Era pleno domingo. Caía aquele temporal cheio de trovoadas, relâmpagos, ribombavam as paredes, pessoas se persignavam, desavisados corriam para os tetos. Eu tinha saído fazia pouco tempo, mais uma daquelas compras esquisitas (guarde esta palavra, ela dará um livro), desvio pela praia porque, bem, eu sabia que o temporal da madrugada se repetiria. Ali, pés na areia afundados pela água do mar, o horizonte trovejante e barulhento. Muitos teriam medo. Vi de onde ele vinha, para onde ele iria que não sou boba nem nada e não vou morrer – pelo menos não por agora. Fiz minha rota só para ver aquele horizonte. Neste pedaço sedutoramente curvado de longos metros do litoral a vista é ainda mais bonita. De madrugada, bem, não saí para vê-lo – e, por isso, agora ele se repetia só para que eu pudesse vê-lo.
Era pleno domingo. Pessoas respiravam.
Ali, pés na areia encharcada de chuva e mar, escuros da noite e claros do relampejar. Não tinha celular com câmera nem bobos smartphones nem câmera. Havia saído com um macacão curto, uma nota de dez reais no bolso e chinelo. Ah, e brincos. E mp3. Via o horizonte. Não tem jpg nem nada que confirme o que estou dizendo. Nenhum HD misteriosamente guarda esta prova.
Era pleno domingo. Pessoas postavam nisso que chamam redes sociais – procuro outro nome para elas, “nós anti-sociais”, talvez – todo o azar de imagens, links e frases.
Era pleno domingo. Pessoas comuns acreditavam que tinham vidas publicáveis. E, como se não bastasse, publicavam-nas.
Quem sabe eu corresse descrever a cena, quem sabe estragasse a câmera só tentando uma foto, quem sabe louvasse meu desprendimento, coragem e vida livre de pés na areia sob temporal. Quem sabe entulhasse TLs alheias com links sobre coisas geniais, pessoas fazendo o bem ou só aquela música (“Pela primeira vez sozinha Pela primeira vez sem dono Pela primeira vez sem você” caso fosse ontem) adorável daquele dia num vídeo tosco de imagens de powerpoint no youtube. Quem sabe eu respondesse mensagens. Quem sabe uma imagem cool com uma frase cute. Quem sabe um selfie com uma frase interminável de algum livro de auto-ajuda (com a referência devidamente suprimida). Quem sabe um link sobre alguma atrocidade contra os animais, as matas, a água, os pobres, os negros, os eus branquelos, contra o patrimônio, com um texto de punho (ou pulso, ou dedos, já que somos homodigitadores) alvoroçado em palavras indignadas. Quem sabe alguma piada sem graça. Ou quem sabe eu reclamasse da minha operadora de celular e internet. Ou ainda indiretas entre esses e aqueles e aqueles outros. Talvez umas três frases aparentemente sem nexo que ninguém entenderá mas acharão que tenho uma vida sensacional. Ou fotos de cerveja, garrafas, copos, taças. Ou, ainda, da cama revirada de um hotel ou motel. Quem sabe eu reclamasse das crianças que cantam galinha pintadinha ou das pessoas que não dão pisca ao dirigir. Ou, sei lá, colocasse fotos minha na praia só pra esfregar na cara das pessoas. Ou, talvez, aquela foto semanal do meu cachorro que só eu acho que faz caras e bocas diferentes a cada clique. Ah, sim, não deixaria de dar check-in no aeroporto ou em qualquer lugar invejável onde eu estivesse. Se me faltasse imaginação – não é tão raro assim acontecer isso com quem respira – ou me faltasse vida – ainda menos raro –, postaria a foto do almoço ou do prato vazio para querer parecer genial. Ou da panela com alguma coisa que ninguém saberia dizer o que é não fosse pela minha legenda. Ou, ainda, uma frase, bonitinha ou reflexiva, de algum livro só para mostrar que eu leio.
Era pleno domingo. Pessoas respiravam. Era pleno domingo. Pessoas comuns acreditavam que tinham vidas publicáveis.
A prova que vidas de pessoas comuns são publicáveis e que elas publicam. Mas não quer dizer que sejam interessantes ou vendáveis. Kkkkkkkkk
Gostei do conto. De todos seus escritos que li, vários bons, aliás, esse foi o que mais gostei!
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😉 Pegaste o espírito da coisa!
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