com tantos compromissos e olhos inquietos a observar tudo – tudo e muito mais. E nós fomos nos conhecendo, ela me deixava ver como ela era, eu me expunha cada vez mais. Aqui já me apaixonei e desapaixonei, já me iludi e desiludi (ah! as desilusões!), já errei e acertei muito. Já conheci pessoas muito ruins e também pessoas excepcionalmente boas. Já me perdi – e definitivamente me encontrei. Já me perdi pelos morros, já me perdi pelas ruas (principalmente no centro), já me perdi no meio do mato entre sufocos e risadas, já me perdi espiritualmente, já perdi meu coração numas curvas, já saí de mim em deliciosos banhos de mar, já fiz coisas inconfessáveis, já tirei toda a roupa na Galheta (e em outros lugares), já pesquei na Barra e no Pântano do Sul. Ela tem esse charme com o qual já tentei explicar aos outros como fui seduzida, um charme especial de cidade pequena com ares de cidade grande – visto que não sou adepta do interior mas também abomino metrópoles. Tem quem diz “dinheiro não traz felicidade mas prefiro sofrer em Paris”, ou algo assim. Eu prefiro sofrer em Florianópolis. Até ficar triste ou sofrer é melhor aqui. Já passei por momentos ruins nesses anos todos. Mas sempre tenho algum lugar muito especial para ir quando estou assim. Ou simplesmente poder ficar quietinha no meu canto – assim a “ilha deserta” se concretiza. Florianópolis é um lugar-passagem para muita gente, fiz amigos que hoje estão espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Até eu cogitei planos de ano que vem ao completar a marca de dez anos de Ilha me mudar. Pelo simples apreço de chegar do nada num lugar com uma mala de roupa e uma caixa com poucos livros. Tenho sérias dúvidas de que a experiência seja tão fascinante quanto foi por aqui. E a Ilha é assim, não é ciumenta nem possessiva, eu vivo viajando e ela nem reclama – só me recebe com dias nublados de vez em quando. Tenho isso de, por essa época, esperar o patriotismo dos seus morros pintados de verde e amarelo-guarapuvu. Ah, se eles soubessem quantas vezes já me fizeram sorrir. Há exatamente um ano eles foram protagonistas de uma superação marcante. Já fui testemunha da existência dos duendes, e não só daqueles dos morros da Lagoa da Conceição, mas daqueles ali do Ribeirão também. Já vi a lua nascer esplendorosa atrás da Ilha do Campeche. Já vi o sol nascer atrás do morro da Mole. Já vi o mais belo pôr-do-sol da Ilha ali na praia do Forte. Já nadei com pinguins nos Ingleses. Já bebi até cair na Armação (e no Estreito também, não quero deixar o continente com ciúme). Já vi golfinhos na ponta do Rapa e em Naufragados. Já prometi um dia ir morar na Daniela. Já subi e desci algumas vezes o morro das Sete (suspeitas) Voltas de bicicleta e à pé. Já tomei banhos de cachoeira até esquecer do mundo. Já comi os mais deliciosos camarões. Já fugi para o cinema em tantas terças-feiras difíceis. Já fiz passeios fantásticos (literalmente) de carro pelas madrugadas assombradas da Ilha. Claro, já passei maus bocados também. Já fiquei sem ônibus inúmeras vezes nas greves anuais dos motoristas e cobradores. Já fiquei horas e horas em hospital esperando pra ser (mal) atendida. Já fiquei algumas horas parada em filas para atravessar as pontes. Já fiquei sem sinal de TV, rádio e celular porque os morros criam áreas de sombra. Já enfrentei primaveras chuvosas demais. Já tive que evitar certos lugares pelo tipo de gente que os frequenta. Vejam só, esta lista é bem menor. Nem vale a pena falar dela. Coisas ruins e problemas existem em todos os lugares, o certo é fazer um balanço entre as ruins e as boas para ver quais prevalecem. E, sim, pensando no mar do Campeche que fica aqui ao lado eu sei que as boas extrapolam em muito as ruins. Aliás, já morei no centro, na Carvoeira (verdadeiramente Saco dos Limões), na Trindade e agora no Campeche – porque preferi um mundo distante. Desprezo essa gente que mora na Ilha e só considera a existência da região central (ali, do centro até a UFSC, no máximo Itacorubi até a UDESC e redondezas), a Lagoa (da Conceição, bem entendido) e, sei lá, como praia, os Ingleses talvez. Desprezo essa gente e muitas gentes que não conhecem nem querem conhecer a Ilha, que não a respeitam e não têm olhos para tudo que há além das belezas. Por aqui fui aprendendo na marra a lidar e conviver com as pessoas. Os vizinhos, por exemplo. Aqui mesmo já tive que denunciar maus tratos aos animais, a Lei Maria da Penha e maus tratos infantil. Tenho uma vizinhança divertida. Quem manda ser tão observadora. Sou apaixonada pelos manézinhos. Aliás, quero que meus filhos sejam manézinhos, vai que levo sorte e poderei ouvir o sotaque lindo deles o resto da vida (se não forem como eu que nasci sem sotaque). Amo o sotaque manézinho. Quem diz que italiano fala alto é porque nunca ouviu uma manézinha legítima. Mas também nunca vou entender a bananinha, a bacia com louça lavada para secar ao sol, os quintais cimentados (ou com piso), o pão de trigo (ainda sofro com isso), a falta de ambição, o prazer pela negação e a seriedade inabalável. Não conheço tanto da sua história nem dos seus personagens nem todos os seus nomes e recônditos. E amo-a mais por isso. A cada vez que vejo uma curva nova, um horizonte descortinar-se, renovo meu amor. E foi isso que me fez relembrar o quanto sou apaixonada por esta Ilha e como ela me faz tão bem – até quando estou mal. Nem os condomínios do Ribeirão para a nata alternática, nem os prédios feios fincados na Brava, nem o mau gosto arquitetônico de Jurerê Internacional (afinal, até eles precisam ter seu espaço na Ilha), nem o futuro hotel de luxo do mirante, nem o shopping sobre o mangue, nem a chata limitação de acesso à base aérea (parece que ela vai realmente ter fim), nem o gosto desenfreado do povo ilhéu por tudo que é modismo (vide os sushis, os MiniCooper, as leggings Dits), nem as casas em área de preservação permanente, nem os palmiteiros, caçadores e trilheiros de fim de semana me fazem amar menos esta Ilha. Aqui eu acho tudo perto. Em trinta minutos ou uma hora (tanto de ônibus quanto de bicicleta e à pé) eu chego nos lugares mais lindos. E é um pouco por isso que ser feliz e ser triste aqui é tão bom. Ela é enorme. Posso passar meses sem ver o farol da Barra lá do alto do Maciço, ou o pôr-do-sol do alto do morro das Aranhas, ou sem caminhar pelas dunas entre a Joaquina e o Campeche, ou sem subir o caminho da praia do Saquinho até minha pedra favorita, ou sem ir comer um camarão na Costa, ou sem ir caminhar pelo Ribeirão, ou sem boiar na Lagoa do Peri como se não houvesse amanhã, ou sem ir fotografar as praias e pontas da Cachoeira. Eu posso, na verdade, variar. E não há nada mais imutável nos meus desejos do que o desejo de variar. Sobre a má fama de ter fobia aos que, como eu, vêm de outras terras, não tenho nada a dizer, bem pelo contrário. Sempre fui muito bem recebida. E ainda quando me perguntam de onde sou e digo que sou curitibana mas catarina de coração desde bebê ouço (como ontem ainda me disseram) que fiz bem. E fiz mesmo. Não trocaria ser catarina de coração por lugar nenhum da Terra. Por isso nunca vou entender o preconceito e a dor de cotovelo que existe à beira do Rio Cachoeira com a sua Ilha-Capital, e dos quais felizmente não fiquei com nenhum ranço. Quando criança, pelo tanto que eu ouvia, Florianópolis parecia um lugar de pessoas vagabundas, de orgias, de leviandade – um perigo a ser evitado, principalmente pelas almas fracas. De certo modo, devo concordar. A luxuriante Ilha desperta a lascívia, a sedução, os prazeres. Daí a concordar que isso é ruim e deve ser evitado, já é demais pra mim! (seria eu uma alma fraca? sim, confesso minha fraqueza pelas coisas boas da vida!)

Leio Flávio com um sorriso nos lábios. Me divirto toda vez que saio, nem que seja só pra ir até a academia aqui perto, ou numa tarde de revolta ir até o Floripa me acabar num fast-food. O livro que estou escrevendo não vai contemplar todo esse amor nem todas essas paisagens, personagens e desincronias que por aqui existem. É só mais uma declaração de amor e talvez meu dia de “fico”. Posso até ser feliz em muitos lugares, mas eu prefiro sofrer em Florianópolis.

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