Entre lagartixas e begônias

 

Já faz um tempo. Não moro mais sozinha. Eu sabia, é verdade – mas “olhava para o outro lado” como a Jasmine do último Woody Allen. Percebi as evidências (e nem eram daquelas da canção do Wando) e depois de um segundo de pânico eu fiz que não sabia do que se tratava.

Vi uma evidência aqui, outra ali. Ignorei. Fingi. Fui levando a vida. Eu tenho trauma de não morar sozinha. De tantas coisas boas que fui aprendendo com a vida, eis a que o processo foi o inverso. Meu pavor de gente ao longo dos anos foi crescente e depois diminuiu. Tudo terapeuticamente tratado em auto-análises sem fim. Conviver acaba com qualquer relação – eis uma lição valiosa à qual me agarro. E as pessoas não entendem, mas gosto de ser sozinha, de viver sozinha e, principalmente, de morar sozinha. Minhas últimas experiências não foram nada perto de razoáveis para me fazer pensar diferente. Eu tenho problemas, eu tenho defeitos (aliás, uma amiga acabou de me jogar na cara um dos piores: sempre acho que tenho razão). Um dia quero escrever só sobre meus defeitos. Eu tenho dificuldades, e a maior delas é não conseguir me desarmar para apresentá-las. Pois é.

E ali estavam as evidências. Dia após dia. Eu não estava sozinha. Mas fingia. Ainda chegava em casa, ficava no escuro rebolando conforme a música do mp3 feliz com algum acontecimento ou corria pra varanda olhar para Vênus e tentar entender a vida. Tenho meus hábitos. Primeiro largo a bolsa na escrivaninha, aí tiro o calçado, tiro a roupa. Detesto roupa. Só uso por essas obrigações da vida. Se é noite, acendo o abajur da mesa de cabeceira. Se é dia, abro a varanda. Quando entro em casa, tudo tem que estar exatamente no lugar onde deixei. Tenho trauma de invadirem minha casa. Tenho trauma de entrar em casa e sentir que alguém esteve ali. É uma das piores sensações da vida.

E agora eu entrava e sabia que não estava sozinha. Quando nada mais dá certo, quando quero fugir da vida, do trabalho, dos pensamentos, me encastelo no sofá, apago as luzes e coloco um filme ou seriado para assistir. Naquela noite foi assim. Estava ali, balde de pipoca, tensão num seriado e… lá estava ela. Vinha do quarto e parou perto do meu cabide de bolsas da sala. Parou ali e eu grudei os olhos nela.

Tenho pavor de lagartixas. Já disse, todo mundo que me conhece sabe disso. Não tenho medo nem nojinho nem nada de rato, barata, cachorro, insetos de todo tipo (só pavor de uma certa mosca que tem numas trilhas da Ilha). Mas lagartixas. Não sei. A pele transparente, o olho inexpressivo, me lembram a morte. Os mortos, os cadáveres, os defuntos. E não gosto de corpos mortos. Elas são geladas também – mais próximas ainda dos mortos – e nem queiram saber como descobri isso. Quando há lagartixas eu me sinto oprimida, minha segurança de estar sozinha me abandona. Não é como se a morte andasse por perto, é pior.

Depois daquele dia só cheguei a vê-la mais uma vez, ao afastar uma cadeira ela passou correndo por trás da cortina. Eu sei que ela anda por aí. Por enquanto é só uma. Tenho mais pavor ainda das pequenas, dos filhotinhos, pois parecem mini-lagartixas e não filhotes. Não consigo achar nada bonito nos filhotes dessas criaturas. Não sei porque ela vive aqui. Não há mosquitos e pernilongos o suficiente.

Ela me faz viver com essa consciência de que não estou só. Depois de tantos dias convivendo com isso, cheguei a pensar que nem a presença de uma pessoa – que apagaria meu abajur, que não deixaria a louça no lugar, que penduraria a roupa de outro jeito, que deixaria suas coisas espalhadas pela casa, que soltaria pêlos pela casa toda, que não arrumaria a cama do jeito que eu faço, que desligaria o som para ligar a TV – seria pior. Porque ela está aqui – agora mesmo, neste instante – e eu não a vejo. Ela não muda a ordem das coisas nas prateleiras da geladeira, mas anda por todo lado durante a noite – enquanto eu durmo!

Tenho tentado conviver. Tenho tentado não entrar em pânico. Sei lá, já é hora de eu aprender a conviver com algumas coisas – inclusive com presenças. Não é fácil. O mundo lá fora já impõe tantas presenças, aqui era meu refúgio. E aí lembrei de algo que também me irrita nas lagartixas: a paciência. Elas ficam paradas por tanto tempo, não têm pressa, esperam suas presas. A paciência alheia me irrita. Como eu dizia para uma amiga esses dias, aprendi a ter paciência, é verdade. O passar do tempo tem coisas muito boas. Minha paciência com a maioria das coisas é como trato a presença dela: ignorar. Ignoro tanta coisa ultimamente… prefiro ignorar.

Eu não sei onde ela está agora. Mas sei que continua aqui. Mentalmente, ao vê-la correndo por trás da cortina, fiz um acordo aos gritos: você pode continuar aqui, só não apareça na minha frente! Talvez tenha funcionado. Já estou com tantos problemas, com tantas coisas sérias (ah! Como adoro fugir dessas!) no que pensar. Não penso nela. Mas não quero sentir a presença da morte naqueles olhinhos escuros parados na parede.

E eu pensava nos meus problemas quando fui arrumar os vasos da varanda. Esvaziei de terra minha mais recente tentativa com uma begônia vermelha. Era linda, grande, enfeitava a cozinha. Amo rosas, é verdade. Tenho uma longa tradição em cultivar rosas. Não digo que sejam minhas flores favoritas. Antes das roseiras eu cultivei bocas de leão, kalanchoes, cravínias e begônias em vasos coloridos. Era criança ainda. A noite perfumada lá fora pelo jasmim da varanda e dentro de casa pela primeira florada da orquídea que completou um ano. O kalanchoe laranja está enorme, já fiz três mudas dele e todas estão crescendo bem. O kalanchoe é assim, aguenta sol forte, pouca ou muita água, dias sendo ignorado, fica bem tanto dentro quanto fora de casa. Eu viajo por um mês e quando volto ele continua o mesmo. O kalanchoe é barato, você compra em qualquer supermercado. Não deixa, porém, de ser bonito com suas florzinhas pequenas. Vive sempre florido, tem uma variedade enorme de cores.

Ah, mas as begônias… as begônias não suportam amor demais. Elas morrem se você sufocá-las com tanta preocupação. O caule começa a ficar escuro, elas vão amolecendo, perdendo as flores e folhas. Raramente há volta. Mas é curioso… se o seu desespero em perdê-la for maior do que o seu excesso de zelo, há chances de recuperá-la. Se você atentar para os primeiros sinais de que amou-a demais e cuidar cada segundo para que ela volte, é possível tê-la novamente. Porém, o menor descaso fará com que ela se vá. Ela é complicada, diriam. Eu diria que a entendo. Excesso de amor e de zelo nos sufocam – a falta deles quando é necessário nos matam. Não vejo nada complicado ou complexo nisso. As begônias são meu desafio na vida. Desde criança volta e meia me desafio a cultivá-las. Por alguns períodos abri mão completamente de tentar. Me convencia de que não sabia amá-las. No último verão tinha uma, era ela e o kalanchoe. Por um descuido meu, alguém que ignora os amores das begônias deslanchou seu cuidado excessivo. Ela começou a morrer, foi aí que provei que já a conhecia bem e consegui salvá-la. Mas, mais um descuido meu, e lá foi outra pessoa a enchê-la de cuidados. Sou cercada por pessoas que amam demais, cuidam demais, se preocupam demais. As begônias não são para essas pessoas. Talvez, também, não sejam para mim. Já consegui progressos, é verdade. Já aprendi com elas. Porém, é preciso mais. Não posso me descuidar. Não é somente aprender a amá-las na medida. É preciso tudo isso junto. O kalanchoe continua lá, vigoroso que é, altivo, independente, fácil, sem frescuras. É sempre fácil cultivar kalanchoes. Begônias, não. Por muito tempo deixei de ter kalanchoes justamente pela facilidade. Eu aprecio desafios. Eu aprecio desafios amorosos. Eu aprecio aprender. Aprecio me desafiar a não ser como sempre fui. Eu vou voltar a cultivar begônias.

E ontem foi Ação de Graças. O do ano passado foi especialíssimo. O deste ano também. Eu achava que 2013 não superaria 2012, me enganei. Eu quero duvidar que dezembro conseguirá superar novembro (nem acabou e já foi o segundo mês mais especial deste ano, só perdendo para março – mas setembro e outubro estão em boa cotação também!). Em março do ano que vem comemorarei um ano fantástico. 2013 me deixou sem palavras – mas com pensamentos demais. Aqui em volta, lagartixas e begônias. Talvez 2013 seja isso, lições e desafios. Só digo que estou abraçando tudo. Tudo mesmo – dizem que todos também. Disse que duvido que dezembro conseguirá superar novembro justamente para desafiá-lo. Meu temor eu jogo para debaixo da cama. É preciso ignorar as lagartixas. Um dia isso teria que acontecer. E tão logo consiga, comprarei mais uma begônia. Não acho que seja hora de desistir, de novo.

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