Talvez seja apenas um desfilar de clichês numa fórmula pronta e de fácil utilização a qual conhecemos tão bem por ser exaustivamente exposta aos nossos olhos. Talvez seja, enfim, Hollywood. E pergunto novamente, o que seria do mundo sem os clichês?
Tentei assistir American Hustle. Juro que tentei. Não foi desta vez. Talvez eu consiga terminar de assisti-lo algum dia e, tendo conseguido ou não, prometo escrever algo sobre o que os primeiros trinta minutos do filme me fizeram pensar sobre narrativas. Prometo. Já havia previsto este tema para o blog quando fui surpreendida positivamente pelo filme seguinte (do qual misteriosamente eu falava no parágrafo anterior): Capitão Phillips.
Eis então que aquele acúmulo de clichês e talvez mais um filme bobobuster entre tantos me fez encontrar coisas sobre o que escrever. Eu não dava nada pelo filme. Tanto que no dia anterior havia escolhido American Hustle entre os dois. Eu sabia algo da sinopse, Tom Hanks, o bom americano por excelência, era capitão de um barco sequestrado no mar por piratas da Somália, daquela história real (não disse que repete-se a sina do ano passado sobre histórias “reais” na concorrência ao Oscar?). Eu não havia acompanhado as notícias da época (bem recente) – afinal não sou boa em acompanhar notícias, felizmente – mas sabia um pouco do que se tratava.
Ele não se destaca pela fotografia. A direção não tem nada de mais, nem de menos, fora um detalhe ou outro (como a carta que ele escreve para a família e da qual não temos mais do que vislumbres) que nos diz que o diretor é competente – e, sinceramente, nos dias de hoje ser competente em algo, principalmente quando este algo é dirigir um longa-metragem, é já bastante louvável. Ele talvez exceda uns vinte minutos no tempo sem prejudicar tanto o drama – parece que para concorrer ao Oscar é preciso passar das duas longas horas. Dizer que Tom Hanks está num dos seus melhores papéis parece redundante, mas tudo o que normalmente pode incomodar na atuação dele em outros papéis misteriosamente desapareceram neste filme, ou seja, ele está extraordinariamente bem. Ser o típico americano em tantos papéis não conseguiram alcançar o ordinário que ele preenche tão bem como o capitão Phillips. O filme é baseado no livro de autoria do próprio Richard Phillips, “A Captain’s Duty : Somali Pirates, Navy SEALs, and Dangerous Days at Sea” que pelo título já dá elementos do quão raso é o personagem. Os piratas como atores coadjuvantes são um mérito a parte, tão bem construídos e interpretados. Mas o que tem, afinal, Capitão Phillips além de clichês, diálogos esperados, ação previsível e algumas boas interpretações?
Eu diria que este filme alcançou algo que 12 Years a Slave talvez pretendesse e não conseguiu. Num dos diálogos, o ordinário e quase estúpido capitão do Tom Hanks pergunta ao Muse (Barkhad Abdi), capitão dos piratas, se não há outra opção (além de sequestrar navios de carga). Muse o olha e diz que ali não é a América. Ao ouvir a pergunta eu mesma respondi (sim, eu falo durante os filmes) que ali não era assim – quase a mesma resposta do Muse. Eis a obviedade do filme, até eu conseguia antever diálogos. E não é por ser tão óbvio que ele deixa de ser excepcional.
Depois de escalonar os assuntos que pretendia abordar sobre o filme, fiquei pensando hoje cedo o quanto esta visibilidade que se quer dar aos negros, à História e cultura deles, dando-se ênfase na guerra ao preconceito pode estar, também, errada. Porque aqui no Brasil muito se ouve sobre os negros que foram escravizados e para cá vieram. Tenta-se resgatar um passado de forma, como sempre, lúdica e romantizada. Não querem mais ser “negros” e querem que substituamos por “afro-descendentes”. Talvez numa tentativa de guerra pacífica aos que se dizem descendentes de europeus neste país. Brasileiro, ao que parece, ninguém quer ser. Enfim, fiquei me perguntando se passou a moda de falar da África. Na minha época de ensino fundamental a África estava na moda, na TV, nos jornais, na sala de aula, muito se falava da miséria do continente, pululavam fotografias de crianças negras esquálidas, lamentavam-se as guerras tribais, os números da fome e de como o calor castigava a população. Hoje não vemos mais este drama fraturadamente exposto. Não sei se o Ocidente encontrou em si tantos problemas tão ou mais graves que acabou esquecendo de importar imagens e fatos das desgraças africanas. Fato é que não é mais moda. Pois passada a moda de voltarmos nossos olhos para a África, surgiu a moda de orgulhar-se de ser “afro-descendente”… mantendo, contudo, os olhos aqui pelos continentes americanos mesmo. Não desmereço nenhum orgulho nem nenhuma cor de pele, só considerei irônico que o cinema, de uma hora para outra, tenha voltado os olhos para uma condição africana que não parece mais interessar ao mundo ocidental.
Cheguei a estes pensamentos depois de ter, durante o Capitão Phillips, lembrado de um filme pungente que assisti no ano passado. Vi no cinema e tive o prazer de ver novamente quando passou na TV a cabo (em dezembro quando estive na casa dos meus pais estava passando, talvez ainda esteja). Terraferma, um filme italiano que tem méritos enormes e entre outras coisas geniais que ele aborda surge a questão dos imigrantes africanos que tentam chegar à Itália pelo oceano. Terraferma e Capitão Phillips tratam da condição africana contemporânea sem carinho, firulas ou passadas de mão na cabeça. Eles também não cruzam mares para tentar representar nas telas com atuações, figurinos e adereços a situação real deles. Talvez seja um ponto fraco de ambos mostrar o negro africano somente quando este rompe mares e fronteiras e aporta ao lado de nós, ocidentais. Porém, talvez o ponto fraco seja mais um mérito, pois delicadamente colocam o dedo na ferida do nosso esquecimento, depois da miséria africana sair de moda, ao dizer que eles ainda estão lá – e, pior ou melhor, estão vindo para cá.
Ambos também fogem do fantasma que descredita 12 Years a Slave ao abortar a idéia da representação da violência. Sim, há controvérsias, reconheço. Pois os SEALs matarem à queima-roupa os piratas que estavam no bote salva-vidas é algo violento da pior espécie (posto que autorizado e não-criminalizado) e a atitude do jovem pescador italiano de bater com o remo para evitar que eles subam no barco também não é nada anti-violência. Porém, a violência aqui difere em muitos graus da violência de donos de escravo que violam o corpo dos negros para dobrarem suas convicções e almas. Aqui há implícita uma auto-defesa do seu território (espontânea no caso do italiano e calculada e militarizada no caso do americano) – e, sim, trata-se o tempo todo de territorialidade. Outro porém: a violência não é inserida para deleite e degustação do espectador, como ocorre em 12 Years, ela surge como elemento do drama sem recorrer à espetacularização.
Vemos poucos minutos do que seriam as terras da Somália de onde saem os piratas que pagam para poder ir em busca de uma boa vítima nos mares. Vemos logo de cara que ali há somente vítimas que se vitimizam entre si. Está colocado o argumento: a miséria não une. A miséria nunca uniu. Entre quem não tem absolutamente nada, não ter continua sendo desvantagem. Os negros não se vêem como irmãos – ao contrário do que se vê hoje em dia. Aliás, dizem os especialistas que nem os negros que para cá vieram escravizados se viam como iguais e irmãos – outra coisa que curiosamente tentam evitar de contar. O que, aliás, também ocorreu com os judeus. Nós brancos não somos todos iguais, nem temos as mesmas crenças, origens e valores, nem nos reconhecemos como irmãos – nem os negros, nem os índios, nem os orientais nem os africanos se vêem assim. E talvez esta idéia faça muita falta nos discursos. Os piratas contemporâneos que em nada lembram as histórias dos romances são desunidos, mantêm-se mascando “khat” e buscam milhões de dólares do seguro de seus sequestrados para pagar seus chefes. Como diz Phillips uma hora, “todos nós temos chefes”. Ali estão as arraias miúdas sem ganhar nada e correndo risco de vida enquanto seus chefes assistem aos jornais e guardam seus dólares.
Os capitães ali, Muse e Phillips, na verdade não mandam em nada. Chega a ser constrangedor quando percebemos que Tom Hanks não está ali como nenhum herói – o que era de se esperar, visto que ele dá, inclusive, nome ao título do filme. Quem seria o herói, então? Afinal entre os clichês hollywoodianos é preciso haver um herói. Seriam os SEALs, armas humanas de matar que vão até lá no último momento realizar um serviço? (é dolorosa a cena na qual eles, depois de matarem os piratas dentro do bote a uma certa distância, parecem relaxados e começam a trocar de roupa como o final de um turno qualquer numa indústria qualquer) Seria o presidente dos EUA? Seria Muse, condenado a realizar o sonho de ir para a América? Para entender um herói é preciso pensar no que foi salvo. A vida do capitão Phillips foi salva, é claro – e pelo SEALs às ordens do governo americano. Porém, foram, na verdade, salvos o barco e o dinheiro da seguradora – quem salvou o primeiro foi o capitão Phillips, enquanto o segundo também foi salvo pela Marinha e pelo SEALs. E as vidas dos piratas que foram perdidas? Não valiam nada, como desde o começo do filme parece ser evidenciado? Mas, claro também ficou que a vida do capitão americano não valia nada para ninguém (além da família dele).
Como boa ação e um tanto de suspense o filme cumpre bem suas intenções. Eu não esperava nada dele porque justamente não acreditava que ele me levaria tão longe nos pensamentos. Os diálogos entre os capitães podem parecer previsíveis e piegas quando tratam da realidade dos diferentes mundos, mas não resvalam (como eu esperava que fosse) para a velha superioridade americana com sua moral inquebrantável. Uma idéia que vem me perseguindo a dias tocou os pensamentos sobre o filme: não percebemos o luxo que temos na vida. Sabe aquela história da zona de conforto? Pois é mais ou menos isso, falta sermos críticos da nossa própria situação. Perguntar-se, de vez em quando, “eu poderia viver com menos?” é um bom exercício. Não precisamos ter nosso barco sequestrado por piratas somalianos para ver que estamos deitados num berço esplêndido de luxos. Talvez eu sempre tenha sido uma crítica ferrenha do luxo – e nem pensem que falo de carrões importados, coberturas em Copacabana ou hospedagens em castelos da França – e tenho piorado. O que o luxo tem a ver com o filme? Não sei ao certo, mas quando a Marinha americana oferece comida e água aos piratas que estão no bote e eles nem se importam algo em mim se acendeu… eles mascam khat o tempo todo não porque são drogados, uns viciados idiotas, mas porque comida e água não fazem parte da vida deles. Eles querem dólares, milhões de dólares, dos quais mal verão a cor e que, em breve, terão que voltar ao mar para buscar mais e mais. São vítimas, das vítimas, das vítimas. E estas vítimas, me diz Terraferma e Capitão Phillips, estão ao mar entrando à força em territórios que não se importam mais com eles porque não está mais na moda e porque os do lado de lá já têm desgraças demais para cuidar sob o próprio nariz – vide a crise que se instaurou na ilha paradisíaca italiana que perde seus pescadores por falta de peixe e apela para um turismo da pior espécie, em pessoas e hábitos.
Tom Hanks não foi indicado ao Oscar, lamentavelmente. Por que ainda insistem nessa separação entre “melhor atriz” e “melhor ator” nas premiações? O trabalho de atuar não é, em si, o mesmo? Ou é só para fazer aquelas cerimônias intermináveis durarem mais? Cate Blanchett está sendo aclamada pelo seu trabalho em Blue Jasmine (quem sou eu para dizer algo contra), porém o trabalho de Tom Hanks aqui é muitos graus acima. Todo trabalho de personagem que contém excessos é mais fácil de encontrar boas saídas do que os trabalhos que exigem o ordinário, o medíocre. Sou suspeita, não achei Blue jasmine extraordinário, nem a personagem – Cate merecia mais. Resolvi comparar um ator com uma atriz porque não considero que separar por sexo até nisso seja válido. Depois verei com os outros concorrentes “entre si”.
Uma última consideração: Capitão Phillips é um filme de 2013, baseado em fatos reais amplamente divulgados pela mídia internacional em 2009. É uma obra de ficção cinematográfica da história do presente. Um ótimo exercício para quem gosta de História e principalmente para o pessoal da área de História do Tempo Presente (aqueles que conseguem trabalhar com o audiovisual como fonte e objeto e tem o mínimo de conhecimento para isso). Eu particularmente aprecio quando o cinema faz suas próprias histórias, porém tem ocorrido de forma mais frequente que fatos reais corram para as telas em tempo cada vez mais curto – vide o filme dos mineiros chilenos que sairá em breve. Seria uma crise do cinema? Seria a vida a mostrar-se mais inédita do que as mentes dos roteiristas? Qual o interesse de assistir a um filme sobre algo que li e vi repetidas e incansáveis vezes nas redes de notícias? Não saberíamos mais dos fatos e detalhes do que um filme poderia jamais me mostrar? Seria algum desejo de eternizar nossa história antes que as gerações futuras as reinterpretem? Pois bem, algo a se pensar.
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