Por respeito aos nãos

Talvez fosse coerente começar escrevendo sobre oportunismo, coisa que (se é que um dia saiu de moda em terras tupiniquins) está muito em voga. Só de escrever declaradamente sobre certos assuntos eu já posso abraçar os oportunistas que, parece, têm brotado aos borbotões. É curioso o quanto aumentamos a exposição daquilo que criticamos que está sendo exposto, já repararam? Se eu considero que uma determinada ação de uma pessoa (ou de um grupo delas) é excessiva, errada ou expõe o que não deveria, ficar falando, publicando e comentando-a só ajuda a aumentar a publicidade da coisa. É simples. Mas muita gente não percebe.

Não, não me deterei em fatos particulares. Serei o mais abstrata possível. Como dizemos no twitter, entendedores entenderão. Justo assim. Antes de começar a escrever pensei e repensei o quanto eu sofri tentativas de cerceamento desde (e principalmente durante) a minha infância. Na prática, nunca houve porta trancada, armário alto, portão com cadeado, cofre com segredo, esconderijos secretos e afins que tenham me detido – podem perguntar, algumas histórias são célebres. Ouvir um não ou uma proibição qualquer disparavam em mim, no mesmo instante, o botão do desafio. Se era não, então eu faria. Claro que me meti em inúmeras confusões, apanhei pra caramba, deixei algumas pessoas em desespero. De fato, não faz tanto tempo assim que o que não era pra ser, pra mim seria.

E não sei bem quando foi (repito, não faz tanto tempo assim) me vi refém dos meus próprios nãos. Eu me dei o dever de me cercear. Os primeiros momentos foram de dilemas quase-existenciais. Minhas atitudes mudaram. Eu decidia por mim se sim ou não. Não demorou muito para me sentir responsável – ó, meu pavor desde sempre. E, sim, hoje creio que me sinto uma velha por isso. Envelhecer deve ser isso de respeitar os nãos – os próprios nãos. E, lhes digo, dia após dia, tenho me deparado com situações nas quais o coração sai se arrastando pelo peso dos lamentos ao respeitar meus nãos…

Pensei cá se não deveria ser uma lei universal o respeitar os próprios nãos. Não é questão de educação, etiqueta, noção ou bom senso – não é respeitar o que nos é, desde sempre, imposto. É saber o que se deve ou não fazer – em determinado lugar ou situação. Pensem bem, não estou me referindo às psicoses nem aos crimes hediondos (mas a alguns casos destes é possível aplicar).

Pensei, também, que seria simples. Passaríamos menos vergonha com atitudes totalmente reprováveis – dessas que abundam registradas em imagens e divulgadas na internet –, talvez até respeitássemos mais uns aos outros (entre mortos e vivos), quem sabe até acreditaríamos mais nos seres humanos – esta espécie que louva tanto ser racional.

Concluí, então, que tenho pensado demais. De vez em quando acontece. Publiquei, ultimamente, textos de ficção (?) porque também de vez em quando acontece de eu querer olhar o mundo somente pelos olhos da ficção. Acredito que poucos lograram acompanhar o que eles de fato queriam dizer. Mas, pelo que afirmam os estudiosos das Letras, não importa o que o texto quis dizer, mas o que ele disse a você, leitor. Nem terminei de escrever e tenho certeza que este texto não dirá absolutamente nada à maioria (dos que o lerão, óbvio). Entendedores entenderão.

Às vezes também acontece de eu preferir apenas observar. É um exercício e tanto. Ainda mais quando os dias são batalhas árduas em obedecer aos nãos que eu me digo – tem dias que é um atrás do outro e, ó, coração, sofra sem dar um pio. E enquanto isso vou lendo livros de ficção que me ajudam a entender tudo. Ficção só me faz bem – da realidade já não posso dizer o mesmo. Às vezes, só às vezes, tenho cá pra mim que há uma imensa maioria jogada ao mar, entre ondas que vêm e vão e vêm e vão e têm dificuldade (total incapacidade?) de perceber. Entre as pérolas “na minha opinião, tenho certeza absoluta” e baldes de gelo, não sei bem o que se passa com a cobertura em tempo real e imediato do mundo.

E aí também estranho e (em certos casos) lamento as mortes (não que eu ache, como parecem querer que a gente acredite, que tenha morrido muito mais gente nesses tempos do que em outros – cadê as estatísticas?). E entre over flooding de especialistas sobre suicídio, depressão e piadistas de merda, é reconfortante ver que certos sentimentos continuam os mesmos – a pobreza, a politicagem, o amor, o ódio, a ignorância. Talvez eu até preferisse o mundo quando ele era assim.

É, sou velha, mas tão velha, a ponto de preferir os bons tempos em que fofoca era fofoca e não indireta nesta ágora on line. Bons tempos quando meu avô discutia política no final do almoço de domingo e minha avó suspirava “política e religião não se discutem” – pois é, vó, nem o teu não eu respeitava, posto que foram as primeiras coisas que amei discutir na vida. Sou velha, o suficiente quem sabe, para respeitar o meu não nem que seja diante da dor dos outros. E aí me deparei com uma passagem – ficção (?), é claro – de um dos últimos ilustres falecidos que fez parte da minha adolescência mais desrespeitosa com os nãos (e feliz) da qual muito me orgulho:

Sobre enterros no Nordeste:

“Às vezes, um enterro cedo. Precisava ser cedo, porque logo se trabalhava. Defunto não come, talvez seja melhor. Mas não era menos enterro por ser de madrugada, antes era mais, porque em outras horas tem sempre gente na rua que não está prestando atenção no enterro. E de madrugada não, porque, quando tem um enterro de madrugada, só tem mesmo o enterro, com aquele caixão deslizando e o povo atrás e se ouvindo as pisadas no chão e as pernas das calças se esfregando umas nas outras.” – João Ubaldo Ribeiro, Sargento Getúlio

Sou dessas velhas que entendem enterros como o som dos passos e das pernas das calças se roçando. E, vejam bem, no meu tempo nem precisavam ser de madrugada para tanto. Ah, para os que não me conhecem, já fui a mais enterros do que descobri segredos de cofres e senhas de e-mails alheios. E, talvez, só quem já tenha visto ou sentido certas coisas vai entender o “defunto não come, talvez seja melhor”.

Enfim, Ubaldo era baiano e seus personagens transitavam ali pelo sertão. Mas ele também saía da ficção pra dar umas bordoadas na nossa realidade – esta, em resumo: uma democracia que não sabemos usar. Também não sabemos usar a liberdade e quase não encontro quem respeite seus próprios nãos. Então só me resta concluir com a imagem da minha avó recolhendo o prato dela e se retirando da mesa.

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