Querida Ernestine,
vivemos num andar do inferno! No sétimo, não é mesmo? Não a sinto uma personagem, sinto-a uma amiga que conhece as mesmas dores que eu. Sabemos que há dores mais vis, as verdadeiramente insuportáveis, dessas sofremos também. Porém, não dominamos as paixões através do espírito. Nos enganamos, por vezes, a acreditar que somos senhoras dos nossos sentimentos e nada mais parece que uma troça. A cada buquê e bilhetes que recebias eu via os meus… enquanto vislumbravas o teu amado perfeito – que eles sempre são perfeitos – mergulhei junto nas tuas teorias. E quando descobrimos que eles não cabem no molde que tão alentadamente moldamos em longas horas de especulação? Os amamos quiçá ainda mais. A vida não é um livro, uma história com focalizadores e narradores oniscientes. Assim, nosso desespero em não saber o que se passa na cabeça e no coração do outro é incompreensível aos contadores de notas e aos olhos que vêem os números da bolsa. Temos consciência unilateral da história… e dos sentimentos. Que amores começam em atos levianos e somente esses são amores. Os atos levianos nos levam ao contentamento, à fixação do pensamento a toda hora do dia e da noite, aos sonhos, ao olhar insistente pela janela. E então o desespero de não saber o que se passa com o outro esvai-se para termos a certeza que nossa leviandade apaixonou-o. E amor que ama apaixona. Presas, então, de alegrias sublimes por pouco tempo esquecemos o desespero. Ele vem como o tapa mais cruel que mão alguma nos daria: sentimo-nos usadas. Fomos, então, um passatempo. Úteis quando havia tempo disponível. Ocupação temporária entre dissabores. Nosso desespero exposto ao escracho, à maledicência, à indiferença. Sentir-se usada é afogar-se em dúvidas: e os buquês, todos falsos? e os bilhetes, que nos abalavam a alma e que líamos e relíamos escondidas com sorrisos dançando nos olhos, todos friamente calculados? e a esperança alimentada com as promessas, impulso desinteressado? E quando encontrarem nos nossos olhos e palavras o enterro do desespero, jamais saberão que aqui (e aí) dentro ele pulsará ainda mais forte.
Vamos ao piano! Vamos aos estudos de história natural! Vamos dar ordens aos criados! Somos personagens de nós mesmas, fingimos a vida que temos. Não somos bonitas, não temos charme nem usamos as roupas que as moças usam. Temos a expressão imperiosa no olhar que ninguém saberá admirar. Vertemos lágrimas ardentes por alguém que mal vimos três vezes. Não temos, portanto, o mínimo do bom senso. Lançaremos ao fogo sem ler as longas cartas. Manteremos a face erguida durante jantares enfadonhos com os mestres do querer aparecer. Num mea-culpa exacerbado prometeremos mudar o que de certeza nos torna repulsivas. E o quão impossível nos é cumprir a promessa de jamais ser imperiosa! Queremos, até, mudar as roupas e os gestos infantis que nos caracterizam. Talvez amem mais uma mulher com trejeitos de trinta anos! E quem dera eu amasse como a de 28 do nosso querido, quem dera! Travei guerras comigo mesma para que eu não amasse sempre como aos quinze ou aos dezoito! Não há espírito que dome nossas paixões!
O desespero é o doce de coco do desprezo e do ódio por si mesma – como estes tornam-se obesos! E é o nosso destino. Da leviandade não nos arrependemos que só ela proporciona o amor verdadeiro, guardaremos sempre e sempre os buquês e os bilhetes, levaremos decoradas para a eternidade frases e palavras. Evitaremos melancolicamente os carvalhos e os lagos. Por um instante, num sussurrar de um vento distante que chegará de surpresa, cairemos de joelhos diante de todas as nossas resoluções. Todo o desespero que acreditávamos ter afogado as esperanças foi em vão. Teremos a idiota certeza de suplantar, no coração dele, todas as outras paixões. O vento passará breve e em seguida choverá.
Saber-se ou não amado complicará todos os fins.
E o futuro será resumido em poucas linhas.
Ernestine, esses dias me dei conta que sou uma personagem de mim. Vivemos naquele castelo a olhar pela janela, com olhar imperioso e atenção voltada aos livros (e filmes…). Desconfio que sabemos mais da vida do que os que vivem nos grandes salões com olhares agradáveis e amores sinceros. Dói-me, de fato, a despedida; dói-me menos porque sei que ganhei uma amiga. Depois de sangrá-los em algumas páginas, deixemos nossos desesperos, nossos desprezos e ódios trancafiados na torre a espiar involuntariamente o lago e o carvalho até que… até que a melancolia os tire dos nossos pensamentos.
Pela convivência da Primavera de 2013 à Primavera de 2014 (e de um breve encontro no Verão de um ano perdido no tempo), meu muito obrigada, Stendhal.
Nos encontraremos sempre.
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