Aceito trocas

Precisava mudar de vida. Aceitava trocas. Agora não havia mais dúvida. Pois quando uma simples e despretensiosa caminhada pelo bairro que conhecia desde criança, cabelos ao vento, o nariz sorvendo o ar com prazer, lhe dava o maior prazer em semanas, é que as coisas não andavam bem. Queria viver outras vidas. Não queria estar nem ser. Queria não ter tempo para ouvir aquela canção que lhe fazia relembrar aqueles olhos verdes. Quem sabe uma outra cidade. Ou uma aventura bem longe de qualquer cidade. Talvez um trabalho perigoso num outro país. Não, não. Não precisava correr risco de vida para sentir-se viva. Isso era para os doentes da alma. E que não lhe ouvissem os sentimentos, pois o fato é que amava quem lhe amava – mas as circunstâncias não lhe apaixonavam. Os caminhos de sempre estavam vazios. Não lhe causavam mais arrepios. Já tinha tantos livros, tantas fotografias, tantos anéis e cartas. A vida, enfim, lhe pesava. Volta e meia se pegava pensando como seria a vida sem aquela cama antiga, sem a bolsa de estimação, sem aquele abajur de borboletas. Algo lhe dizia que, ainda assim, não seria outra pessoa. Porém, ela temia. Temia esquecer-se de si. Temia não amar tanto quem lhe ama. Temia que seu amor pela vida superasse qualquer outra paixão. Enfim, de novo sentia-se presa. Presa, amordaçada, encurralada. De novo o amor lhe cobrava. Cobrava que estivesse ali por outra pessoa. Cobrava que demonstrasse diariamente este amor. Cobrava a cumplicidade. Não que ela não amasse ou que não quisesse, já lhes disse. Ela só amava de outro jeito. Não amava com amarras, nem com presenças exigidas, nem, muito menos, com responsabilidades. Queria, mesmo, amar sem tirar os olhos e o sorriso do horizonte. Sentia-se atada às palavras, às idéias, às lembranças, a tudo que aprendera com a experiência e sentada nas carteiras. Atada aos laços de sangue. Atada à falta de perspectiva e opções. E aquela inocente caminhada com a chave da casa num bolso, a identidade no outro e os fones no ouvido fora sua queda. Precisava de outra vida. As ruas continuavam iguais, um prédio novo apenas, a segurança de que o tempo não havia passado por ali faria mais da metade da humanidade feliz – segurança, a meta de tantas pessoas. Pois ela recusou-se a atravessar a rua na faixa. Dobrou uma quadra antes, seguiu outro caminho até o mesmo destino. E assim percebeu. Precisava de outra vida. Quis enganar-se de que mudar um trajeto era o começo da grande mudança. Mentira. Mudar caminhos e chegar aos mesmos destinos é como trocar de roupa para ir a mesma festa. E ela só não sabia ao certo se havia outra festa para ir. Por enquanto, desejava apenas uma festa à fantasia.

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