Foi difícil entender porque a Filosofia se preocupava com a felicidade. Num primeiro momento me perguntei “pra que refletir sobre isso, com tanta coisa mais interessante e importante?”. Afinal esperava estudar sobre ética, política, o mundo das idéias. E lá estava a questão: o objetivo da vida é alcançar a felicidade. Foi, então, uma desilusão. Não achava que era sério.
E era. Daquelas frases de senso comum sobre “todos buscam a felicidade” ou musicalmente adaptadas “eu só quero é ser feliz andar tranquilamente na favela onde eu nasci” a Filosofia parecia apropriar-se sem dó. É claro que o caminho era invertido, cronologicamente, pois que a idéia havia surgido antes das frases feitas e dos versos.
Então, o objetivo da vida era a felicidade. Posto o drama, jogam-se os filósofos na arena. Todos saem vencidos e vencedores. Não há nada mais platônico do que lançar-se a questão “todos buscam a felicidade” sem dizer, num primeiro momento, o que, afinal, ela é. E aí temos mais de dois mil anos de disputas.
Eu não entendia. Tenho real dificuldade em entender algumas (muitas) coisas. Não levei a sério o objetivo da vida dado por eles. Minhas concepções e experiências, além das questões da individualidade, não me faziam aderir ao conceito. O que mais me incomodava – e incomoda – é colocar certos pontos como “buscas” dos seres humanos. Sim, eu sei, tem o homem e a mulher (maiorias esmagadoras) que procuram “alguém”. Tem, então, aqueles que buscam a felicidade.
Buscar ou procurar algo, intencionalmente, foge à minha ação. As surpresas da vida são muito mais interessantes. Também me é difícil compreender a felicidade atrelada à vida correta. As boas ações, o agir corretamente, agir conforme ou de acordo, praticar a justiça são todos passos à felicidade. Pessoas felizes, então, não fazem coisas erradas. Ou, melhor formulado, se você não age corretamente, não alcançará a felicidade. Eis o ponto que sempre me deixou pensativa por alguns minutos.
Haverá aquele que vai proclamar que a felicidade se sente, não se explica. Essas frases feitas vomitadas pelos seres. Porém, refletir sobre as coisas talvez seja mesmo um problema. Vejam só, quantas vezes concordei com Raul e seu “É uma pena eu não ser burro Assim eu não sofria tanto”. Aquele que é feliz e não pensa é um caso a ser estudado. Pois também me incomoda muito (e acho que não tinha me dado conta disso até há pouco tempo) cultuar-se a elevação do pensar. Esta vida de contemplação, de busca pelo saber, como supra-sumo da condição humana. Não sei, é possível ser feliz assistindo ao Programa Pânico ou deliciando-se com um sorvete.
Pois que diacho, então, é isso da Filosofia preocupar-se com a felicidade? Teria a felicidade perdido a sua nobreza ao ser encontrada quando abrimos uma lata de coca-cola ou ao postar um selfie exibindo uma paisagem invejável?
Não sei vocês, mas eu já tive provas de que agir corretamente, de acordo com a razão, com as regras morais e etcéteras e tais pode mandar a felicidade para bem longe. Ser feliz ou estar feliz, se existe a felicidade ou momentos felizes… chamem todos os filósofos que podemos discutir tudinho.
Para falar a verdade, como é tradição eu contar de onde surgiu a motivação do texto, conto-lhes que foi pela certeza de que há pessoas que acreditam piamente que não podem – já foram mas jamais serão de novo – ser feliz. Há pessoas que por tantas dores e vidas vividas não acreditam na felicidade, e talvez seja mais fácil acreditarem em algum filósofo. E é diante delas que eu encontrei a certeza de que sou feliz – no sentido mesmo de ser. Eis que também não me convence a idéia filosófica de que só se pode dizer de alguém se foi feliz quando da sua morte. Eu já quis escrever numa lápide, adaptando Merimée, Viveu, amou, foi feliz (é de um conto do Carmem, mas da última vez que procurei não descobri de qual – como vocês sabem sou péssima com citações). Não gostaram do “amou” ali no meio e tinham lá suas razões. Então, quem sabe, eu guarde este para a minha lápide. Quem sabe sem o “amou” fique melhor. Apesar da fatalidade que há no “foi” pois pretendo ser feliz também depois da morte.
Não pensar e não agir corretamente, dentro dos preceitos e regras morais, deve estar mais próximo da felicidade do que toda a Filosofia reunida. Recordo dos primeiros filósofos que irritavam-se com a vida e suas necessidades mais básicas, as biológicas e fisiológicas. Como nos afastamos do mundo das idéias ao ter que procurar um banheiro numa longa e deserta estrada. Teriam eles razão? Se o objetivo da vida é a felicidade, ela não deveria estar contida em cada satisfação de desejo e necessidade, em cada prazer como abrir uma lata de coca-cola ou na água quente de um banho depois de um dia cansativo? E para citar literalmente o Aristóteles com seu sedutor meio-termo, não deveria também estar contida na reflexão sobre nossas ações e suas consequências na vida dos outros, ou no quanto o trabalho alienado marxista corrói meu ócio, ou, ainda, se sou feliz?
Me contradigo? Acredito que sim, pois isso volta e meia acontece. Eu não acredito na felicidade da maior parte das pessoas que conheço. Fingem tão mal. Os psicólogos, as euforias, os impulsos, as domesticações, as reclamações… fotos, posts e conversas não têm cores o suficiente para esconder suas infelicidades. Como ainda considero a Filosofia melhor que certos profissionais, tarjas pretas ou livros de auto-ajuda, o meio-termo aristotélico me cai bem.
Já não sei ao certo porque escrevi sobre a felicidade. Constatei que não escrevi quase nada do que havia pensado. Mas cheguei ontem em casa com a missão auto-impingida de escrever sobre a felicidade. Ainda leio os filósofos com muita desconfiança. E, claro, com muita gratidão e, alguns, com paixão. Ah, cá estou a falar de paixão… aí mesmo que eles levantariam de suas tumbas e cassariam meu diploma de mísera bacharel em Filosofia.
Não sei, não sei… de fato não sei onde está a felicidade. Sei que a possuo. Não a procurei, porque como eu disse, não busco nem procuro por nada na vida. Espero, assim, que ela se descortine e me apaixone. Sim, horrorizo pessoas quando constatam que não tenho objetivos, metas e essas coisas como, sei lá, ser feliz.
Hoje, então, tirei o dia para implicar com a Filosofia. Não quis dizer nada e duvido que tenha dito muita coisa. Melhor deixar cada um com sua lata de felicidade e voltar aos filósofos e às suas certezas. Como gosto tanto de surpresas, vai que ainda hoje a vida me surpreenderá com alguma.
Deixe um comentário