Soco no estômago

Numa geração tinder, quando descartamos pra direita ou pra esquerda aquele que achamos bonito ou feio, pouca coisa deveria nos assustar. Deveria. Quem dera fosse assim simples.

O tempo tem sido escasso para tanta coisa por aqui, mas nunca deixo de manter olhos, ouvidos e mente abertos. Assim, testemunho algumas muitas coisas que, sim, assustam.

Sentei-me para almoçar, cidade pequena, de frente para a janela num dia de semana. Levanto os olhos e congelo. Dois meninos, entre treze e quinze anos, do outro lado da rua, parados ao lado de um carro são atacados por dois policiais militares. Os meninos levam tapas, são jogados contra o capô do carro. Um policial se posiciona atrás deles enquanto o outro observa alguma coisa perto da abertura do tanque de combustível do carro (onde os meninos foram abordados). Eles falam mas eu não ouço nada. A abordagem é agressiva, não há dúvida. O policial começa ostensivamente a revistá-los, joga o boné sobre o capô, revista o moletom, demora-se demais na região genital, e num instante (sem parar de falar ao pé do ouvido do menino, que é o mais novo, por sinal) dá um soco no estômago dele. O outro policial se aproxima, chama um colega (na região há vários pois o batalhão é na mesma rua e eles almoçam todos no mesmo restaurante) que está perto. A revista do outro menino é mais comedida, os outros policiais estão perto. Os três policiais conversam, o que fez a revista ri, o que chegou depois faz um sinal com a mão. São liberados e o que fez a revista passa carinhosamente a mão na cabeça do menino mais novo antes de colocar o boné dele de volta.

Não houve acusação. Não havia indício de nada. Deixei a comida quase intocada no prato. Assisti a tudo paralisada e com o estômago revirado. Mais pessoas viram, ninguém deu bola. Dois meninos, não-brancos, como qualquer menino que vemos pelas ruas. Me dei conta, naquele instante, que fora da realidade sou eu. Aquilo ali é real. Não, nunca vivi na periferia. Não uso-a como discurso. Sempre vivi em cidade grande e região central. As histórias que já li e ouvi e vi (nos filmes) iguais a qual eu acabara de presenciar eram idênticas e, segundo insistem em nos dizer, ocorrem aos montes todos os dias.

Ao ouvir uma palestra de um especialista em drogas, e no seu combate, que conta histórias e mais histórias sobre desgraças que o uso de drogas causa na vida das pessoas (mas tudo a partir de uma narrativa, digamos, “informal”) fiquei convencida de que há pessoas (uma gigantesca maioria) que não se sensibilizam com as dores e sofrimentos alheios. No mesmo dia que testemunhei a cena tive mais provas de que as pessoas pouco se importam com o sofrimento alheio e, pior, não tomam sequer como exemplo. Senti-me, ao ver aqueles meninos, justamente ao contrário. Nem serei piegas e direi “imaginei um filho meu ali” (meu irmão, inclusive, já passou por coisas semelhantes). Vi-os ali, passando por aquilo, vi os rostos deles. Depois daquilo, pouca coisa tem me passado levemente na vida mesquinha de cretinos que insistem em se aproximar de mim.

Resolvi, sem consultar ninguém, resgatar as discussões políticas ao final dos almoços de domingo. A época, inclusive, é propícia. E, sim, gosto muito de discussões – com quem, de fato, sabe discutir. Os ignorantes eu deixo porta afora, como bem frisei ontem. Baixei de vez meu nível de tolerância. Já tentei e discursei sobre tolerar “o outro” e tal, mas criei critérios excludentes pois não tenho porque ouvir certos absurdos.

Discutíamos, então, posicionamentos políticos e afins quando eu informei (tudo começou com a minha pergunta, “entre a Dilma e Marina, você corre pra onde?”) a um dos mais convictos da mesa: nenhum (candidato) fará milagre. O silêncio pairou. E um outro disse “não, isso óbvio”. Por isso não sou ferrenha de nenhum candidato ou partido. Tenho, inclusive, desconsiderado pessoas que eu, até então, considerava que tinham o mínimo de formação e cabeça. As baixas estão em alta, com o perdão do trocadilho.

Ontem cheguei bem tarde em casa e só vi uns comentários no twitter sobre o debate (eu nem sabia que seria na terça, ando por fora de TV e tal e me disseram que seria na quinta – aí, talvez, eu conseguisse assistir). Já comentei muito debate no twitter e o meu favorito é sempre o da Band. Mas fiquei ali lendo os tweets e meu estômago revisou-se quase do mesmo jeito quando vi a cena com os meninos. Além das pessoas que eu sigo, foram muitos RTs (ou seja, “ouvi” outras vozes e até acompanhei alguns replies. Não sei se o debate dos presidenciáveis foi indigesto (minha TV mal funciona e a Band de jeito nenhum), mas garanto que tudo o que li o foi, talvez até revoltante.

Era engraçado comentar só os trejeitos, falhas e aparência dos candidatos. Sobre a Marina em específico, já se pode observar uma rispidez a mais (além da ira dos partidos polarizados que vêem na sorte dela – na medida que a morte de alguém pode ser sorte para outro – o azar deles) pelo fato de não ser o padrão “bonita” de vocês, não-branca, cabelo não-liso, usar óculos e roupas fora do padrão “revista de moda” de vocês. Virou a chacota da noite. A Luciana Genro também foi achincalhada pela sua aparência e expressões faciais. Dilma, ao que parece, ficou ofuscada ou já estamos cansados de rir da imagem dela. Ah, claro, sobre a aparência dos candidatos homens não vi quase nenhum comentário. Porque rir de mulheres que não são a loira gostosa que os homens desejam secretamente a portas de banheiros fechadas, pode. O que vi foi uma espécie de tinder eleitoral. Como me senti? No mínimo, bem no mínimo, nauseada.

Não adianta, penso eu, estar em sala de aula tentando abrir cabeças a machadadas quando o mundo aqui ensina tão bem coisas tão ruins. Não adianta. Continuem reiterando preconceitos e ignorâncias, parece que lhes faz bem. E, claro, continuaremos a ignorar os meninos violados em revistas no meio da rua e ao sol do meio-dia.

Não se pode levar mais nada a sério com a presença irrestrita da internet? Memes e babaquices afins dominam até manchetes de revistas e jornais. Sim, porque quando vejo a quantidade de memes e sei lá que nome dão para essas coisas que entopem as redes sociais imagino que ser humano tem tempo na vida pra ficar montando e editando essas coisas. Não pude, no sentido político, tirar nada do debate pela minha TL. Nada. Nem daqueles que nunca aparecem no twitter e só apareceram ontem pra dizer solenemente que não temos em quem votar, “ó, desgraça”.

Dizia eu, lá na mesa do almoço de domingo, que não vejo saída na política., ao contrário do que percebo na nossa sociedade tão superficialmente politizada (hoje todo mundo discute a campanha em todos os cantos). O Estado, vejam só, não é responsável nem culpado por tudo. Há uma crença cega coletiva de que nós não somos responsáveis por nada. Não vejo (nem nunca vi) alguém criticar a educação confessando que é ou foi um péssimo e irresponsável aluno – ou professor. E quem adora criticar a corrupção mas corre atrás de político pra pedir “favores” ou sonega ou engana o chefe? E o médico que estudou mal e é negligente com o paciente que na conversa de bar diz que a culpa toda é do sistema de saúde?

Culpas existem aos montes. Porém, o que está fora de moda é consciência moral dos próprios atos. Controlei-me, ontem, numa crise de desespero ao imaginar a humanidade não usando sua racionalidade. Quiseram meus pensamentos do banho que eu analisasse apaixonadamente tudo o que tenho visto e lido… e eles me diziam que a única conclusão é que não temos sido racionais – nem nas coisas mais simples. E, sim, isso me parece desesperador. Nem o simples fato de que somos racionais e devemos usá-la, a razão, tenho conseguido enfiar a machadadas em algumas cabeças.

Não estamos cuidando das nossas responsabilidades. Não temos feito exames de consciência. E nem de longe temos sido racionais. E assim seguimos euforicamente. A euforia coletiva sempre me indica maus presságios.

Enquanto tento controlar crises de pânico (tenho desejos de me desligar das pessoas e do mundo) o soco no estômago daquele menino sinto-o na cabeça.

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