Quando ela sente que vai se apaixonar, acorda cedo e troca os móveis de lugar. Passa um dia inteiro em silêncio e só, trata logo de limpar cada grão de poeira espalhado pela casa. No dia seguinte, caminha à beira-mar, encontra pessoas, come camarão – diriam até que trocou de sorriso. Ela não queria, nem pensou nisso, mas é que na noite anterior sonhou com ele. E não foi desses sonhos quaisquer, nem daqueles para maiores de dezoito anos. Foi aquele sonho. Sonhou que eles eram um, como se tudo fosse tão natural. Sonhou que estavam ali, como quase sempre se encontram fora dos sonhos, e um contato que a faz acordar sorrindo e com o susto de que ele não está realmente ao lado dela na grande cama onde ela, sozinha, tanto ama se espalhar. É assim que ela passa a vê-lo. E por isso insiste nos móveis, na limpeza, faz sessões de descarrego de coisas velhas e não usadas. Ela sabe que não vai mais olhar para ele como olhava antes. Ela sabe que vai sofrer. Ela sabe que precisa dizer para ele o que sente, assim sem mais, sem artimanhas e com um “não me leve a mal” no final da frase. Dizer o que sente não é o mais sensato – lhe afirma a razão. E a razão, ah! a razão!, vai fazê-la meter os pés pelas mãos logo mais. Não há como dizer que o coração tem sido ouvido – ele ouve as canções açucaradas, procura livros com parágrafos suspirantes, até assiste às novelas para encontrar redenção. Novelas são muito sábias nessas horas. Sem ela perceber, seu coração – o calado até então e por enquanto ainda será um tanto ignorado – faz as vezes de personagem, calcula artimanhas, prevê obstáculos entre mocinhas e vilãs. Então talvez seja melhor recorrer aos filmes, pois nessa história os papéis de mocinha e de vilã não estão bem definidos. Nas novelas, tanto vilãs quanto mocinhas amam (sempre fica a impressão de que vilãs amam mais e mais apaixonadamente), porém, só as mocinhas viverão felizes para sempre. Ela ainda não sabe se quer ser feliz para sempre. Ela ainda está sentindo, pela primeira vez, a falta que ele faz. Ela decide e desdecide, várias vezes ao dia, declarar-se. Mas declarar-se é imprescindível! Caro leitor (homens são mais vaidosos e irresponsáveis que mulheres), você não preferiria saber que alguém lhe ama do que ficar sem saber?! Dizem por aí, aqueles que o descobrem, que amar é bom, mas ser amado é ainda mais sensacional. E você, leitor, pense em uma declaração de amor surpresa na sua vida e imagine mil implicações e problemas decorrentes dela. Ainda assim você quereria ouvi-la? Vejam que a situação dela é digna de ternura. Não se apaixona há séculos. As últimas vezes nem foram assim, foram bem mais diretas, simples e livres – apaixonou-se pelo caminho e só. Ela já nem queria mais se apaixonar. Tentou, é verdade, uma vez ou outra. Não teve êxito. Já pensava que seu coração, o mudo, resolvera viver com outras paixões menos vivas e menos dependentes. Andava tendo sonhos pesados com o passado, como se precisasse relembrar tudo de ruim que pode acontecer com quem se apaixona. Eis que naquele dia sentiu que o sonho poderia ser revelador, ela poderia apaixonar-se novamente. Entre resistência, grãos de areia sugados metodicamente pelo aspirador de pó, pôr-do-sol e mar, ela abraçava com carinho a idéia de apaixonar-se novamente, toda noite quando puxava a coberta, ligava o ventilador e desligava o abajur. Era neste único momento, sozinha em completo silêncio, que ela avaliava a beleza do sentimento tão puro, divertido e nobre que ela sentia nascer aos poucos dentro de si. Ali ela aceitava. Ali ela assumia. Ali até deixava-se crer correspondida ao analisar minuciosamente gestos e falas. No resto do dia, suspirava e sorria. As pessoas reparavam, ela sorria mais. Ela chegava em casa, com as luzes apagadas caminhava até a varanda e ficava lá observando as nuvens passeando sobre os morros à beira da praia. Havia se entregado totalmente às canções. Não ouvia mais nada nem ninguém, é verdade. Nem revolta sente, não tenta bravamente trocar as lerdezas do amor por horas de trabalho a fio. Gosta do tempo. Acredita que foi ele que a jogou tão exatamente nesta barca. Ela apaixonou-se, vejam só, talvez já seja fato. Ela pode escolher viver assim por algum tempo até decidir guardá-lo com ternura no lado direito do peito – o arquivo morto, como todos sabem – se a vida, as coincidências ou até, quem sabe, o Destino (que nem deveria ser citado) não lhe pregar mais nenhuma peça. Ela já fez isso algumas vezes. Ela acha que ninguém é obrigado a saber que é o protagonista dos seus sentimentos. Talvez, vejam só, ela guarde coisas demais para si. E, menos suposição e quase certeza certa, seja o mais importante elo entre ela e ele: ele a faz tirar as coisas de dentro de si. Fato notável, tenham certeza. Isso a desconcerta. Porque ele também lhe mostra o que traz na alma. Isso, enfim, a desconcerta ainda mais. E é por isso que ela está pensando e não pensando tanto se deve declarar-se. Ninguém percebeu, mas ela voltou a ler os russos (lê escondida, não comenta, não cita). É mau sinal. Os russos sabem que não há finais – quem dirá finais felizes – para essas histórias. Ela aprendeu essa dor com eles. Quem dera ela tivesse recorrido aos filmes, aqueles das fórmulas prontas. Ela estaria planejando uma declaração sincera, direta, com o “não me leve a mal” e imaginaria os beijos e abraços que se seguiriam. Os russos… ela não deve estar imaginando uma boa recepção à declaração se entregou seus pensamentos a eles. E, assim, ela não quer perdê-lo de vez. Eis, talvez, a única parte mais certa de toda a história: nem o “não me leve a mal” pode salvar um possível afastamento total. Pensando bem, caro leitor, ela está entre perder de vez e perder de vez. Só ocorre que numa das opções ela terá dito que se apaixonou, sem culpa, sem desejo. E é esta opção que pode abrir mais caminhos – sejam russos ou hollywoodianos. Além de provavelmente inflar o ego amorístico de um homem que talvez mereça isso. Caso ela insista em não declarar-se apaixonada (como se já não fosse evidente para as pedras da praia, para as árvores da estrada, para as malas mal arrumadas) não descortinará possibilidades e o frágil caminho que há, em pouco tempo (sem metáforas aqui), se fechará de vez. E aí só restará o arquivo morto um pouco mais adiante. Há quem não goste ou não reflita por alguns segundos ao se ver como protagonista do apaixonamento de alguém? Há? Ela queria ter esta certeza. Ela pensa na razão que ajudou-a a, de verdade, apaixonar-se. Foi esta amiga que fez com que ela visse com ele que as coisas têm seu momento exato na vida. Não seria, então, um abuso calar o seu estar apaixonada se isto lhe acontece justo agora? Poderia ter sido mês passado, poderia ser só em março. Não foi. Talvez ela queira ouvir conselhos. Talvez ela queira prostrar-se diante de alguém em quem confia e contar que está apaixonada. Como um teste, talvez. Tirando pela reação das pessoas ela será induzida a declarar-se para ele, ou não. Caro leitor, não sei a sua sugestão, mas deverias induzi-la a não fazer isso pois as pessoas são muito mesquinhas quando atentam para os sentimentos alheios. Ninguém prestaria atenção no mais sincero pedido do coração dela, o “não me leve a mal”. E aí ela se consumiria em acreditar que ele também não levará isso em conta. Pode haver um grande mal em declarar-se apaixonada, sim. Mas, russos e hollywoodianos hão de concordar que ninguém fica imune a uma declaração de amor. Digam isso a ela, por favor?
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