As vidas atrás do balcão

 

Lia agora Os Sofrimentos do Jovem Werther (nem eu imaginava que um dia leria, mas, enfim, tenho motivos para tal e este fato com os pensamentos e atos de ontem renderão um post) e encontrei, entre tantas frases e parágrafos contundentes: “Aliás, nesse mundo, não é fácil compreendermos uns aos outros.” e já antes de começar a ler o clássico eu havia colocado na pauta do blog o post de hoje (que foi atropelado pelo do Capitão Phillips).

O jovem Werther, pasmem, e eu somos muito – muito – parecidos. Pensamos e nos sentimos da mesma forma sobre tantas e tantas coisas. Tenho no sangue a tendência às fortes emoções e a sofrer mais dos males do coração do que do corpo. Já muitos atestados de óbitos da família poderiam vir com “tristeza” como causa mortis. Quando Werther descreve o encanto pelo lugar que ele escolheu para viver consigo compreendê-lo perfeitamente. Neste lugar ele encontra pessoas “simples”, pessoas que trabalham, que não têm sobrenomes pomposos nem títulos, nem instrução. A cena do irmão de quatro anos que segura um bebê enquanto esperam a mãe, assim como a conversa com o moço que conserta o arado são exemplos disso. Sim, poderia ser apontado como a superioridade de alguém que olha para um desvalido – mas não me parece o caso.

Queria falar disso… de olhar os outros. Tenho colecionado histórias, fatos, tenho observado há um longo tempo na minha vida as pessoas que me cercam. Não falo das pessoas que conheço – muitas vezes dessas não quero nem saber se continuam vivas. Falo dessas pessoas das quais não sabemos os nomes, pessoas que nos servem, nos atendem, fazem serviços que garantem nossa segurança e a limpeza dos lugares que frequentamos. Não me venha dizer que você sabe o nome da moça que limpa o andar do prédio onde você trabalha. Não sei se é coisa “dos dias de hoje”, se é o individualismo capitalista ou qualquer bobagem semelhante – duvido que seja. As pessoas não olham umas as outras, não é mesmo?

Em muitos casos me sinto constrangida. Não sei, por exemplo, mandar nas pessoas, dar ordens, exigir. Quantas vezes você já foi grosso com a atendente de telemarketing da tua empresa de telefonia? Quantas e quantas vezes vejo pessoas reclamando de terem sido mal atendidas nesta ou naquela loja? Em contrapartida, quantas vezes você já fez mal o seu serviço?

Para ser mais clara, vou citar umas cenas que já presenciei.

Vinha caminhando pela avenida mais movimentada da cidade, numa viagem, final de tarde. Em frente a um banco, um moço e uma moça uniformizados varriam a larga calçada.

– Ó só isso. Ó. – ela fala e aponta com a vassoura para que o rapaz veja do que ela fala.

Eu me viro para olhar também.

– Isso aí é porque a mãe dele não varre, né. – responde o rapaz ao ver um bom punhado de papel picadinho bem picadinho espalhado pela calçada.

Fiquei ali pensando… nem sei se a mãe dele (ou dela) ou ele mesmo não varre. Mas, definitivamente, ele ou ela não pensou que alguém teria que varrer aquilo que ele poderia simplesmente ter jogado no lixo.

Estava na beira do mar, já há dias procurando um vendedor de algodão doce e barquilha quando finalmente naquele dia surge um. Ele faz propaganda, diz que foi feita na hora pois havia vendido tudo de manhã, voltara para fazer mais e poder voltar para a praia para vender.

Conversa vai, conversa vem, eis a história dele: ele mora em Curitiba, vende barquilha lá pelo Jardim Botânico, e há dez anos aluga uma meia água em Barra Velha para vir vender na praia durante dois meses. Lá vende a quatro reais, aqui a dois. Só de imposto para a prefeitura para conseguir a licença (ele mostra a camiseta) são duzentos reais. Explica como elas são feitas, num processo que dura três horas. A pele tostada de sol. Diz que vale a pena, mas que é cansativo, ficam longe da família e tal.

Sim, eu converso com as pessoas. Tenho, ainda, uma baita dificuldade com isso. Contudo, umas idas e vindas me fizeram até apreciar e desejar isso. Se eu não falasse com ele, teria apenas tirado uma nota de dez reais, escolhido minhas barquilhas e nem olhado na cara dele. E não é assim que acontece quase sempre?

Parei num desses lugares da Penha onde tem caldo de cana, toalhas, artesanato e muito mais. Entramos, pedimos caldo e começamos a ver as coisas. Eu me apaixonei de cara por umas bolsas e do nada surge uma menina ao meu lado. Uns dez anos mais ou menos, pergunta se pode me ajudar. Eu solto a clássica “estou só olhando”. Aí em seguida ela diz que tem mais modelos numa prateleira. Escolho duas e uma delas peço para embrulhar. Vou olhar as almofadas enquanto quem está comigo olha uns bancos de madeira, a menina é solícita, mostra esse, aquele – o que imediatamente irrita quem está comigo que não gosta do tipo de vendedor “que fica em cima”. Como sei disso, chamo a menina para me mostrar outras coisas. Ela pergunta de onde sou, conta da tia, conta que mora ali na Penha e estuda em Navegantes.

Desde o primeiro instante a menina chama a minha atenção. Muita gente não sabe, mas comecei a trabalhar mais ou menos com a idade dela. Cumpria horário e era a melhor funcionária que minha mãe já teve. Como a menina, sabia os preços de cor. Me orgulhava muito do que fazia. Não pensem que porque a loja era da minha mãe que aquilo não era a sério. Era a única a ficar sozinha em determinados horários. Ainda me orgulho muito de por muitos e muitos anos (até a graduação nos dias que estava lá e nas férias, inclusive nos horários estendidos de final de ano) ter trabalhado como atendente, caixa, balconista.

Um dia no Mercadorama da Praça Osório, em Curitiba, fui passar no caixa e a moça me diz “Bonita as tuas unhas”. Eu sorrio e “Obrigada. As tuas também.” (pois fazia uns minutos eu estava reparando nelas). “Como você faz esse efeito?” eu pergunto e ela sorridente me explica como faz o efeito craquelado com um palito de laranjeira. Não havia, ainda, na época os esmaltes que já fazem este efeito. Não recordo direito o nome dela, acho que era Marlene – realmente não sou boa com nomes.

Fui até o Imperatriz do Beira-Mar, em Fpolis, para comprar guloseimas enquanto esperava minha companhia para o cinema chegar. No caixa, a moça diz “Bonita a tua bolsa.” eu agradeço e ela pede para vê-la, pois faz crochê. Conversa vai, conversa vem, ela me conta que só fazia isso, pois adora fazer crochê, faz toalhas, chinelos, bolsas, mas que como teve que pegar o emprego não sobrava mais muito tempo. Semanas depois fui lá e fiz questão de ir no caixa dela e ainda apresentei para quem me acompanhava. Disse que volta e meia passarei lá para saber se ela já tem alguma bolsa pronta para eu ver.

Eu poderia elencar mais umas dúzias de exemplos. Além da loja da minha mãe já trabalhei em outros empregos que lidam diretamente com o público: é, sem sombra de dúvida, o mais difícil. As pessoas não te vêem. As pessoas esperam ser servidas porque estão pagando, simples assim. E usei as histórias acima para mostrar o que muita gente sequer pensa: por trás de cada pessoa há uma história de vida, há desejos e frustrações, há necessidades, dons, alegrias e tristezas. Contando com você, quantas pessoas você conhece que fazem exatamente o que queriam estar fazendo profissionalmente? Ou devemos pensar que pessoas nascem com vocação para serem caixas de banco, de supermercado, atendentes de padaria, frentistas? Felizmente a maioria ainda tenta de todo jeito fazer o seu melhor. Liguei hoje para a operadora para tentar resolver um problema da minha internet, levei semanas para me dispor a isso. A atendente ficou meio sem paciência depois de tantas tentativas para solucionar, via telefone, algo tão complexo. Eu a compreendo, minha relutância em telefonar era justamente por isso. Por que eu a culparia? Eu não a conheço, nem sei se o filho dela acordou hoje com febre ou se o namorado não respondeu aquela sms ontem à noite.

Não olhamos os outros… pior ainda, não conversamos uns com os outros. Assim, Werther, fica ainda mais complicado compreendermos uns aos outros. Cada pessoa é um acúmulo de histórias e fatos, e tem quem anda por aí achando que uma balconista é muito diferente de si – só porque é balconista. Eu disse para quem me acompanhava que também não gosto de atendente que fica em cima da gente, mas eu via a menina orgulhosa de estar ali, queria mostrar “serviço”, como entendo muitos atendentes que correm quando você entra na loja porque no comércio há dias que não há ninguém e o tédio é um saco. Eu imagino que muito caixa de supermercado não está ali porque quer mas porque é uma área que tem muita oferta de vaga – e sei que por isso pagam muito mal.

Sempre fui muito quieta e fechada e por isso as pessoas podem estranhar este assunto aqui. Mas faz tempo que mudo meu jeito de ver o mundo e, como Werther, observo essas coisas e pessoas que passam pela minha vida. De jeito nenhum aceitarei a acusação que há superioridade em olhá-las dessa maneira. E sei que devo muito disso à minha mãe que sempre tratou com respeito e de igual pra igual todas as pessoas que cruzaram e cruzam a vida dela. Aliás, ela adora uma conversa também, o que ajuda muito. Foi assim que comecei a ouvir e a olhar para as pessoas. Na loja, ela conversava e sabia as histórias de todos que por lá passavam. Devemos, ambas, isso ao meu avô, pai dela, que fazia do balcão da oficina dele um recanto de conversas com estranhos e conhecidos. É assim que se aprende o que é respeito. Eu poderia escrever páginas e páginas sobre os maus tratos aos animais, mas, sabe, tratar bem animais, plantas, pessoas pra mim é tudo a mesma coisa. Porém, vejo tanto em defesa disso e daquilo, e muitas dessas defesas vêm de pessoas que não olham nem na cara do frentista e vivem nas redes sociais falando mal deste ou daquele.

Minha mãe é amiga da senhora que ajuda a cuidar da casa. É amiga mesmo. Eu sei tudo sobre a família dela, temos conversas animadas e minha mãe até se desespera quando eu pego e começo a ajudá-la na limpeza quando estou na casa dela. Minha mãe só tem este auxílio por questões de saúde e eu nunca, jamais, me neguei ou deixei de fazer o serviço de casa. Não é raro me ver neste tipo de situação e, sim, as pessoas estranham muito. Como diz o imã da minha geladeira, gentileza gera gentileza.

Talvez seja a educação, talvez o respeito e provavelmente tudo isso tenha despertado meu contínuo interesse em personagens, mesmo que esses da vida real. Que o diga a cabeleireira com quem cortei o cabelo semana passada: será a protagonista do meu próximo livro. Vidas… vidas. Gigantescamente assim: vidas. E, ah!, a vida muito me interessa. Mesmo que vá para a ficção.

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