Deslize inconfessável

   

     Das coisas que gosto da vida, as inconfessáveis ocupam um lugar especial. Tenho cá pra mim que uma vida que não tenha seus recônditos inconfessáveis não é em nada vivível. E nem falo daquelas coisas que se confessam ao pé do ouvido ao amante recente enquanto corpos ainda suados tremem convulsivos. Digo as inconfessáveis por excelência e tenho apreço especial por aquelas que não confessamos nem a nós mesmos.

      Uma pessoa muito querida que conheci este ano tem me ajudado a pensar, estudar e entender coisas sobre este… poderia dizer ofício, mas aí lembra qualquer coisa relacionada a profissão ou obrigação, e não é o caso. Trabalho, talvez, porque como disse ele “nós não temos horário, nós temos trabalho” e encarar como trabalho foi o que fiz ano passado e me ajudou muito. Ou, quem sabe mais verdadeiro, um hábito. Tenho, por hábito, escrever. E isto eu encaro como trabalho. Demorei anos para chegar até estas definições – e acredito que elas possam mudar como já mudaram tanto para chegar até aqui. Como eu ia dizendo, esta pessoa (é um fofo, sério) entre tantas coisas diz repetidas vezes que o escritor é um outsider. Ou seja, que escrevemos porque não nos sentimos in, sentimo-nos fora de algo – seja espaço, grupo, normas, etc.. De coração, ainda tenho dificuldades em dizer: sou uma outsider! Sabe, acredito que é uma certa antipatia por pessoas que sempre se autodenominam ou rotulam “sou underground”, “sou alternativa”, “sou eclética”, e afins. Não sei bem o que há dentro para ter certeza que estou fora. E, reparem, entre todos os diferentes há os iguais. Não adianta pintar o cabelo de vermelho-cereja, só se vestir de preto, ser fã do Nirvana e achar que é diferente: tem milhares iguais a você. É uma mentalidade permitida na adolescência e foi lá mesmo que já percebi essas bobagens.

      Então o escritor seria um outsider. Como não me sinto assim, tive que procurar aqui dentro como me sinto, então, como pessoa que escreve – por hábito e trabalho. Eis que não consigo fugir de mim: sou uma personagem. Nas palavras escritas sou, sempre, uma personagem. Por isso, não me causa espanto algum saber que meus maiores problemas com as pessoas são de comunicação – quando envolve a escrita. No mundo das palavras não existe eu. Aí as pessoas confundem muito. O que, aliás, muito me diverte em vários momentos. As personas que escrevem têm características, por vezes, que ninguém que me conhece pessoalmente me atribuiria. E com toda razão, aliás.

    Para poder prosseguir com algumas atividades e planos tive que procurar estas respostas. Eu poderia escrever best sellers com unhappy end como os que agora fazem sucesso, vide Nicholas Sparks e John Green. Esses dias me perguntei se isso era alguma forma de neo-romantismo contemporâneo. Sou saudosa dos tempos, antes mesmo do meu tempo, de Sidney Sheldon. Transgressão perdeu a graça? Sexo virou rotina? Desavenças são desinteressantes? Que mundo é esse, então?Mundo mais afoito por uma indústria cultural ainda nos moldes do Adorno e do Horkheimer do que nunca. Poderia, também, viver de escrever romances de banca de revista – dos quais, aliás, sou fã fervorosa! Mas, não. Ainda não.

     Como personagem que escreve tento, por vezes, me furtar a escrever. Foi esses dias que pela primeira vez escrevi um texto para publicar aqui e não o fiz. E jamais o farei. Gosto do imediatismo do blog, escrever e já publicar. Quando você se dedica a escrever um livro sem nem a certeza de que será publicado a situação é muito diferente. Aqui, não, escrevo e publico (e apago) quando bem entendo. E publico muita bobagem, é claro. É o exercício, é o hábito. Foi logo depois deste que não publiquei que escrevi um que não tinha nada a ver com o que ele era na minha cabeça. Me explico. Não sofro da síndrome da folha em branco. Não sento e digo “agora vou escrever”. Eu penso, penso, penso, matuto, crio tudo na minha cabeça (e raramente uma anotação aqui ou ali), lapido uma frase de efeito ou outra. E aí, quando está tudo ali, sento e escrevo – e raramente releio ou reviso. Mas, no caso deste texto em especial eu não gostei dele na questão formal. Queria algo mais poético e não foi este o resultado. E aí pensei em não publicá-lo.

    Foi, então, que senti a responsabilidade como alguém que escreve. Tratava-se de emoção. Era um simples registro de sentimentos. Vejam só. Pensei, talvez arrogantemente, que eu senti aquilo como tantas outras dúzias de pessoas também o sentem. E me vi responsável por elas. Há uma pessoa que diz que o escritor é aquele que não teve preguiça em escrever o que muitos pensam ou sentem. Sabe quando a gente lê uma coisa e se “identifica” (sorry, detesto o termo depois que ele foi vulgarizado pelo Big Brother)? Então, o autor é aquele que entre eu e ele não teve preguiça. Simples assim (mas não tanto). Da escrita não consigo fugir e de tudo faço literatura. Já conheci e conheço muitas pessoas com idéias e sonhos fantásticos, além de bons contadores de histórias. Mas daí a terem escrito livros, nunca. E, sim, claro, obviamente, me utilizo deles na cara dura.

    A responsabilidade é essa. Registrar sentimentos e emoções que sei que não sou a única que sente. Sou personagem o tempo todo, mas quando assumo a ficção penso catar os sentimentos e emoções que conheço e desconheço para chegar a alguém. E sempre chego.

    Voltamos, então, friamente calculado, ao começo. Meus leitores não confessam que lêem o que eu escrevo. Eis algo inconfessável. Vejam bem, ler o que eu escrevo ainda não é crime. Faço festinha em mim mesma num flerte com prazeres proibidos ao saber que sou parte de algo inconfessável. Afinal, de coisas inconfessáveis é que se faz uma boa vida. A responsabilidade que assumo (visto que tenho pavor de responsabilidades) ao escrever por outros recebe, em contrapartida, o deleite de ser a inconfessabilidade de algumas vidas por aí. Não desejaria nada mais.

    Meu blog não é daqueles de milhares de acessos por dia, semana ou mês. E com números nunca me importei, vocês sabem. Nem escrevo e fico mandando aos amigos e conhecidos para que leiam. Me sentiria mal fazendo isso. Me dei ao luxo de configurar aquelas ferramentas que publicam automaticamente nas redes sociais e só. Sei de pessoas que lêem o que eu escrevo. E sei que elas não assumem isso por aí. Tenho leitores que não falam mais comigo, que já me amaram e odiaram demais, aqueles que me conhecem mas nunca nem me disseram um “bom dia”. Amo todos vocês, viu? Como personagem que escreve tenho um coração enorme.

     Lamento muito ter, novamente, escrito sobre o ato de escrever. Poderia, sei lá, falar da Copa das Copas ou da campanha política. De vez em quando vocês sabem que eu faço isso. Tirei o ano para (me) estudar sobre este hábito que não me abandona desde tanto tempo e ao qual resolvi dar uns afagos. Daqui a pouco eu volto para escrever sobre casamento, dores de amor, manias doentias, problemas sociais e as curiosidades que observo. Enquanto isso meus leitores vão acariciando seu inconfessável deslize de me ler.

 

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